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Aliás, nada do que desprezamos no outro nos é totalmente estranho. Muitas vezes esperamos do outro muito mais do que nós mesmos estamos dispostos a realizar172.

A ética proposta por Bonhoeffer é a da participação responsável, do tomar parte na realidade do mundo, assim como ela se apresenta, para que se possa chegar cada vez mais perto do ideal querido por Deus pela reconciliação em Cristo173, ou seja, para que através da ação concreta em prol do próximo, o ser humano se torne cada vez mais humano, até atingir a plenitude em Cristo. “Essa vida como resposta à vida de Jesus Cristo chamamos de

167 ET, p.155. 168 Cf. ET, p.154. 169 ET, p.153. 170 ET, p.153. 171 Cf. ET, p.116. 172 RS, p.35.

‘responsabilidade’... significa que se empenhe a vida toda, que o lance seja de vida ou morte”174.

Por isso, a ética bonhoefferiana é uma ética que exige transcendência, exige o movimento de saída de si para ir em direção ao outro, afinal numa ética sem transcendência não há o compromisso de responsabilidade com o outro, não há a exigência do risco da própria vida em favor da criação, pois sua justificação não se encontra enraizada em Deus e é o próprio Deus quem chama ao comprometimento. Nessa perspectiva, agir com responsabilidade significa corresponder ao processo de unidade e reconciliação da realidade a partir de Cristo, e concretizá-lo na turbulência das tensões do próprio tempo. É nesse momento, em que um ser humano assume a responsabilidade por outros e com isso, se conforma à realidade, que surge a ação ética concreta. A responsabilidade acontece diante de Deus e por Deus, diante dos seres humanos e por eles; sendo sempre responsabilidade por causa de Cristo e só assim pela própria vida.

Essa estrutura de vida responsável, esboçada por Bonhoeffer, é determinada por dois fatores: “a vinculação da vida ao semelhante e a Deus e a liberdade da própria vida” 175. É a vinculação entre a vida, o próximo e Deus que coloca a própria vida na liberdade. Sem esse vínculo ou essa liberdade, não há responsabilidade, pois a vinculação entre vida, próximo e Deus, assume a forma da representação e da conformidade com a realidade, enquanto a liberdade apresenta-se no risco da decisão e na ação176.

Segundo Bonhoeffer, Jesus cristo é, por excelência, aquele que viveu de maneira responsável, toda sua vida, o seu modo de agir e sofrer é representação, e é nessa representação em favor de todos os seres humanos, que se encontra a raiz de toda a responsabilidade humana. O agir responsável é um agir na forma de representação177 e o preço da representação é carregar voluntariamente os fardos do outro. “Toda a vida do

174 ET, p.124. 175 ET, p.125. 176 Cf. ET, p.125. 177 Cf. ET, 128.

cristão consiste em carregar a cruz. É a comunhão da cruz em que um tem que experimentar o fardo do outro. Se não o experimentasse, não seria comunhão cristã” 178, assim Bonhoeffer define a ação responsável.

Se a figura de Cristo é caracterizada pela representação, a vida ética do cristão também: responsabilidade é representação. “A responsabilidade, vivida na representação e na conformidade com a realidade, pode significar até ‘a solidariedade com o pecado humano’” 179, completa Gibellini. Por isso, há um desafio à responsabilidade partindo do compromisso com Jesus e este compromisso gira em torno da busca por uma vida integral para todo ser humano.

Conforme Bonhoeffer, a vida, criada e preservada por Deus, possui um direito implícito, que é totalmente independente de sua utilidade social. O direito à vida subsiste no indivíduo e não em um valor qualquer, não existindo, diante de Deus, uma vida indigna de ser vivida180.

O ser humano responsável é levado, em suas reais condições, a relação com seu próximo concreto. Por isso, seu comportamento não está previamente ou rigidamente definido, como uma regra, mas surge da situação concreta apresentada que dá uma resposta condizente à necessidade encontrada, ou seja, em conformação com a realidade. O que não significa uma “mentalidade servil do fato consumado, da qual fala Nietzsche” 181, mas uma ação concreta adequada à exigência das circunstâncias. Dessa forma, o mundo se torna a área da responsabilidade concreta. Defrontar-se com o mundo de modo coerente com a realidade é, portanto, viver e agir tendo em vista que a responsabilidade de um é limitada pela responsabilidade do outro, “dentro desses limites, no entanto, ela abrange a realidade global” 182. Assim, cada um é responsável por uma parte, na construção do todo, “pois, toda existência humana, como tal, sempre está colocada no domínio da

178

VC, p.78.

179 GIBELLINI, R. A Teologia do Século XX, p.115. 180 Cf. ET, p.93.

181 ET, p.127. 182 ET, p.130.

responsabilidade. (“sempre”, significa não só desde de sempre, mas também para sempre)”183, afirma Frankl. Por isso, a responsabilidade jamais cessa.

Essa ética da responsabilidade, do amor pelos outros, não é nem pode ser simplesmente individualista, engloba sempre a comunidade. Dessa forma não há ser humano que possa eximir-se completamente da responsabilidade, pois faz parte de uma humanidade, que lhe remete a uma parcela de responsabilidade. E “quem quer assumir a responsabilidade de ter calado quando deveria ter falado?” 184, questiona Bonhoeffer, em parte, fazendo crítica aos cristãos que se calaram diante das barbáries cometidas pelo nazismo, num momento em que o ser humano, a seu ver, já não tinha preocupação com o outro, pois vivia em estado de “descompromisso” crescente na busca do prazer e da satisfação de seus desejos egoístas.

Na verdade, Bonhoeffer quer abrir as portas da ética cristã no que se refere à causa de Cristo e, de certo modo, ressaltar os aspectos da configuração: “’Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus”(Mt 5,10). Bonhoeffer observa que não se fala aqui da justiça de Deus, são bem-aventurados os perseguidos por uma causa justa e, se pode acrescentar, por uma causa verdadeira, boa, humana. Em sua análise diz que “Jesus se importa com aqueles que sofrem por uma causa justa, mesmo que não seja exatamente a confissão de seu nome; integra-os sob sua proteção, em sua responsabilidade”185. Partindo desse ponto, entregar-se por uma causa justa condiz com apreender a realidade do mundo como criação preservada por Deus e reconciliada em Jesus Cristo. É respeitar a legitimidade das coisas penúltimas e, configurado à Cristo, assumir a responsabilidade pelo bem da criação, com uma resposta concreta vivida no cotidiano e por meio dos mandatos, para a realização do mandamento divino: o amor.

Esse empenho requer a totalidade, pois o bem eticamente relevante é só aquele bem que é fruto concreto da presença de Deus na realidade do mundo. Isto significa que o

183 Frankl, V. E. Fundamentos antropológicos da psicoterapia, p.178. 184 VC, p.78.

homem pode indagar sobre a questão do bem apenas colocando-se, ele mesmo, como um todo indivisível, isto é, como pessoa constituída não só de vontade, intenção, projeto, mas também de ações; não só como indivíduo, mas também como membro de uma comunidade; não só como homem entre outros homens, mas como criatura entre outras criaturas186.

Para Bonhoeffer, a pergunta pelo bem tanto é formulada quanto respondida de acordo com as situações temporais da vida, ou seja, em meio à existência humana, “a pergunta pelo bem é inseparável da indagação pela vida, pela história. Perguntamos como criaturas, não como criadores” 187. A pergunta sobre o bem, na visão de Bonhoeffer, não gira em torno do que é bom em si, como princípio universal, mas do que é bom dadas as circunstâncias da vida atual, “assim, perguntamos pelo bem, não ignorando a vida, mas entrando nela”188. Não como quem vive só o “sim” ao mundo; nem tão pouco, somente o “não”, e sim, como quem vive numa ética da responsabilidade que se encontra na tensão, na unidade polêmica entre o sim e o não. “Nós ‘vivemos’ quando, em nosso encontro com os semelhantes e com Deus, o sim e o não se fundem para formar uma contraditória unidade, uma auto-afirmação altruísta, auto-afirmação na auto-entrega a Deus e aos seres humanos” 189.

O movimento da Ética bonhoefferiana tende a recuperar o senhorio de Cristo. É um alargamento de horizontes, que acontece progressivamente por meio das categorias indicadas, até a formulação da vida cristã como um existir para o mundo190.