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Tendências à Desjudicialização de Questões Familiares

2 O PROCESSO DE ADOÇÃO JUDICIAL BRASILEIRO

2.4 Tendências à Desjudicialização de Questões Familiares

Uma advertência inicial: a desjudicialização de questões familiares não significa que a tutela de determinados direitos deixou de ser estatal para ser privada, vale dizer, a mudança

foi procedimental, retirando-se questões antes tratadas exclusivamente pelo Poder Judiciário para serem tratadas administrativamente, não se atingindo o direito material. Desjudicializar, portanto, significa apenas retirar da esfera de competência do judiciário a formalização de determinadas situações jurídicas e solução de conflitos.

A verdade é que o fenômeno da desjudicialização visa, em última instância, o desafogamento do Poder Judiciário. Em 1996, entrou em vigor a Lei de Arbitragem (Lei n. 9.307, de 23 de setembro de 1996), destinada apenas à solução de conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis, marcando essa tendência no ordenamento jurídico brasileiro.

A desjudicialização de questões familiares consagrou-se pela vigência da Lei n. 11.441, de 4 de janeiro de 2007, que alterou o Código de Processo Civil para permitir a realização de inventário, partilha, separação consensual e divórcio consensual pela via administrativa.

Veja-se que a tutela continua sendo estatal, posto que “o tabelião é um delegado do Estado, operando em caráter privado, a serviço dos particulares. […]. O tabelião não trabalha para o Estado. O tabelião, na sua competência, é o Estado”223. Segundo o art. 6º da Lei 8.935/94, compete aos notários formalizar juridicamente a vontade das partes, intervir nos atos e negócios jurídicos a que as partes devam ou queiram dar forma legal ou autenticidade, e autenticar fatos.

Nesse sentido, é possível perceber que os tabeliães sempre formalizaram atos pertinentes à intimidade das famílias, como é o caso dos pactos antenupciais e as declarações de união estável. O próprio casamento é realizado perante o Oficial de Registro Civil. Destarte, a concretização de inventários, partilhas e divórcios pela via administrativa, mediante assistência de advogado, demonstra que questões familiares de foro íntimo, havendo consensualidade e inexistindo filhos menores ou incapazes, podem ser solucionadas sem o crivo de um juiz de direito. Ressalte-se que a via administrativa ou judicial é uma faculdade das partes, que, cumpridos os requisitos, podem escolher esse ou aquele caminho.

223 CAHALI, Francisco José. et al. Escrituras públicas: separação, divórcio, inventário e partilha consensuais: análise civil, processual civil, tributária e notarial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 18.

Para Aluísio Schumacher e Mariana Braga, a desjudicialização de questões familiares, especificamente com relação ao divórcio por escritura pública, a despeito da necessidade de desafogamento do judiciário, pode não ser tão benéfica quanto parece, isso porque, segundo os autores, a nova sistemática “pode contribuir para a manutenção por tempo indeterminado do vínculo entre o casal: abre a possibilidade de compreensão por parte dos cônjuges de que a relação jurídica pode ser temporária, perecível […].”224

Não parece ser essa a conclusão da maioria dos teóricos do direito acerca de tais inovações legislativas. Após a vigência da norma, foi possível perceber que o procedimento extrajudicial, mais ágil e célere, além de atender ao comando constitucional da razoável duração do processo, trouxe menos desgaste para os interessados e menor custo ao erário.

No que pertine ao tema objeto desse estudo, parece que a tendência caminha no sentido oposto. A adoção é feita exclusivamente por processo judicial desde a fase inicial da habilitação, conforme exposto anteriormente, sendo obrigatório o cadastro prévio de interessados em adotar, nos termos do art. 50, § 13, do ECA. A possibilidade de o procedimento de adoção tramitar fora do judiciário, como acontece na maioria dos estados norte-americanos, por exemplo, não é admitida.

Nesse sentido, cumpre verificar que algumas questões merecem ser tratadas fora do Poder Judiciário. O imenso volume de processos que atormenta os operadores do direito poderia ser menor se crescentes fossem as práticas de desjudicialização de determinadas questões. O triste cotidiano do judiciário, em específico no que diz respeito aos processos ligados à institucionalização de crianças, foi objeto da seguinte manifestação de Sávio Bittencourt225

Embora haja um significativo esforço de organização das instituições e do sistema, para agilizar os procedimentos, a realidade posta é caótica: não existe uniformidade na atuação jurisdicional, nem do Ministério Público e da Defensoria Pública. Enfrentamentos institucionais, sobreposição de competências que geram desperdício de tempo e dinheiro público, falta de 224 SCHUMACHER, Aluísio Almeida; BRAGA, Mariana Moron Saes. Cartório que casa e descasa: a Lei n. 11.441/07 e o exercício da autonomia entre cônjuges. p. 28. Revista brasileira de direito das famílias e

sucessões. Porto Alegre: Magister; Belo Horizonte: IBDFAM, 2010. v. 15. abr./maio 2010. p. 28.

225 BITTENCOURT, Sávio. A nova lei de adoção: do abandono à garantia do direito à convivência familiar e comunitária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 5.

entrosamento e inércia são elementos comumente encontrados na prática dos que lidam com a infância institucionalizada. […]. A questão não é, necessariamente, de insuficiência da legislação, mas de ineficácia das instituições, falta de controle sobre o trabalho dos agentes políticos do estado, insuficiência de estrutura para atender à prioridade absoluta constitucional, inclusive por parte da Magistratura.

Thales Tácito Cerqueira entende que o fenômeno da desjudicialização, especificamente aplicado no atendimento de crianças e adolescentes, em regra quando em situação de vulnerabilidade, está relacionado ao princípio da proteção integral:226

Através desse princípio busca-se reduzir a atuação jurisdicional nas relações que envolvam interesses de menores, dando-se preferência à participação das instâncias administrativas especializadas, usando-se meios preventivos e educativos no atendimento da criança e do adolescente, inclusive dos infratores. É uma nova abordagem na questão menorista, visando esgotar, na solução dos problemas, meios não jurisdicionais de recepção e encaminhamento.

No procedimento de adoção judicial, não raros são realizados laudos e estudos psicossociais “às pressas”, sem o cuidado devido, sem a atenção que as partes merecem, em flagrante afronta aos direitos das crianças e adolescentes que, em última análise, são afetados negativamente pelo acúmulo de processos no judiciário. Fora o reduzidíssimo número de varas especializadas na infância e juventude. Tudo isso colabora para uma pior prestação jurisdicional, fazendo com que crianças e adolescentes sejam desatendidos em seus direitos fundamentais.

Segundo levantamento realizado em 2008 pela Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e da Juventude, em comemoração dos 18 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente, apenas 92 das 2.700 comarcas da Justiça Comum do país eram especializadas nas questões infanto-juvenis. O texto produzido pelo órgão afirma227:

O ECA reservou ao Judiciário, ao Ministério Público e à Defensoria Pública, 226 CERQUEIRA, Thales Tácito Pontes Luz de Pádua. Manual do estatuto da criança e do adolescente

(teoria e prática). 2 ed. Niterói: Impetus, 2010. p. 19.

227 ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE MAGISTRADOS, PROMOTORES DE JUSTIÇA E DEFENSORES PÚBLICOS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE. O sistema de justiça da Infância e da Juventude nos 18

anos do Estatuto da Criança e do Adolescente: desafios na especialização para a garantia de direitos de

papéis fundamentais no Sistema de Garantias de Direitos – SGD. O Sistema de Justiça – SISTEMA DE JUSTIÇA [sic] tem potencial para se apresentar como capaz para defender, proteger e promover os direitos previstos nas normas pertinentes, devendo assumir-se, de acordo com a comunidade internacional, como parte integrante do processo de desenvolvimento nacional de cada país e ser administrada no marco geral da justiça social de modo não apenas a contribuir para a sua proteção, mas também para a manutenção da paz e ordem na sociedade (Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude, art. 1.4). Entretanto, o potencial transformador do SISTEMA DE JUSTIÇA não encontra expressão na realidade brasileira. Mais do que falar em limitações financeiras a restringir a atuação da Justiça, percebe-se uma falta de prioridade pelas instituições do Sistema de Justiça na infância e juventude. A impressão geral funda-se, de um lado, na elevada demanda feita às Varas da Infância e da Juventude pela efetivação de direitos de crianças e adolescentes, mas, de outro lado, na sua reduzida capacidade de ação, em razão da deficiente estruturação material e humana das Varas, Promotorias e Defensorias. […]. Por essa razão, a ABMP entende ser impossível pensar o avanço na promoção de direitos de crianças e adolescentes no país sem enfrentar o modo como vem sendo pensada, estruturada e gerida a Justiça da Infância e da Juventude brasileira.

O mesmo documento informa que no Brasil a média é de 438.896,72 habitantes por juiz especializado em infância e juventude228, vale dizer, cada juiz especializado é responsável pela prestação jurisdicional a quase meio milhão de pessoas quando o assunto é a tutela dos direitos de crianças e adolescentes e não a recomendada média de 100 mil habitantes por vara especializada229.

O comando normativo previsto pelo art. 145 do ECA resta, portanto, desobedecido: “os Estados e o Distrito Federal poderão criar varas especializadas e exclusivas da infância e da juventude, cabendo ao Poder Judiciário estabelecer sua proporcionalidade por número de habitantes [...]” (destacamos), ficando enfraquecido o Sistema de Justiça destinado à tutela dos interesses de crianças e adolescentes e suas famílias.

O levantamento da ABMP demonstra que o Poder Judiciário não está adequadamente preparado para tutelar, de modo efetivo e eficaz, todos os direitos infanto-juvenis, seja pela falta de especialização de varas, seja pela falta de material humano, seja pela falta de reciclagem e aprimoramento desse material. Por isso, a desjudicialização pode ser um 228 Ibid., p. 19.

229 “De acordo com as duas análises, como veremos, a população de 100.000 habitantes deveria ser o critério regente para a definição do critério de criação de varas especializadas com competência exclusiva em infância e juventude”. Ibid., p. 37.

caminho eficaz, com mobilização da sociedade civil e implementação de políticas públicas voltadas à tutela dos interesses aqui defendidos.

Tal como ocorre nos Estados Unidos, muitas questões afetas à adoção poderiam sair do âmbito judiciário, com a criação de instituições e organismos capazes de realizar o procedimento de forma administrativa, tudo com a supervisão do poder público. O procedimento de habilitação, por exemplo, poderia ser desjudicializado para a esfera administrativa, desde que realizado nos moldes como ocorre hoje, com o trabalho de pessoal especializado e qualificado (Serviço Social, Psicologia, Pedagogia)230, cabendo ao judiciário apenas a sentença final de homologação ou não do procedimento.

Nesse aspecto, quando o que está em “jogo” são direitos da infância e juventude, adequadas são as palavras de Jadir Cirqueira, ao defender que não se pretende enfraquecer a atividade do Poder Judiciário, mas “apenas adequá-la aos novos paradigmas da CF e do ECA com o incentivo à maior participação da família e da sociedade”.231

A possibilidade de fraudes e ilícitos não deveria ser suficiente para o afastamento da modernização e busca por maior agilidade dos procedimentos em benefício dos maiores interessados, que são as crianças e adolescentes. Mantidos os princípios do superior interesse e atendimento prioritário das questões infanto-juvenis, tais possibilidades deveriam ser vislumbradas e melhor debatidas pela sociedade jurídica e civil, como garantia de efetivo acesso à justiça e adequada prestação jurisdicional.

230 A princípio poder-se-ia questionar qual seria a diferença prática caso se implementasse a desjudicialização, por exemplo, do procedimento de habilitação de pretendentes à adoção. Ocorre que a deficiência de pessoal especializado (psicólogos, assistentes sociais, pedagogos) para atuação nos procedimentos é enorme, posto que para a atuação nas Varas é necessário concurso público. Com a desjudicialização, profissionais particulares licenciados e credenciados poderiam atuar no procedimento, aumentando significativamente o campo de atuação da equipe técnica, seja pelo acréscimo do número de profissionais, seja pela maior diversidade de qualificação dos técnicos, seja pela possibilidade de um melhor ambiente de trabalho para as equipes multiprofissionais. Em sentido contrário manifesta-se a ABMP, sob o argumento de que a “terceirização” da equipe técnica não garantiria um serviço público de qualidade e que “só através do concurso público há a garantia da capacitação continuada dos profissionais”. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE MAGISTRADOS, PROMOTORES DE JUSTIÇA E DEFENSORES PÚBLICOS DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE. O sistema de justiça da

Infância e da Juventude nos 18 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente: desafios na especialização

para a garantia de direitos de crianças e adolescentes. Brasília, 2008. Levantamento (Relatório). 117 p. Tiragem 500 exemplares. p. 81.

231 SOUZA, Jadir Cirqueira de. A efetividade dos direitos da criança e do adolescente. São Paulo: Editora Pillares, 2008. p. 117.

3 FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL DO DIREITO CIVIL, AFETIVIDADE E