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2. UMA PROPOSTA DE INTERVENÇÃO EM SALA DE AULA

2.3 A Teoria da Relevância

Fazer inferências e utilizar o raciocínio hipotético-dedutivo é fundamental para compreender como são formados os conceitos científicos, mas existem poucas atividades escolares formais especialmente destinadas a desenvolver essa capacidade nos alunos, surdos e ouvintes. Nesse sentido, o uso de modelos qualitativos na educação científica de surdos foi objeto de investigação em Salles et al. (2004 e 2005).

Salles et al. (2004) relatam experiência realizada com oito estudantes surdos que são expostos a três modelos qualitativos organizados gradualmente em níveis de complexidade. Os resultados mostram que os alunos foram bem consistentes na habilidade de reconhecer objetos e processos, construir cadeias causais e aplicá-las em determinadas situações e escrever uma redação sobre um acidente ecológico, usando linguagem pertinente aos processos físicos e sociais. Esses resultados confirmam a importância das representações espaciais e em forma de diagramas utilizadas nos modelos, fatores muito atrativos para alunos surdos, devido às suas habilidades visuais.

Dando continuidade às pesquisas nesse campo, a noção de relevância é explorada em Salles et al. (2007a). Os autores investigam a expressão do raciocínio

inferencial em textos produzidos na interlíngua7 dos surdos. Esses dados foram coletados em experimento realizado com nove surdos fluentes em Libras, aprendizes de Português como segunda língua, estudantes de ensino médio em escola da rede pública de ensino do Distrito Federal, publicado em Salles et al. (2005). O objetivo desse experimento foi investigar e testar a utilização de modelos qualitativos no ensino de conceitos científicos, em especial, explorar a representação de causalidade expressa nesses modelos.

A análise foi formulada em termos da noção de relevância proposta por. Sperber e Wilson (1995), que consideram informação relevante a informação que modifica e melhora a representação global do mundo. A modificação é obtida por meio do acionamento do dispositivo dedutivo humano, que leva em consideração propriedades semânticas que estão refletidas sob a forma de pressupostos; se a informação é relevante, o dispositivo dedutivo humano gera somente conclusões não-triviais, enquanto nas conclusões triviais o conteúdo dos pressupostos não é afetado, exceto pela adição de informação arbitrária. Os resultados desse experimento mostraram que os alunos reduziram o número de conclusões triviais e fizeram textos mais elaborados, melhorando o desempenho na construção de textos escritos em português.

O estudo de Salles et al. (2007a) apresenta aporte teórico para a discussão das questões lingüísticas examinadas nos textos coletados no estudo de Salles et al. (2005). Foram adotados dois parâmetros; um em termos da noção de relevância e outro em termos de complexidade textual.

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Um texto escrito em interlíngua equivale a um texto cuja estrutura lingüística das orações, no caso do surdo brasileiro, mescla a estrutura da língua portuguesa com a da Libras (FARIA, 2001, p. iii).

De acordo com a teoria da relevância, os enunciados produzidos no contexto de fala são interpretados sob a perspectiva da relevância da informação, observadas as máximas conversacionais: a qualidade (verdade), a quantidade (informatividade), a relação (relevância) e o modo (clareza). Conforme essa abordagem, a informação relevante resulta de um conjunto de pressupostos factuais (representações armazenadas na memória). Um pressuposto constitui um conjunto de conceitos ao qual se aplicam regras dedutivas e o dispositivo dedutivo se baseia nas propriedades semânticas depreendidas de pressupostos, ampliando a representação do mundo. Esse dispositivo dedutivo deve computar o conjunto completo de conclusões não-triviais porque todas as regras dedutivas inerentes à entrada lógica dos conceitos relativos a dado pressuposto são acessadas e avaliadas, enquanto conclusões triviais não são computáveis como parte do input lógico do conceito relevante.

Dessa forma, as conclusões triviais encontradas nas produções escritas não modificam as representações do mundo, enquanto as conclusões não-triviais modificam essas representações. Nesse estudo acrescenta-se a incidência relativa entre a quantidade de conclusões triviais e a quantidade de conclusões não-triviais. Conclui-se que o uso de modelos qualitativos no processo educativo modifica a representação do mundo; por meio do raciocínio inferencial o aluno surdo compreende o significado da informação, assimila o conceito e produz enunciados relevantes (efeito cognitivo).

Do ponto de vista da complexidade textual, os enunciados lingüísticos apresentam maior complexidade em termos de recursividade morfossintática. Nos textos analisados observou-se produção mais elaborada expressa na relação de causalidade e pertinência em que mais de dois elementos são envolvidos; a

contingência por meio de advérbios que marcam a seqüência temporal de eventos, conjunções de valor temporal ou pela apresentação seqüencial de eventos; nexo semântico de causalidade determinado por implicatura, uso de intercalações, aspectos coesivos não convergentes e formas verbais flexionadas.

Os resultados obtidos confirmam que existe grande heterogeneidade nos níveis de interlíngua, embora os estudantes surdos estejam no mesmo grau de escolaridade, Os autores recorrem a opcionalidade (SORACE, 1999, 2003 apud SALLES et al., 2007a), ou seja, ao estado de competência gramatical que consiste na variação entre formas lingüísticas em função do processo de aquisição. Outra hipótese é a variação paramétrica (CHOMSKY, 1995 apud SALLES et al., 2007a), segundo a qual, devido à inacessibilidade ao léxico funcional, aprendizes adultos de segunda língua não adquirem categorias funcionais que não são encontradas em sua língua materna. A respeito da heterogeneidade acrescenta-se ainda a situação de opcionalidade residual ou de propriedades que resistem à reestruturação (SALLES et al., 2007a).

Considera-se que as observações descritas em relação ao parâmetro de complexidade textual e morfossintática de enunciados lingüísticos não apresentam evidências conclusivas para avaliação do uso de modelos qualitativos como ferramenta educacional.

Nesse contexto, os resultados encontrados no estudo de Salles et al. (2007a) confirmam aqueles obtidos no experimento descrito em Salles et al. (2005), que mostraram que estudantes surdos, com o apoio de modelos qualitativos, produziram informações relevantes fazendo uso do raciocínio inferencial em produções lingüísticas. Pode-se assim estabelecer a correlação entre o uso de modelos qualitativos e a capacidade de raciocinar por inferências.