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Quem nada sabe desse espaço da liberdade pode até ser um bom pai, cidadão e trabalhador, decerto também pode ser cristão, mas duvido que seja uma pessoa completa153.

148 Cf. GALLAS, A. Ánthropos téleios: l’itinerario di Dietrich Bonhoeffer nel conflito tra cristianesimo e

modernità, p.344.

149

Cf. ET, p 84.

150 ET, p. 87.

151 Cf. GALLAS, A. Op. Cit., p.344.

152 GIBELLINI, R. A Teologia do Século XX, p. 113. 153 RS, p.269.

A esse assunto Bonhoeffer dedicou uma particular atenção, pois essa questão tem uma forte relevância política. Por mandatos, Bonhoeffer entende a missão, de autoridade divina, conferida a uma instância terrena154. A doutrina dos mandatos não tem a tarefa de definir os âmbitos de dever da existência cristã, mas, de superar a contraposição entre dever e ser, isto é, de permitir uma existência cristã configurada com a realidade.

Já Gibellini, afirma que os mandatos são as “concretizações do mandamento de Deus na realidade do mundo” 155, confirmados por Bonhoeffer através dos textos bíblicos, que tenta, a partir da Palavra de Deus, descobrir que coisas devem ser feitas. Assim, os mandatos fazem parte de uma estrutura relacional enquanto realidade estruturada, ou seja, enquanto forma histórica na qual a vontade de Deus organiza a realidade, desenvolvendo a função de “sacramento ético”, isto é, como realidade da criação156.

A doutrina dos mandatos distingue quatro âmbitos nos quais os mandamentos de Deus assumem forma concreta, histórica. Mas tais âmbitos não supõem uma divisão da existência humana em esferas. E sim, abraçam a existência na sua totalidade. São eles, descreve Gibellini: “o trabalho e a cultura, que criam valores; o casamento e a família, que criam vidas; as autoridades, que conservam na ordem as realidades criadas; a Igreja, que concretiza a realidade de Cristo na pregação, na disciplina e na vida nova” 157.

Um ponto específico de Bonhoeffer é a ideia de que os quatro mandatos resguardam concomitantemente cada ser humano. A esse respeito, Gallas comenta que para Bonhoeffer essa é a autêntica interpretação da intenção de Lutero, que diz que Deus criou para cada um, um estado, para uns o matrimônio, para outros o governo, mas isso como uma possibilidade de abranger os diversos estados em uma e mesma pessoa158.

154

Cf. GALLAS, A. Ánthropos téleios: l’itinerario di Dietrich Bonhoeffer nel conflito tra cristianesimo e modernità, p.344.

155 GIBELLINI, R. Op. Cit, p. 113. 156 Cf. GALLAS, A. Op. Cit., p.348.

157 GIBELLINI, R. A Teologia do Século XX., p. 113. 158 Cf. GALLAS, A. Op. Cit, p.333.

A preocupação está em fazer dos mandatos instrumentos para uma compreensão de unidade da existência, ao invés de fragmentá-la. O homem existe, de fato, contemporaneamente em todos os âmbitos e nos quatro mandatos, assim, o cristão (configurado), vivendo com consciência a vida em todas as suas dimensões (último- penúltimo), assume a própria existência não como homem que renuncia a dimensão mundana para salvar a espiritual, mas como “ànthropos tèleios” 159 como homem integral. Essa perspectiva contém uma linha já desenvolvida em Discipulado.

É na unidade do agir e do viver concretos que se decide a relação entre os mandatos, e não são, ao contrário, os mandatos a determinar o modo dos âmbitos da existência, fragmentando-a. Por isso Bonhoeffer diz que esses se sobrepõem um ao outro160.

A consequência é que a Igreja não pode reivindicar uma superioridade própria em relação aos outros âmbitos, visto que nenhum mandato é divino em si, só o é na relação com Cristo; nessa relação, porém, todos os mandatos são, sem distinção, divinos. O específico da Igreja está em anunciar o senhorio de Deus sobre o mundo, isto é, sobre todos os mandatos. E nisso a Igreja se difere dos outros mandatos. Entre os diversos mandatos não há hierarquia161.

Outra consequência é que nenhuma autoridade pode se colocar acima dos mandatos. A ênfase a esse limite que os mandatos exercem está fortemente ligada à crítica a prevaricação totalitária, que tentava politizar cada âmbito da existência.

Bruno Forte escreve que “o termo mandato indica uma tarefa confiada por Deus ao ser humano” 162. Visto que dizem respeito ao que apreende cada ser humano em sua integralidade, e desse modo, confirmam a igualdade fundamental na dignidade do ser pessoal, o que serve de censura a qualquer tipo de discriminação. Esta tarefa, por outro

159 Cf. RS, p.280, teleios significa “inteiro”. 160 Cf. ET, p.160.

161 Cf. ET, p.160.

lado, não exclui, antes inclui na multiplicidade das funções, cada ser humano, na sociedade e na Igreja, de forma que as tarefas possam ser praticadas em respeito recíproco e participação comum para o bem de todos163.

É por meio dos mandatos que se torna possível o cumprimento do mandamento de Deus, que não somente compromete o ser humano como também o liberta, e faz isso comprometendo, para que este possa realizar sua missão no mundo de modo efetivo. Dessa forma o mandamento de Deus se transforma na “palavra concreta ao ser humano concreto”164, e já não pode ser encontrado fora do tempo e espaço.

Com isso, o mandamento “permite ao ser humano viver como tal diante de Deus e se torna o elemento em que se vive, sem que a gente se dê conta disso” 165. Como elemento da vida, significa liberdade de movimento e ação, liberdade do medo de decidir, de agir, significa certeza, confiança, ponderação, paz. Não porque nos limites da vida exista um ameaçador “não deves”, mas porque se aceita como sagradas instituições de Deus as realidades encontradas em meio à vida, e é porque se vive e se quer viver nelas, que estas são cumpridas. Bonhoeffer tenta abolir a ideia do mandamento de Deus como lei a ser rigorosamente cumprida, para transformá-lo em escolha livre ao seguimento, o que não significa agir conforme escolha própria, mas agir na liberdade que só em Deus é encontrada. Então já não é por obrigação, mas por amor que se cumpre o mandamento, que se honra os pais, se santifica o matrimônio, se respeita a vida e propriedade alheias166.

Como exemplo cita:

Se amo a minha mulher, se aceito o matrimônio como instituição divina, estabelece-se uma liberdade e certeza interior de vida e de ação no âmbito do matrimônio... Então a divina proibição do adultério não é mais o centro do qual gira todo o meu pensar e o meu agir... como se sentido e objetivo do matrimônio consistissem em evitar o adultério. Antes, o matrimônio mantido e livremente assumido, a superação, portanto, da proibição do adultério, é a pressuposição do

163 Cf. FORTE. B. Um pelo Outro, p.121. 164 ET, p.153.

165 ET, p.155. 166 Cf. ET, p.155.

cumprimento da divina missão do matrimônio. Aqui, o mandamento de Deus se tornou permissão de viver com liberdade e certeza o matrimônio167.

Portanto, o mandamento de Deus revelado em Jesus Cristo atinge o ser humano na Igreja, na família, no trabalho e através da autoridade 168, sendo “a única autorização para o discurso ético” 169, permitindo que tanto a Igreja, a família, o trabalho e o governo só tenham autorização divina para o discurso na medida em que “se limitam reciprocamente, lado a lado, e em conjunto, cada um faz valer à sua maneira o mandamento de Deus” 170.

O mundo, quer saiba, quer não, está relacionado com Cristo e este relacionamento se concretiza pelos mandatos de Deus no mundo171 e dá ao ser humano sua parcela de responsabilidade para a continuidade da vida da criação.