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Tensões entre o profissional e o acadêmico na concepção de mestrados profissionais

2.3 O mestrado profissional: uma resposta a necessidades nacionais

2.3.2 Tensões entre o profissional e o acadêmico na concepção de mestrados profissionais

Ao realizar sua definição sobre programas de treinamento em organizações de trabalho, Hamblin (1978) propõe que existam três tipos de qualificações: aquelas que são focalizadas naquilo que é função laboral direta do indivíduo, naquilo que o indivíduo está exercendo no momento, para qualificar melhor seu trabalho, seu desempenho nas atividades que já executa; aquelas que são focalizadas no futuro, que preveem não a melhoria específica do desempenho na função atual do indivíduo, mas procura prepará- lo para assumir funções no futuro, em situações não tão delineadas, ainda; e aquelas que se comprometem com a formação da pessoa, para além do trabalho, podendo incluir, entre seus objetivos, o aprimoramento do desempenho laboral, mas não sendo esse seu único e principal foco. À primeira, o autor denomina treinamento, à segunda, desenvolvimento, e à terceira, educação. Afirma, ainda, que a segunda possui uma situação incômoda, pois estando entre as outras duas, muitas vezes, não define com clareza seu escopo, dificultando atividades avaliativas de seu sucesso ou fracasso e, por conseguinte, acrescentamos, o alcance da tríade eficiência-eficácia-efetividade, na direção da necessária relevância postulada por Sander (1995), em atendimento aos critérios de valor e mérito trazidos por Scriven (1991).

Para Paixão, Bruni, Becker e Tenório (2014), o MP se coloca de forma ambígua e turbulenta dentro do sistema de avaliação da Capes, dadas suas características ímpares, em particular, por motivos semelhantes aos apresentados por Hamblin (1978) para as atividades de desenvolvimento. Seguindo essa lógica e, ainda, consoante Fischer (2005; 2010), o mestrado profissional teria duas vertentes: uma, focalizada em aspectos tecnológicos e gerenciais de uma organização de trabalho demandante da formação e direcionados à solução de problemas mais específicos e delineados e, outra, com vistas em questões teóricas, políticas e administrativas mais amplas, que qualifica o indivíduo não apenas para aquilo que ele está exercendo no momento, mas, inclusive, para assumir um posto futuro ou um posto de gestão. As semelhanças entre as reflexões de Fisher (2005, 2010) e Hamblin (1978) não são triviais e possuem relação com a natureza própria do MP frente ao MA. Se considerarmos, ainda, o fato de que, no caso dos MP, existem, com igual peso de importância, outros objetivos menos pragmáticos que a qualificação profissional e que impõem a formação da pessoa quanto aos aspectos humanos, filosóficos, culturais e científicos do conhecimento, como convém a um curso stricto

sensu, o posicionamos no incômodo meio-termo de que fala Hamblin (1978) e reafirmamos a ambiguidade e a turbulência identificada por Paixão, Bruni, Becker e Tenório (2014).

As convergência entre Hamblin (1978), Fischer (2005, 2010) e Paixão, Bruni, Becker e Tenório (2014) apontam direções para os motivos que nos levam a considerar inadequada a referência do MP como treinamento, referência esta evidenciada pela análise documental em documentos oficiais como o relatório do Conselho Técnico- Científico da Capes (1999, p. 56) e da Comissão do Mestrado Profissional da Capes (2005, p. 154), ou mesmo como a Portaria Capes n. 17/2009, em seu Art. 5°, Parágrafo Único, podendo levar a equívocos conceituais comprometedores da implantação dessa modalidade de pós-graduação. Dentro dessa lógica, concordam conosco Quaresma e Machado (2014) que, ao discutirem o modelo pedagógico a se adotar em um curso de MP, consideram restritiva e reducionista tal denominação.

Vale mencionar ainda que, a despeito da indução para a abordagem do MP como um programa de formação aplicada desde sua criação, encontramos, nas primeiras normativas, pequenas contradições nas quais transparecem resistências à aproximação entre a pós-graduação stricto sensu e o mundo do trabalho, que podem comprometer, ainda hoje, por seu peso histórico e conceitual, a estruturação de algumas propostas de formação como programa, na acepção por nós adotada neste trabalho (Joint Comitee, 1994; Contandriopoulos et al, 1997), haja vista possibilitarem a desvinculação entre o currículo e o desempenho laboral, entre a universidade e o mundo do trabalho, entre o curso e um problema concreto a se superar no contexto de implantação. Tais contradições, como exceções dispersas nesses documentos, refletem a diversidade de percepções sobre o tema imanentes a cada ator envolvido no processo de negociação que deu vida ao MP (Conselho Técnico-Científico, 2002a), mas que foram, ao menos em parte, superadas no decorrer do processo histórico de constituição dos documentos mais atuais, como a Portaria n.17/2009, ainda que não totalmente.

Isso criou condições e caminhos para que se possibilitasse o escape da ênfase em objetivos de qualificação profissional e desempenho laboral, permitindo a elaboração de cursos que venham a não atender uma demanda formativa profissional concreta a partir de problemas de interesse comum e objetivos e estratégias consensuais entre as partes envolvidas. Assim podemos identificar desde a Portaria n. 47/1995, passando pela Portaria n. 80/1998, pelos parâmetros de avaliação construídos pela Comissão do MP da

Capes (2005) e, antes deles, pelos parâmetros de análise propostos pelo Conselho Técnico-Científico da Capes (1999) orientações que permitem a associação do currículo a tendências de mercado e novos campos ainda não existentes, a possibilidade de distanciamento entre setor acadêmico e profissional, a vinculação da apresentação de propostas de novos cursos e de avaliação de cursos a critérios predominantemente acadêmicos e a exigência de produção intelectual seguindo parâmetros acadêmicos para a avaliação do impacto. Dentre tais orientações merecem destaque os excertos abaixo22:

...surgir, preferencialmente, do interesse comum entre o setor acadêmico e um setor não acadêmico - a ser beneficiado pelo tipo de qualificação prevista embora as instituições interessadas possam, eventualmente, identificar, de forma criativa, cursos profissionalizantes que induzam ao surgimento de novos

campos de atividade profissional (Conselho Técnico-Científico, 1999, p. 55)

...associação da estrutura curricular, e das experiências profissionais oferecidas pelo curso às demandas da sociedade ou às tendências identificadas

ou novas tendências a serem prospectadas (Comissão do Mestrado Profissional,

2005, p. 151)

...oferta de cursos por instituições de ensino e pesquisa públicos e privados sem as demandas estabelecidas...(Comissão do Mestrado Profissional, 2005, p. 153) Cabe destacar que cursos focados no interesse exclusivo de uma das partes (primeiro e terceiro casos, acima) rompem com a proposta filosófica e política do MP e contradizem suas premissas, podendo aproximar em demasia o currículo de perspectivas ou lato sensu ou acadêmica. Além disso, o atendimento a novos campos ou tendências prospectadas de atividade profissional (primeiro e segundo casos, acima) lida com demandas futuras intuídas ou arbitradas, sem lastro necessário com problemas reais, socialmente, enraizados e compartilhados pelos stakeholders, abrindo precedente para cursos acadêmicos com fantasia profissional, não sendo condizentes com a premência alvejada pelo PNPG 2011-2020 (PNPG, 2010) e, em uma interpretação teleológica, com o espírito geral dos próprios parâmetros de avaliação postulados pela Capes (Conselho Técnico-Científico, 1999; Comissão do Mestrado Profissional, 2005). Isso se torna importante na medida em que currículos e competências tanto com viés excessivamente profissionalizantes, quanto alheios a um problema concreto da realidade laboral de seu público-alvo, com características acadêmicas, sempre poderão ser denominados “profissionais” e justificados por sua relevância futura, em um agendamento de

necessidades que poderão nunca se materializar de fato no mundo do trabalho como uma demanda de formação.

Acerca das preocupações com a emergência dos mestrados profissionais, o Conselho Técnico-Científico da Capes (2002a) teceu algumas considerações que ilustram os conflitos existentes no meio acadêmico:

Receio de que os títulos referentes a cursos profissionais sejam aceitos para o ingresso e ascensão na carreira docente, notadamente do ensino superior – e, neste caso, serem considerados para o cumprimento das exigências da LDB sobre qualificação docente. A intensidade desse receio varia de acordo com a fonte da demanda a ser atendida pela nova modalidade de cursos. Poucos, por exemplo, contestam a importância e necessidade da pós-graduação profissional para a formação de pessoal para atuarem em diferentes setores da economia. Da mesma forma, é cada vez maior a aceitação da contribuição que os mestrados profissionais podem dar para a solução dos problemas que afetam nossos sistemas de ensino fundamental e médio, desde que tais cursos atendam a altos padrões de produção técnica e científica e adotem mecanismos e critérios de avaliação condizentes com seus objetivos...São as universidades que devem definir que títulos e que tipo de formação admitirão em seus concursos para a carreira docente. Algumas poderão aceitar o título de mestrado profissional; outras poderão não o aceitar, ou aceitá-lo apenas para algumas áreas ou disciplinas...apenas uma fração das instituições de ensino superior são caracterizadas como de ensino e pesquisa...(Conselho Técnico-Científico, 2002a, p. 54-55)

Em nosso entendimento, não há sentido em tal preocupação, pois, sendo ambos os tipos de curso pertencentes ao SNPG, com qualidade equivalente, tanto em termos científicos, quanto pedagógicos, diferenciando-se apenas pela estratégia pela qual se dá essa formação e a produção do conhecimento, não há que se interpor questionamento diferente para as duas modalidades, ambas devendo ser alvo das mesmas preocupações.

Há que se considerar, ainda, que, em tese, o MA não é capaz de qualificar para a pesquisa mais do que consegue o MP, a priori, pois não é a natureza de um curso que define isso e sim a qualidade do currículo e, sobretudo, do corpo docente, bem como os objetivos traçados e os indicadores de resultados definidos, os quais, tando em uma modalidade, quanto em outra, devem incluir a qualificação científica para a pesquisa (PNPG, 2010; Portaria Capes n. 17, 2009). Um curso ser profissional não implica em negligenciar a qualificação para a pesquisa e docência, assim como ser acadêmico não garante essa qualificação ou compromete a sua possível orientação aplicada, como já vem ocorrendo mesmo antes da criação dos MP, de acordo com Melo e Oliveira (2005) e

Barros, Valentim e Melo (2005). De acordo com as diretrizes da Portaria nr. 17/2009, a única diferença entre os dois é (ou deveria ser) o direcionamento dado aos conteúdos, às discussões, às aulas e ao trabalho de conclusão de curso, que precisam possuir caráter aplicado, mas com alto grau de cientificidade dos processos e dos resultados (imediatos e tardios) no MP, enquanto no MA a aplicabilidade seria contingente e não condicionaria os processos e resultados, sem que isso represente qualquer demérito para ambos, em conformidade com Quelhas, Faria Filho e França, 2005.

Uma questão adicional se apresenta nessa situação: é tênue a linha divisória entre o segundo modelo de mestrado profissional apresentado por Fischer (2005, 2010) e o mestrado acadêmico. Um MA típico se caracteriza por seu caráter mais teórico e distanciado das questões práticas que se materializam no dia-a-dia das organizações de trabalho e da sociedade, se orientando por diretrizes de relevância, eminentemente, científicas, em uma linha de grande proximidade com o modelo de universidade proposto por Humboldt (2003). Devemos ter claro que isso não é demérito e atende a um nicho específico das necessidades de produção do conhecimento. Por outro lado, o MP foi concebido para atender a outras especificidades dessa produção, emergidas da constatação, já por Newton Sucupira em seu Parecer 977/1965, de que a sociedade urgia por uma produção mais aplicada e comprometida com o atendimento das demandas prementes do mundo atual e que não poderiam aguardar o decurso natural do escoamento da produção acadêmica para o mundo do trabalho. É no interior desse contexto que Quelhas, Faria Filho e França (2005) apresentam os papéis do MP e o diferenciam do MA: dimensão prescritiva, como objetivo de pesquisa, contextualização da pesquisa em demandas concretas, como questão central, e desenvolvimento da cultura científica dentro das instituições, como compromisso. Para Ribeiro (2005), essa característica do MP representa uma possibilidade de resgate de uma histórica dívida da universidade com a sociedade e, para Saupe e Wendhausen (2005), justificaria a adoção do MP como a melhor opção de formação pós-graduada orientada para trabalhadores do SUS, principalmente, se observarmos as considerações de Santos e Ribeiro (2009) sobre as relações entre as necessidades do SUS e o modelo de Educação Corporativa (Ribeiro, 2008).

Ao refletirmos sobre as postulações de Fisher (2005, 2010) acerca das variantes do MP, percebemos a substancial importância da contextualização prática e local de seus currículos e dos papéis apontados por Quelhas, Faria Filho e França (2005) para que o

modelo que a autora denomina generalista, voltado para a gestão, não se perca no academicismo e ultrapasse a linha que o separa do MA. Tal estratégia é que lhes possibilitaria cumprir, de fato, as determinações expressas na Portaria Capes nr. 17/2009, especialmente, a obrigatoriedade de orientação para o campo profissional, a agregação de competitividade, o ajustamento ao perfil do público-alvo e a utilização aplicada dos conhecimentos, a fim de que o programa, não se tornando abstrato e teórico, seja capaz de atender às expectativas expressas por Ribeiro (2005) e Saupe e Wendhausen (2005) acerca de sua adequação ao resgate da dívida social e à qualificação para o SUS, em se tratando de MP em Saúde, como é o caso aqui estudado.

2.3.3 Mestrados profissionais em Saúde Coletiva: uma resposta às