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Teoria da Situação Irregular e da Proteção Integral

3. As Crianças e Adolescentes

3.1 Teoria da Situação Irregular e da Proteção Integral

Como podemos notar nos capítulos anteriores, a apresentação e o enquadramento histórico de um determinado assunto são de extrema relevância para compreendermos como e porque se desenvolvem determinados institutos. E agora, mais uma vez, vamos construir uma história pouco contada e valorizada em nossa sociedade, referente ao início de toda a dignidade, respeito e conquista de direitos fundamentais por uma parte da população, que antes não era vista e nem ouvida como sujeito de direitos.

Estamos a nos referir a crianças e adolescentes que, segundo nosso ordenamento pátrio e proposições de nossa doutrina atual, compreendem os indivíduos desde a sua concepção até os seus 18 anos incompletos.

Art. 2º Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade.

Parágrafo único. Nos casos expressos em lei, aplica-se excepcionalmente este Estatuto às pessoas entre dezoito e vinte e um anos de idade.155

Em que pese o direito brasileiro empregue, tendo como base o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), uma diferenciação entre criança e adolescente - considerando como criança a pessoa menor de 12 anos e adolescente, como a pessoa que está na faixa de idade de 12 a 18 anos -, o presente estudo, seguindo o entendimento empregado pela Convenção dos Direitos da Criança (CDC), adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em Novembro de 1989 trata por criança todo o indivíduo menor de 18 anos de idade.156

155 BRASIL. Lei 8.069, de 13 de Julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília: Congresso Nacional, 1990. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm>. Acesso em: 05 Novembro 2019. 156 FURQUIM, 2016, pg. 12.

E já de início, como colocado por Fuziwara157, não podemos sequer mencionar a expressão “história da infância”, pois o que temos são apenas registros na história da humanidade da participação de crianças e adolescentes, muitas vezes vitimadas por sua condição especial de sujeitos em desenvolvimento, na formação de marcos sociais e na luta por um espaço de proteção no mundo jurídico e político.158

Segundo a mesma autora, os direitos de crianças e adolescentes, assim como os direitos humanos, necessitaram de grandiosas lutas sociais, que apenas recentemente, tiveram o seu devido reconhecimento e construção no seio jurisprudencial e doutrinário. E, tudo isso, decorrente da forma de pensamento e funcionamento da sociedade em seus diversos meios e tempos.159

Na descoberta do Brasil por Portugal, por exemplo, tivemos a presença marcante de indígenas que viviam no território160 e foram coagidos a catequização, assim como tivemos o

tráfico constante de escravos africanos vindos de colônias portuguesas. Em ambos os casos, nós possuímos implicitamente a presença de menores, filhos e filhas de índios e negros escravos, que passavam por todas essas dificuldades de seus representantes, se não, até em piores condições, sofrendo todas as repercussões e efeitos deste período.

Historicamente, podemos notar a presença de crianças em registros culturais e medievais dos séculos XII e XIII na Europa. Nestes períodos, responsáveis por darem início a história da infância, elas eram vistas socialmente como pessoas de baixa estatura, mas que possuía responsabilidades e deveres como qualquer outro adulto do povo.161

157 FUZIWARA, A. S. Lutas Sociais e Direitos Humanos da criança e do adolescente: uma necessária articulação. Rev. Serv. Soc. Soc., n. 115, p. 527-543, 2013. Disponível em:

<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-66282013000300007&script=sci_abstract&tlng=pt>. Acesso em: 19 Outubro 2019, pg. 3.

158 Fuziwara ao citar Ariès (1978) nos observa que o fato de crianças terem sido ao longo dos anos retratadas como acidentais aparições em fotos de adultos se deve pelo fato das mesmas serem consideradas frágeis em sua linguagem e em sua condição biológica, não podendo portanto se expressar da maneira correta. O próprio termo infância (enfant) nos remete a concepção de indivíduos que não falam, não sabem se expressar, e consequentemente não serão sequer ouvidos. FUZIWARA, 2013., pg. 3.

159 Ibid., pg. 5. 160 Ibid., pg. 6.

Com o transcorrer dos séculos XV e XVI, elas passaram a ser retratadas em maior número e em um cenário de gêneros, atreladas a um contexto familiar. No século seguinte, houve uma pequena ruptura ao retratar crianças isoladamente, com a intenção, e forma arcaica, de representar o que hoje entendemos como uma fotografia.162

No século XVIII, tanto no Brasil quanto no mundo, nós tivemos um afastamento163 da busca pela retratação infantil, tendo em vista que o mais debatido e interessante da nação eram as questões relacionadas a política e a economia. Pouco se falava e se expressava culturalmente, principalmente no que diz relação ao cotidiano e as classes desfavorecidas do Estado.

Neste mesmo século e com a chegada do iluminismo, nós do ocidente passamos a ter uma nova concepção de criança, agora considerando-as como seres frágeis e suscetíveis de controle, enquanto ainda carecedoras de desenvolvimento.164

No século XX, e através da moderna, tivemos o surgimento de novas concepções de infância, pautadas em crianças criativas, solícitas e interativas socialmente (tanto com outros jovens, quanto com adultos).165 Paralelamente, surgiram dois modelos teóricos vinculados as características e valores essenciais dos menores, e são eles:

1) A compreensão do menor como um ser mau e interessado em satisfazer seus próprios prazeres, como pregado pela doutrina cristã dessa época. Neste caso seriam os pais e os adultos em geral os responsáveis por conduzir o desenvolvimento desse menor por um caminho do bem e longe de más companhias;

162 FURQUIM, 2016, pg. 39 et seq.

163 É interessante ressaltarmos que nos períodos retratados, a humanidade não possuía uma definição e um sentimento do que hoje entendemos como o afeto. Portanto, não podemos falar que nesses momentos houveram negligências em se retratar crianças e adolescentes, uma vez que estes eram vistos como entes dependentes e responsáveis em conjunto por manterem um todo maior que poderia ser tanto o Estado ao qual elas eram pertencentes, quanto a unidade/grupo familiar do qual elas haviam surgido. Ou seja, as crianças eram encarregadas, assim como os demais membros, a darem a subsistência necessária, não somente para saciar necessidades pessoais, mas para manter a harmonia e a cooperação em sociedade. Ibid., pg. 41.

164 Ibid., loc. cit. 165 Ibid., pg. 42 e 43.

2) De outro modo, temos a compreensão do menor como sendo um ser frágil, inocente, puro, que apenas sabe brincar e sorrir, e que deve ser protegido em sua bondade por seus responsáveis e pelos demais adultos.

Em ambos, nós temos um problema em comum sendo germinado, que é a prisão da criança e do adolescente em uma perspectiva de incapacidade de agir por conta própria, de tomar suas próprias decisões, e de expressar seus sentimentos e vontades.166

Com o advento dos Estados-Nação, nós tivemos os primórdios da concepção de infância, conferindo aos pequenos uma condição de sujeitos positivados em ordenamentos. Contudo, estes ainda não tinham voz ou notoriedade no meio social, e, portanto, foi-lhes atribuído olhares de proteção como consequência de seu abandono por parte dos responsáveis ou de sua criminalização.167

Importante notarmos que, antes mesmo da formação dos Estados-Nação, já existia a constatação no meio jurídico internacional, retratações de menores, através do instituto de direito romano denominado “patria potestas”. No qual a criança, embora não tivesse seus direitos e deveres previstos em normas, possuía uma condição de submissão e controle perante o “pater familiae”.168 Condição essa que permaneceu presente (porém sobre um novo modelo

cultural) até final do século XIX, quando tivemos o aparecimento de uma nova corrente concepcionista de direitos a crianças, pautada na constatação de que crianças são imaturas e vulneráveis na medida em que necessitam de uma proteção por parte de seus pais ou do Estado, na ausência deles.169

A grande questão, estava no fato de que a partir deste modelo nós passamos a ignorar por completo a vontade e o interesse do menor. Somente a partir da década de 60 é que passamos a vislumbrar crianças e adolescentes como sujeitos capazes de tomar suas próprias decisões e de decidirem acerca do que seria o seu melhor interesse.170

166 FURQUIM, 2016, pg. 42 e 43. 167 Ibid., pg. 44.

168 Ibid., pg. 43 e 44. 169 Ibid., loc. cit. 170 Ibid., pg. 45.

No Brasil, tivemos dois marcos registrais do desenvolvimento dessas teorias em nossa história:

O primeiro se perfaz durante o século XIX, com a Doutrina do Direito Penal Menorista (Doutrina da Situação Irregular) embasada nos códigos penais de 1830 e 1890, onde estão presentes a caracterização do menor como um sujeito criminalizado ou abandonado de seus cuidados por parte de seus responsáveis, e a decorrente mobilização do poder judiciário responsável por aplicar o que entendia como melhor interesse do menor.171

E o segundo, através da promulgação da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente, que marcam o início da atual Doutrina de Proteção Integral, com foco na proteção integral do menor, de seus direitos e prerrogativas, agora como sujeito de direito, e independentemente da situação a qual esteja atrelado.172

A questão central é combater a violência contra crianças e adolescentes por meio da defesa indireta de direitos, feita através de fortes setores da sociedade, questionando os processos políticos e jurídicos que se justificam na situação precária das classes menos favorecidas.

Desta forma, o objetivo a ser traçado sempre foi a busca por novas soluções duradouras, não apenas para dar visibilidade e voz a uma nova linha de pensamento (proteção integral), mas gerar uma nova era de valorização e conscientização do respeito de futuras gerações de nosso povo.173

Um exemplo bastante ocorrente na violação de direitos dessa camada da sociedade é o alarmante número de crianças e jovens cumprindo medidas socioeducativas, evidenciando um retrato social com sujeitos não contemplados pela proteção, garantia, instrução e respeito adequados de seus direitos fundamentais, e que, consequentemente buscam no crime e na marginalização o mínimo necessário de sua subsistência e crescimento.174

171 FURQUIM, 2016, pg. 46. 172 Ibid., loc. cit.

173 FUZIWARA, 2013, pg.10. 174 Ibid., pg. 11.

Muito embora nós ainda tenhamos dificuldades em compreender e efetivar o cumprimento desses direitos, e , em contrapartida, romper com nossos antepassados aplicadores da teoria da situação irregular, do autoritarismo e do patriarcalismo, a presença em nosso ordenamento do artigo 227, da CF/88, bem como a formulação e aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), nos passa uma nova sensação de esperança e de renovação dos interesses individuais e coletivos de nossa nação.

Outra normatividade que merece destaque, embora careça de uma devida efetividade prática, conforme nosso saber cotidiano, é a legislação penal incidente na temática infantil, adaptada para atender os milhares de casos de detentas gestantes e mães de crianças na fase de amamentação.175 Ela é a caracterização do rompimento de um período anterior, pautado em

maiores violações, para ambos os sujeitos.