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No tomo II de Tiempo y narración, Ricoeur (1987b) discorre sobre a diferença entre o tempo da narrativa e o tempo narrado.

O ato de narrar implica uma sucessão de momentos significa- tivos que se destacam naquele momento, naquela ocasião (Kairós). O tempo narrado remete-se à Kairós, à temporalidade da existência humana, à sequência de acontecimentos que constituem a história de uma vida. E acrescenta que a vida em si não é uma narrativa, mas é algo que se vive. Isto quer dizer que a narrativa nunca é a coisa em si, mas um “como se”, uma metáfora das coisas vividas.

Toda narrativa diz respeito a um processo de vida e, à medida que a narrativa se desenvolve, são escolhidos trechos e enfoques para relatar tal processo. Algumas coisas são escolhidas para ser contadas, outras são omitidas. A narrativa, tal como a fotografia, é um recorte da realidade, neste caso, da vida narrada.

O tempo da narrativa, por outro lado, é aquele presente no mo- mento em que ela se desenvolve. É o tempo cronológico (Kronos) transcorrido durante o ato de narrar. Não é o tempo empregado em criar a obra, porque uma história se transforma cada vez que é contada. Da mesma forma que as “histórias de pescadores”, cada um acrescenta suas impressões à narrativa, suas próprias vivên- cias, aumentando ou diminuindo o tempo da narrativa cada vez que é contada.

Alguns trechos são narrados com mais detalhes, outros acon- tecimentos podem ser resumidos, contados antes, retomados ou completamente suprimidos. O narrador, como um artista, vai mol- dando a narrativa como se lhe imprimisse seu estilo, seu jeito de contar, sua versão da história. E esse conto pode ser completamente diferente na próxima vez que for narrado. O tempo da narrativa varia de acordo com o narrador, com o contexto, as retrospectivas, as histórias que levam a outras histórias etc.

Ricoeur (1987b) aponta que o tempo criado pela narrativa é um tempo poético. O narrar é não apenas a arte de contar a vida, mas também a arte de criar e estruturar a maneira como experi- mentamos o passar do tempo. A criação temporal propiciada pela narrativa é o eixo de estruturação da vivência do tempo, que se dá entre o tempo empregado no ato de narrar e o tempo narrado.

O tempo cronológico se transforma em tempo humano quando se relaciona à produção de sentidos sobre a nossa história. “Vivir es vivir en el tiempo, y vivir es tener historia” (García, 2006, p.110). A história, imersa no tempo, quando é dita deixa de ser apenas um acontecimento e se torna história.

Pelo ato de narrar, o tempo é desdobrado em tramas e causos que produzem sentidos à medida que descrevem as experiências temporais e por elas transitam (Ricoeur, 1987a). No momento em

que se narra um acontecimento, o tempo que supostamente deveria ser linear perde tal característica e se desdobra em múltiplas possi- bilidades.

Na narrativa não existem regras para a sucessão de eventos que encadeiam uma história, o tempo pode ser invertido, distorcido, emparelhado. O que aconteceu antes pode ser dito depois e, assim, pode-se modificar a sequência temporal da história (García, 2006).

Toda narrativa é um discorrer temporal, um passeio pelo tempo dos acontecimentos que se quer representar àquele que nos ouve. O mundo narrado e os seus decorrentes sentidos são produções temporais.

De acordo com Paul Ricoeur (1987b), o ato de traduzir o mundo em palavras é um modo privilegiado de reconfigurar nossa expe- riência temporal, que é, a princípio, sem forma, confusa e muda.

A narrativa faz com que os diversos acontecimentos envol- vidos na trama se integrem à história. Os acontecimentos apenas são significativos quando estão de alguma forma atrelados à pas- sagem do tempo, à história (García, 2006).

O tempo é por nós percebido e medido à medida que passa, contudo, o movimento que nos permite vivenciar a passagem do tempo não é exterior. É o próprio sujeito ou alma, como coloca Ri- coeur (1987a), quem compara os tempos breves com os duradouros, o transitar e o permanecer. De acordo com esse autor, através do homem o tempo ganha materialidade e passa do “não-ser” ao “ser”.

Ricoeur (1987a), apoiando-se na afirmação de santo Agos- tinho a respeito de o tempo estar sempre relacionado ao presente,1

formula que o tempo atrelado à narrativa implica a memória, a pre- visão e a espera. As previsões sobre o futuro são esperadas como se fossem vindouras, nos dando uma pré-percepção do que está por

1. García (2006) explica as reflexões de santo Agostinho sobre o tempo dizendo que o futuro ainda não é, o passado já não é e o presente nunca permanece, é fugaz. Podemos nos comprometer a fazer algo amanhã ou rememorar uma de- cisão tomada ontem, mas a nossa vivência desses momentos se dá durante a passagem do tempo, no presente.

vir, o que aproxima o “prever” ao “recordar”. À memória desti- namos o passado e à espera confiamos o futuro.

A espera e a memória deixam uma impressão no sujeito, fa- zendo-o experimentar o tempo como uma grande expectativa do futuro ou uma grande memória do passado. Essa impressão cau- sada pelo tempo só existe, contudo, quando o sujeito atua sobre ela, quando espera, relembra e presta atenção.

Através do narrar, o presente se torna o lugar em que se rea- lizam projetos do passado ao mesmo tempo em que determina pos- síveis projetos a serem realizados no futuro (White, 1992, apud García, 2006).

O tempo atravessa a narrativa na medida em que favorece uma percepção global da história. O desencadeamento da narrativa nos dá pistas sobre o que aconteceu aos personagens nela envolvidos; o que pode acontecer ou, ainda, o que teria acontecido (ou estaria acontecendo) se uma decisão diferente tivesse sido tomada.

Na narrativa, o tempo pode situar uma ação na história ou, muito pelo contrário, a narrativa pode desfazer-se do tempo e não ter uma referência temporal específica, podendo ser atemporal.

A flexibilidade do tempo na narrativa acontece porque esta pode ser organizada de diversas formas, como uma montagem ou bricolagem. Dessa forma, os tempos do relato podem reorganizar o tempo do que está sendo contado sem seguir uma lógica temporal cronológica. Pode-se avançar a narrativa mediante a recordação do passado ou antecipar-se o futuro. García (2006) diz que é condição do tempo a duração, mas a narrativa trata essa duração de forma diferenciada, pois pode condensar ou dilatar o tempo. Ao narrar acontecimentos podemos nos delongar ou apressar alguns mo- mentos.

A narrativa comporta inúmeras possibilidades de relação com o tempo: a não linearidade, o mesclar presente com a rememoração do passado, avançar e retardar o tempo, prever, fundir experiências de diversos personagens, fazer do futuro um desejo, promessa ou esperança. A narrativa pode tratar do tempo perdido, do tempo re-

cobrado, da reiteração temporal dos acontecimentos e das anacro- nias. Como aponta García (2006), essa lista pode ser interminável.