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CAPÍTULO 3 – Das críticas filosóficas ao instrumentalismo e ao dualismo social do

3.5 Teoria do raciocínio prático de John Dewey

Respondendo ao dualismo filosófico, trataremos da teoria do raciocínio prático de Dewey48. Veremos em que termos ocorrem aquilo que Dewey denominou de raciocínio instrumental, diferenciando-o do modo em que Horkheimer o designou.

48

As principais obras de Dewey a respeito da reconstrução, em lógica, são: Como Pensamos e Lógica: teoria da

Dewey (1974c, p. 249) denuncia a falácia filosófica das estruturas da investigação lógica: não se podem atingir os produtos cognitivos sem o processo artístico.

O que é ainda mais importante é que não apenas é essa qualidade [qualidade emocional satisfatória] um motivo significativo para o empreender uma investigação intelectual e para que seja conduzida honestamente, como também, nenhuma atividade intelectual será um acontecimento integral (uma experiência), a menos que seja integralizada pela mencionada qualidade. Sem ela, o pensar é inconclusivo. Em suma, o estético não pode ser separado de modo taxativo da experiência intelectual, já que esta deverá apresentar cunho estético a fim de que seja completo (colchete nosso, grifo do autor).

“Significados, conhecimento e formas lógicas são conseqüências dessas transações, e não existência antecedente”, afirma Garrison (2006a, p.16). Para Dewey, reflexão e ação são contínuas. A interrupção de um hábito é a interrupção da prática de pensar ou dos hábitos do pensamento. Uma vez que o hábito é interrompido, as sensações percebem a quebra e provocam algo de consciente, pois estimulam, instigam à reflexão. O pensar reflexivo de Dewey começa, portanto, com a interrupção de um hábito estabelecido; a conseqüência da experiência é a re-significação, o conhecimento. Portanto, os elementos lógicos e racionais são instrumentos práticos para lidarmos esteticamente com o nosso ambiente, a fim de buscar um novo equilíbrio passageiro com o ambiente, equilíbrio intelectual e fisiológico; instrumentos sujeitos a investigação. Nesse caso, lógica é a própria teoria da investigação sobre a investigação; é o pensamento que se tornou consciente de si mesmo, na experiência.

Vale ressaltar que o critério deweyano para saber se ocorrerá ou não uma experiência e aprendizado não é a interrupção, por si só, de um habito estabelecido. É o reconhecimento de conexões entre as formas e as substâncias, sugerindo e dando sentido uns aos outros, por meio da linguagem. Com efeito, a experiência só acontece se for experiência inteligente de meios- fins ou prática-teoria, e se for comunicada. A vida só é realmente vivida se for inteligentemente comunicada.

Incluímos, portanto, um elemento bastante importante da filosofia deweyana da experiência, que será melhor explicado a seguir: a instrumentalização da razão. Esta não pode ser confundida com o modo como a Teoria Crítica e, particularmente, Horkheimer e Adorno designam esse termo.

Isso porque, por um lado, a instrumentalização da razão significa que as sensações empíricas deixam de ser os portões do conhecimento e se tornam estímulos à ação e reflexão. São provocações e incitamentos ao pensamento investigativo, que terminará em conhecimento. Assim, as sensações não são boas ou ruins, inferiores ou superiores, pois elas

não são modos de conhecer. A sensação deixada a si própria não participa do campo do conhecimento, mas das pesquisas de estímulo e resposta. Para se ter-conhecimento, é preciso

fazer-reflexão na e sobre as experiências e sensações. Por outro lado, a razão não se pauta

também em um reino transcendental ou das Formas Ideais. Dewey substitui o termo razão pelo termo inteligência, porquanto, para ele, o primeiro se encontrava muito carregado e pesado, devido ao afastamento, provocado por Kant e pelo racionalismo histórico, entre uma razão superior que ordenaria a experiência e a ciência. Isso contribuiu para que a filosofia permanecesse ligada a um formalismo tradicional com uma terminologia distante do homem comum e seus problemas concretos. Diferentemente, para Dewey (1959c, p.111) a razão estaria envolvida com

[...] as sugestões concretas oriundas de experiências passadas, desenvolvidas e amadurecidas à luz das necessidades e experiências do presente, empregadas como alvos e métodos de reconstrução específica, e apuradas através de êxitos ou malogros na execução da experiência dessa tarefa de ajustamento: a tais sugestões empíricas, usadas de maneira construtiva para novos fins, é que damos o nome de inteligência.

Da mesma forma com que tratou o dualismo entre razão e emoção, o estadunidense também não concorda com a separação rígida entre arte e ciência. A relação artística entre fazer e sofrer, que constitui a experiência, representa uma atividade da inteligência, ou seja, não é uma atividade solta e desconexa, pois visa sempre a um resultado, um fim-em-vista.

Jim Garrison (2006a, p. 20), mais uma vez, salienta:

O pensar, para Dewey, é reflexivo, uma tentativa de fazer conexões de trás para frente e de frente para trás entre o que fazemos e o que sofremos como conseqüência. O conceito de continuidade também é importante: raciocínio de meios e fins não é linear, para Dewey. Fins sempre emergem durante o percurso da investigação. Meios são indistintos do fim em um dado contexto até que o processo de investigação se complete e relações harmoniosas sejam estabelecidas entre todas as partes da situação, incluindo o próprio investigador.

O pensar não se pauta mais em um telos ou em um eidos ou em um fim idealizado, pré-determinado. Fins são fins-em-vista que emergem no processo e são determinados pelos meios em suas limitações. A limitação da experiência determina as limitações lógicas. E fins- em-vista, por sua vez, diferenciam-se de meros resultados por causa de os fins envolverem reflexão e decisão durante o restabelecimento de uma função habitual, permeada pela insistência do passado e a possibilidade do futuro. Instrumental, nesses termos, significa, então, que as atividades e operações, práticas e teóricas, que os indivíduos exercem para

resolver problemas são sempre intermediárias, sempre fins-em-vista. O esquema do raciocínio prático de John Dewey é o seguinte, segundo Ross (apud GARRISON, 2006, p. 30):

Desejo Eu desejo V. Deliberação U é o meio para V.

T é o meio para U. ...

N é o meio para O.

Percepção N é algo que eu posso fazer aqui e agora. Escolha Eu escolho N.

Ação Eu faço N

Vemos que, segundo Ross, há vários elementos envolvidos no raciocínio prático de Dewey. Uma vez que exista algum tipo de complicação em uma experiência, a primeira reação é tentar sair dessa situação problemática. Portanto, se deseja algo. Por meio da investigação, examinam-se as melhores soluções possíveis. Portanto, delibera sobre algo. Como a solução pode estar distante ou ser dificultosa, especula-se sobre mais variadas hipóteses possíveis, sentindo quais são as suas conseqüências para a resolução do problema, até conseguir achar uma solução próxima; tem-se uma idéia. Nesse caso, os métodos e os conteúdos empregados surgem durante o processo. Logo, o indivíduo percebe a solução e a escolhe. Assim, escolhe-se e age. A deliberação é o órgão do raciocínio prático que propicia as escolhas inteligentes. Ela apenas acontece em uma experiência que tenha um objetivo, um fim-em-vista. Tais escolhas envolvem não apenas desejo e escolha, mas definitivamente juízos de valor.

A finalidade da atividade é a continuidade, ainda que não linear, ou seja, o raciocínio prático deweyano não é o equivalente lógico de uma “linha de montagem” que “fabrica” soluções para os nossos problemas, a razão não é uma “máquina” pré-programada. Pensamos e agimos conjunta e hipoteticamente, durante a resolução de um problema, sendo que, para isso, temos que agir sobre e sentir as conseqüências diversas vezes. Como o fim da atividade reflexiva é tão importante quanto os meios, a valoração e as questões morais também participam do raciocínio instrumental de Dewey. Os juízos de valor não estão isolados da experiência na qual eles são exigidos. Fins-em-vista são morais, porque o conhecimento não deixa nunca os hábitos e condutas da experiência, para se isolar em um reino idealizado. Com essa afirmação, Dewey (1959b, p.384) se contrapõe às escolas filosófica utilitarista e idealista que separam o motivo da ação de suas conseqüências, que separam o interesse e o dever, sendo o idealismo ligado ao caráter e ao puramente “interno”, e o utilitarismo ligado à conduta e ao “externo”.

Para Dewey (1959b, p.383), Kant teria defendido que apenas a boa vontade, o caráter interior completo em si, pode ser um bem moral. Ele não teria percebido que a vontade nada faz, se não acontecer na conduta. Por outro lado, os utilitaristas afirmaram que a consciência do homem nada vale, em termos de moral. O importante é aquilo que se faz. Em ambos os casos, o dualismo incorre em prejuízo moral, pois ele impede que o caráter e a conduta sejam tencionados.

Sem a liberdade para fazer conexões estéticas, morais e intelectuais, a partir das próprias existências, necessidades e desejos, em relação expressiva com a natureza e outros indivíduos, atemo-nos simplesmente ao que está estabelecido, fechando-nos intelectualmente.

O caráter instrumental em Dewey, portanto, repousa no fato de que desde o desejo sobre algo até a escolha e a ação, os hábitos de ação e de pensar são acontecimentos que podem ser instrumentalizados pela especulação filosófica enquanto uma lógica da conversação que pretende um melhor viver em sociedade, pretende uma sociedade democrática, e que, para tanto, deve se atentar aos desejos individuais e as questões morais que emergem da relação do indivíduo com a sociedade. Nesse caso, a verdade pretende estabelecer unidade dentro da diversidade e a lógica da verdade de que fala Horkheimer é substituída não pela lógica da probabilidade, mas por uma lógica da conversação. A verdade é uma verdade relacional, pois está relacionada entre o indivíduo e a sociedade, entre as demandas do presente e a tradição, entre o sujeito e o ambiente objetivo.

A conclusão a que chegamos, após essa retomada do pensamento deweyano frente à crítica horkheimeriana, é a de que restaria o empobrecimento da experiência como problema a ser enfrentado pelo pragmatismo. Dentro desse intuito, o que interessaria, dentro do espírito de pensar com a filosofia da educação de Dewey os problemas sociais de nossos dias, não é propriamente a teoria crítica de Horkheimer, mas a tradição de onde emerge o seu pensamento. Isto é, a tradição da Escola de Frankfurt com Walter Benjamin, Theodor Adorno e o pesquisador contemporâneo Giorgio Agamben. Parece-nos que frente a essa linha crítica de diagnóstico do empobrecimento da experiência que o pragmatismo deweyano está sendo retomado atualmente como instrumento para se encontrar uma nova maneira de se fazer experiência diante do instrumentalismo da razão.

CAPÍTULO 4 - Os limites da experiência na contemporaneidade e as suas