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A revisão bibliográfica da Teoria da Transdisciplinaridade realizada a seguir tomará como base a síntese de Roseane Palavizini (2006) sobre o histórico dessa teoria, bem como o artigo de Daniel Silva, intitulado “O Paradigma Transdisciplinar: uma perspectiva metodológica para a pesquisa ambiental” (Silva, 1999). Além disso, a síntese a seguir aborda contribuições de importantes pensadores desse contexto de pesquisa, como Bazarab Nicolescu (1999) e Lupasco (1994).

3.4.1 O conceito transdisciplinar

O pensamento transdisciplinar fundamenta-se na idéia de que os universos disciplinares podem ser transcendidos de forma a caminhar para uma visão mais complexa do mundo, ultrapassando o modo fragmentado de estudo da realidade. A teoria da transdisciplinaridade propõe o diálogo entre as diversas lógicas de produção do conhecimento sem que nenhuma forma seja negada, mas sim somadas suas pertinências.

Então a questão não é dialética, em que uma forma supera a outra forma, e sim dialógica, em que as formas dialogam em suas diferentes lógicas, reconhecendo a importância e a legitimidade de cada uma delas (PALAVIZINI, 2006. p. 76).

Palavizini (2006) traça em sua tese um paralelo entre as diferentes formas de se trabalhar a realidade, tais como a multi, a pluri e a inter disciplinaridade.

A autora aborda o contexto histórico de surgimento e a caracterização de cada uma delas a partir das visões de três autores: Jantsch (apud SILVA, 1999), Bazarab Nicolescu (1999) e Daniel Silva (1999). Realizando um diálogo entre os três modelos propostos, são destacadas as seguintes conclusões:

- O modelo de Bazarab aponta para a complementaridade entre as formas estudadas e a necessidade da existência de cada uma, sendo a transdisciplinaridade uma oportunidade para o presente da humanidade.

- O modelo de Silva, assim como para Jantsch, mostra que há um aumento de complexidade das relações conforme se avança do uni ao transdisciplinar. No unidisciplinar, o resultado é um texto disciplinar relacionando um determinado universo lingüístico e o objeto. No multidisciplinar, diferentes saberes disciplinares abordam um mesmo tema, produzindo uma série de textos de forma coordenada, porém isolados. No interdisciplinar, os pesquisadores dialogam com os demais saberes disciplinares produzindo um conjunto de textos sobre o mesmo tema e considerando todos os universos e domínios, organizados por uma coordenação.

- No transdisciplinar Silva oferece a idéia de um foco definido em um espaço de domínio lingüístico entre os universos disciplinares, previamente construídos a partir da identificação da zona de não resistência epistêmica entre as disciplinas ou da sua pertinência disciplinar. Desse modo, o texto final desta pesquisa emerge das relações nesse espaço de não resistência,

marcado pela transcendência do universo disciplinar, sem que se reduza sua importância.

No contexto do desenvolvimento do pensamento transdisciplinar, o Manifesto da Transdisciplinaridade se configura como marco referencial. Escrito por Bazarab Nicolescu em 1999, o documento parte da insuficiência da ciência reducionista para solucionar os problemas de uma realidade complexa, apresentando a transdisciplinaridade como a esperança para o resgate do respeito às diferenças, a possibilidade do diálogo e a permanente reinvenção do homem e do mundo diante ao dinamismo das transformações da realidade.

Apresenta-se, então, um conjunto de três pilares para a abordagem transdisciplinar: os níveis de realidade e percepção, a teoria da complexidade e a lógica ternária. O primeiro refere-se às idéias de não separatividade, causalidade e do indeterminismo, respaldadas pela física quântica.

Nível de Realidade é entendido, portanto, como um conjunto de sistemas determinados por um número de leis gerais quando as leis gerais mudam, estamos diante de um diferente nível de realidade. A ciência reconhece pelo menos dois diferentes níveis de realidade: o macrofísico e o quântico. Junto à visão multidimensional da realidade, está a multireferencialidade do sujeito, determinada pelos seus diferentes níveis de percepção. A travessia simultânea de vários níveis de percepção produz a trans-percepção, e a travessia simultânea de vários níveis de representação produz a trans-representação (PALAVIZINI, 2006. p. 84).

O pilar da teoria da complexidade fundamenta a transdisciplinaridade, oferecendo à ciência a oportunidade do olhar multidimensional do espaço tempo em substituição do olhar apenas simplificador.

O olhar complexo surge como uma revolução nos universos disciplinares e nas áreas do conhecimento, revelando a realidade como dois lados de um bastão, onde de um lado está a simplicidade e do outro a complexidade […] (PALAVIZINI, 2006. p. 84).

A lógica ternária, formalizada por Lupasco (1986), fornece uma nova maneira de enxergar a realidade, na qual o que parece desunido está unido e o contraditório é não-contraditório, a partir de um terceiro incluído. Ou seja, ao mesmo tempo que é A, é também não-A. Esse é o elemento mediador que pertence simultaneamente às duas dimensões de realidade.

Com os três pilares da abordagem transdisciplinar torna-se possível compreender a Estrutura Ternária da Lógica Transdisciplinar, proposta por Basarab Nicolescu (1999). Essa estrutura está fundamentada em três aspectos chave:

- Natureza objetiva: está relacionada aos níveis de realidade do objeto e é submetida aos níveis de percepção do sujeito;

- Natureza subjetiva: trata dos diversos níveis de realidade percebidos pelo sujeito;

- Trans-natureza: elemento que surge para unir objeto e sujeito, como o mediador do processo. “Na medida em que ele assegura a harmonia entre o

Sujeito e o Objeto, o sagrado faz parte integrante da nova racionalidade” (NICOLESCU, 1999. p. 65).

Observa-se que o caminho para a prática transdisciplinar surge da transformação, transgressão, trans-visão e transcendência interior e exterior do modo como o humano interage no meio. Desse modo, apresentam-se os

traços para uma atitude transdisciplinar: o rigor, a abertura e a tolerância.

FIGURA 6 – Fractal Atitude Transdisciplinar: rigor, abertura, tolerância

- Rigor: relaciona-se à atenção necessária para com possíveis desvios da efetividade da proposta transdisciplinar. De modo geral, está ligado ao risco de redução ou simplificação dos níveis de realidade, bem como à fragmentação e à mercantilização da abordagem transdisciplinar

- Tolerância: trata do diálogo para a inclusão e a convivência transcultural

3.4.2 O paradigma transdisciplinar

Silva (2000) caracteriza a transdisciplinaridade em três tópicos: o paradigma transdisciplinar, o raciocínio transdisciplinar e as implicações epistemológicas do paradigma transdisciplinar, para propor uma perspectiva metodológica para a pesquisa ambiental transdisciplinar.

Primeiramente, o paradigma transdisciplinar é apresentado a partir de suas três idéias-chave:

- A multidimensionalidade do objeto: refere-se à existência de diversas dimensões de realidade para um mesmo objeto, determinadas pela capacidade representativa dos diferentes universos disciplinares. Esses últimos são formados pelo domínio lingüístico de uma disciplina e episteme dos pesquisadores, com seus conhecimentos e paradigmas.

- A multireferencialidade do sujeito: refere-se aos diversos níveis de percepção da realidade e ao histórico de referência do pesquisador, incluindo experiências, crenças e saberes.

- A verticalidade do acessamento congitivo: refere-se à existência de um espaço vertical dentro do qual transitam, sem resistência epistêmica, conceitual ou lingüística, as diversas zonas dimensionais de realidades e percepções em que se dá o transitar cognitivo do sujeito.

Em seguida, Silva (2000) apresenta o raciocínio transdisciplinar por meio de duas idéias fundamentais:

- A lógica do raciocínio transdisciplinar: trata-se de uma lógica difusa em que é identificada uma pertinência simultânea, não contraditória, em que um elemento é A e não-A. Na posição mediadora deste par binário encontra-se o elemento T, o terceiro incluído.

- As zonas de não resistência: configuradas como espaços transdiscipinares determinados pelos conceitos de pertinência (da matemática difusa) e afinidade (que emerge do primeiro). A pertinência é um fenômeno físico, que determina o espaço de convivência entre A e não-A. Quando as pertinências entre pesquisadores são reconhecidas em suas histórias de vida, abre-se a possibilidade para a busca de afinidades, criando o espaço da convivência cooperativa.

Palavizini (2006) esquematizou as implicações epistêmicas do paradigma transdisciplinar de Daniel Silva em cinco tópicos, a saber:

1) O sujeito transdisciplinar: aquele que observa, que percebe, que pesquisa, desde que consiga: identificar sua pertinência disciplinar específica, construir sua inserção no espaço de não resistência com os demais pesquisadores e transitar sem resistência pelas demais pertinências das outras disciplinas.

2) O objeto transdisciplinar: resulta da compreensão da natureza ontológica e complexa do objeto, de forma multidimensional e multireferencial.

3) O modelo transdisciplinar de realidade: surge como um terceiro elemento mediador entre o sujeito e o objeto transdisciplinar, a vertical de acesso cognitivo às zonas de não resistência das dimensões de realidade do objeto e de percepção do sujeito, onde circulam dois fluxos: um de liberdade e outro de responsabilidade. Essa dialógica, impossível de ser racionalizada, é definida por Silva (2000) como o espaço do sagrado que, enquanto experiência vivida, constitui-se como o terceiro que se inclui para dar sentido entre sujeito e objeto na representação transdisciplinar da realidade.

4) Os principais desvios: devem ser observados atentamente de modo a não ferirem a decisão da atitude transdisciplinar.

5) A atitude transdisciplinar: apresentada por Silva (2000) é baseada em Basarab Nicolescu (1999) e destaca as três características da atitude transdisciplinar: o rigor, a abertura e a tolerância.

3.4.3 A perspectiva metodológica

Diante do paradigma apresentado, Silva (2000) avança na proposição de uma perspectiva metodológica para a pesquisa transdisciplinar sob a justificativa da necessidade de aumentar a capacidade de intervenção transdisciplinar, não apenas no campo de transcendência disciplinar, mas também institucional e cultural.

A proposta de Daniel Silva (2000) parte da transcendência racional à emocional, já que a degradação é resultado de uma racionalidade em que os fins justificam os meios. “Do ponto de vista científico, enquanto os paradigmas constituem a episteme do conhecimento, as emoções são a episteme do paradigma” (SILVA, 2000. p.86).

FIGURA 7 – A perspectiva metodológica transdisciplinar. Fonte: Silva (1999). VAC EFETIVO D6 R D5 COGNITIVO R CONCEPTIVO D4 R D3 ESTRATÉGICO R D2 CONCEITUAL R AFETIVO D1 SUJEITO R : Retroalimentação

D1: Níveis dimensionais de percepção e realidade VAC: Verticalidade de Acessamento Cognitivo

A perspectiva metodológica possui seis dimensões:

- A dimensão afetiva apresenta as emoções como ponto de partida da pesquisa;

- A dimensão conceitual propõe a construção do domínio lingüístico da sustentabilidade comum entre os participantes, permitindo o fluxo dos saberes com agilidade e efetividade;

- A dimensão estratégica propõe a construção da pertinência difusa entre o conjunto dos conceitos do paradigma da sustentabilidade e o conjunto dos conceitos de cada uma das disciplinas, em que o terceiro incluído é o planejamento estratégico;

- A dimensão conceptiva parte do diagnóstico estratégico da questão e propõe a ação de transformação, resultante das emoções, do domínio conceitual e da visão estratégica do grupo.

- A dimensão cognitiva é uma emergência da tensão essencial que se estabelece entre a concepção da pesquisa e a realidade ontológica sobre a qual o projeto irá atuar. Trata-se da definição da produção do conhecimento nas diversas linhas de ação do projeto.

- A dimensão da efetividade trata do gerenciamento autopoiético, que buscará a efetividade e sustentabilidade do processo de pesquisa e dos seus resultados, estabelecendo relação entre a eficiência do processo transdisciplinar e a eficácia de seus resultados junto à sociedade.

Segundo Silva (1999), a atitude transdisciplinar requer abertura, tolerância e rigor. Deve haver abertura para o inesperado, o desconhecido, para ouvir e entender a idéia do outro, do diferente, das várias possibilidades em torno de um objeto de estudo. A tolerância refere-se ao reconhecimento das posições opostas, do direito às idéias e verdades diferentes. O rigor assegura os cuidados conceituais e lingüísticos no diálogo entre as disciplinas, evitando os possíveis desvios. Esta abertura ajuda a superar o preconceito inicial, o que Bachelar (1996) denomina de obstáculo epistemológico inicial – a experiência primeira – que são as opiniões, crenças e certezas que o pesquisador possui sobre a realidade, ofuscando o que realmente é necessário saber.

A Teoria Transdisciplinar fundamenta a necessidade de uma nova abordagem e uma nova atitude para superação dos problemas enfrentados pelo setor de saneamento. É preciso reconhecer que a diversidade de enfoques e os diferentes pesquisadores do setor de saneamento possuem um foco comum. A complexidade do saneamento requer mais que cooperação e a integração das diversas ciências precisam de abertura, diálogo e rigor, entre as ciências e entre essas e os outros saberes.

É necessário que haja uma mudança mais profunda que vá à raiz da questão, objetivando o reconhecimento da interdependência entre todas as áreas do saber e da realidade, e favoreça uma nova forma de produzir conhecimento. O conhecimento tecnológico produzido pelas ciências não é suficiente para superar a crise planetária e resolver os problemas ambientais é uma necessidade. Também se faz necessário reconhecer que a superação das fronteiras disciplinares requer um trabalho cooperado e solidário, envolvendo a produção coletiva de conhecimentos e a valorização dos diferentes saberes (SANTOS, 2004).

A efetividade de um plano de saneamento ou projeto deve considerar as diversas dimensões da realidade, ainda que trabalhe com ênfase apenas em uma delas, bem como reconhecer os diferentes enfoques sobre a questão. Para tanto, é preciso que o setor, ao trazer os conhecimentos específicos de saneamento e de suas respectivas áreas de atuação, consiga estar aberto para dialogar com outros setores e valorize os saberes das pessoas que constituem as comunidades com as quais irá atuar para a busca de soluções.

Torna-se necessário e urgente o setor caminhar fundamentando-se no pensamento complexo e na transdisciplinaridade, desde o planejamento, como a construção de Planos de Saneamento Básico e do Plano Nacional de Saneamento, para romper a tendência do setor de continuar praticando a interdisciplinaridade ou multidisciplinaridade, passando de um “ciclo vicioso” do saneamento básico para construir efetivamente o novo caminho, o do “ciclo virtuoso” do saneamento básico, garantindo universalização do acesso.

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