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Muitas teorias levam em conta a postura evolutiva da sociedade – evolução é adaptação e transformação – não necessariamente progresso. Assim também o é a teoria de Luhmann.

Neves (2004, p.11) 6 traz lição importante para quem pretende estudar e compreender as teorias de Luhmann:

Mas para aqueles interessados em aplicar a teoria luhmanniana, cabe uma advertência: a teoria de Luhmann não é uma teoria de chegada, projeto acabado e fechado, mas sim uma teoria de partida, aberta a novas incursões e alternativas. Este é o verdadeiro “espírito” de Luhmann.

Segundo Delduque (2011), a teoria sistêmica de Niklas Luhmann tem quatro tipos de sistemas: não vivos, vivos, psíquicos e sociais. O primeiro, sistema não vive, pode ter a máquina como exemplo. O segundo: sistema vivo é composto pelas células, por conseguinte: um corpo humano, animal. O sistema psíquico é composto pelo pensamento e o sistema social é composto por comunicação. À exceção do sistema não vivo, os demais são capazes de se autocriar – o que é denominado – também na teoria Luhmanniana de autopoiese7.

Bem ensina Kunzler (2004, p. 127) que para apreender a teoria sistêmica de Luhmann é necessário superar alguns obstáculos:

O primeiro deles é a premissa de que a sociedade é constituída de pessoas e de relações entre pessoas. Segundo a teoria sistêmica, a sociedade é constituída exclusivamente por comunicação. As pessoas estão, na verdade, no ambiente do sistema social. Pessoas são um outro tipo distinto de sistema chamado de sistema psíquico. O segundo obstáculo epistemológico diz que as sociedades têm fronteiras territoriais e/ou políticas. Entretanto, como sociedades são compostas apenas por comunicação e esta não pode ser limitada no espaço, sobretudo com o auxílio da tecnologia moderna, conclui-se pela inexistência de fronteiras separando diversas sociedades. Há um único sistema social mundial. Finalmente, o terceiro obstáculo é a separação entre o sujeito e o objeto. Para Luhmann não há nenhum observador externo ao sistema social que possa analisá-lo com distância e imparcialidade.Ninguém detém um ponto de vista absoluto, considerado como sendo o único correto. O conhecimento é resultado da observação de segunda ordem, no qual um observador observa o que um outro observador observou. Desta maneira há diversas descrições, sob pontos de vista diferentes, mas todas com o mesmo valor. A possibilidade de múltiplas descrições na sociedade moderna levou Günther (1979) a chamá-la de “policontextual”.

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NEVES. Marcelo C.P.; Plural Sociologia in Entrevista concedida à Rômulo Figueira Neves. São

Paulo; USP :11: 121- 133 – 2º Sem – 2004. Disponível em

http://www.fflch.usp.br/ds/plural/edicoes/11/entrevista_2_Plural_11.pdf. Acesso em 19.12.2012 7

A autopoiese é um termo cunhado pelos biólogos Humberto Maturana e Francisco Varela, inicialmente para as áreas clínicas, originado da junção dos termos “auto” (próprio objeto) e “poiese” (reprodução/criação). O termo teve a finalidade de designar a molécula enquanto algo autocriado, buscando explicar que um ser vivo é um ser autopoiético na medida em que, mesmo caracterizado como rede fechada de processos de produções moleculares, onde as próprias moléculas produzidas geram com suas interações, a mesma rede de moléculas que as produziu. Foi trazido para a sociologia por Luhmann, na década de 1980. (TRINDADE, 2008).

Os referenciais usados por Niklas Luhmann derivam de várias áreas e sua compreensão e aplicabilidade em área distinta da original, confirma exatamente o que ele descreve: os subsistemas sociais tanto formam a si mesmos, quanto formam o sistema social global. Para dar conta da conformação social, Luhmann indica a comunicação como fator de organização, o que explicaria a configuração dos subsistemas conforme a função que exercem.

A partir deste entendimento um subsistema social tanto captura no ambiente, quanto reproduz ao ambiente, o que diz respeito à sua função – ou seja, os subsistemas sociais têm códigos próprios.

Segundo a teoria de Luhmann, os subsistemas ao captarem sentidos no ambiente, alteram seus códigos próprios e se mantém vivos e, por conseguinte, alteram o sistema global, que também se mantém vivo. Esta captação de estímulos ou de sentidos recebe por Luhmann o nome de irritação.

Todavia é preciso considerar que o ambiente tem inesgotáveis possibilidades de irritação e a escolha carrega em si a contingência. Uma mesma escolha pode acarretar resultado diverso, uma escolha diferente pode levar ao mesmo resultado, uma escolha diferente pode levar a um resultado diferente – a isto, Luhmann denomina contingência. Pelo que quanto mais complexo, mais contingente.

Lidar com complexidades e contingências gera expectativas. As expectativas são estratégias de adaptação ao ambiente e elas trazem em seu âmago condições de existência originais: (i) a expectativa é mantida independente do resultado alcançado, ou (ii) a expectativa é alterada. As expectativas baseadas em outros códigos que não os fatos (contrafáticas) são chamadas normativas. Aquelas baseadas nos fatos são chamadas cognitivas.

A partir desta lógica, se a CF, enquanto norma confere direito à saúde e não há uma prestação efetivamente cumprida – a expectativa normativa foi frustrada pelo fato. Essa frustração faz com que a expectativa normativa seja requerida nos tribunais. Considerando que a existência da norma pode ser anterior ao fato, ela é capaz tanto de regular a expectativa, quanto de legitimar situações fáticas ou jurídicas. Portanto, no direito, há diferença entre o fato e a norma.

Villas Bôas (2006, p.206) ensina que “o direito deve ter altas possibilidades de se impor, já que de outro modo haveria a resignação diante dos fatos”. Isto interessa sobremaneira.

Para o sistema jurídico o reconhecimento de validade de uma norma, deve ser outra norma - a CF. E este reconhecimento de validade deve ser feito também por tribunal superior, capaz de interpretar e orientar a aplicabilidade das normas sobre os fatos – o STF. O STF utiliza códigos próprios ao subsistema jurídico no exercício de suas funções e sob este prisma, uma justificativa crível para o subsistema religioso, como exemplo, não se aplica ao subsistema jurídico.

Conforme leciona Kunzler (2004) o que “não fizer sentido para um subsistema será descartado”, remanescendo na complexidade do ambiente.

No caso aplicável a esta pesquisa, no item que indicar a aferição da eficácia dos argumentos – aqueles que não interessaram ao STF foram considerados “não fortes” – e mesmo não utilizados no código do subsistema jurídico permanecem no ambiente, melhor, na complexidade do ambiente. Complexidade, para Luhmann (1999) deve ser compreendida como a “totalidade das possibilidades de experiências ou ações”, cuja ativação permita o estabelecimento de uma “relação de sentido”.

Outra lição importante a ser apropriada é que na teoria dos sistemas de Luhmann (1999) quando há sobreposição de subsistemas, estes perdem suas especificidades e passam a tomar decisões com códigos alheios – ocorrendo o que é denominado de corrupção.

Então para Luhmann a comunicação entre subsistemas é corrupção? Não. Os subsistemas são fechados para si e abertos para a complexidade do ambiente. A troca de informações decorrentes das relações entre subsistemas é denominada de acoplamento estrutural, que ocorre quando um subsistema “irrita” outro.

Campilongo (2002) indica que o acoplamento estrutural é a “forma específica de um sistema” - ao pressupor a situação e as mudanças de seu ambiente – “de coligar um contexto às suas operações internas”. Isto revela chance de aprendizagem entre subsistemas, aprendizagem traduzida por irritação contra a qual o sistema se mantém ou se modifica.

Aplicando-se ao caso concreto, a Audiência Pública da Saúde pode ser compreendida como um espaço dedicado às irritações. E ainda que seu objetivo tenha sido provocar no subsistema jurídico acoplamento estrutural, seu alcance, pode ter sido ainda maior – considerando que nesta ocasião vários subsistemas apresentaram seus códigos. Isto porque, como leciona Mathis (1998, p. 13) “o

ambiente apresenta para o sistema inúmeras possibilidades. De cada uma delas surgem várias outras, o que dá causa a um aumento da desordem e contingência”.

Ao convocar a Audiência Pública da Saúde, o STF expressou sua abertura à complexidade do ambiente e em decorrência angariou um número de possibilidades maior que suas experiências.

Experimentar é escolher entre tantas irritações – no caso da pesquisa: argumentos - aqueles que serão acoplados. Experimentar é um processo de compreensão e de redução de complexidade. Reduz-se por não se conseguir lidar com o excesso e para criar um código, uma técnica e um âmbito decisório, próprios – sua comunicação interna e com os demais subsistemas.

O modelo de Luhmann pressupõe um rompimento com a tradição humanista e com boa parte da sociologia que considera o homem elemento essencial da sociedade. Ele considera o homem como ambiente da sociedade e por ser o ambiente mais complexo que o subsistema - o que lhe confere margem de liberdade, imprevisibilidade e autonomia - o sistema global não pode manobrá-lo ao seu intento.

Luhmann quis atenção para o fato de que para observar seriamente os indivíduos, nenhum ser humano pode ser parte de um sistema. Ao deslocar os indivíduos para o ambiente da sociedade, Luhmann define que a operação que confere unidade ao sistema social é a comunicação.

Um subsistema apreende a comunicação de outro como complexidade do ambiente - vista de forma não lapidada, cujo sentido aplicado pelo subsistema comunicante pode nem ser compreendida. Cada subsistema tem seu idioma, sua gramática, seu código de validação produzido a partir dos critérios para a redução de complexidade. Há na lição de Mathis (1998, p. 13) um comunicado importante: “A visão do mundo de um sistema funcional é aquela que o seu código lhe permite ver”. Mas se a redução de complexidade é necessária à conformação de subsistemas, como o sistema social global que não tem como reduzi-los se vê? A partir das reduções havidas em cada subsistema mantem-se vivo e não caótico o sistema global.

Ainda assim os vínculos, as relações e sobreposições entre subsistemas é um problema prático e teórico da sociedade. A atribuição de papéis distintos faz pensar na autonomia dos subsistemas e também nos seus entrelaçamentos.

É o que acontece no subsistema jurídico em relação à prática do direito sanitário. A metodologia de Luhmann, que não é simples, permite um reexame original das relações entre política e direito, observadas em lócus determinado: A Audiência Pública da Saúde. Isto porque esta pesquisa tem por contexto a busca pela efetivação do direito à saúde, pela via judiciária e todas as complexidades e contingências envolvidas no assunto.

No Estado de Direito, o subsistema jurídico fornece respostas legais aos problemas da política. Ocorre que os problemas da política são trazidos de forma deslocada de seu código e são selecionados pelo subsistema jurídico com critérios particulares e interessantes a esse subsistema.

O problema se apresenta quando o direito procura determinar a política e a política limitar o direito. E para este enfrentamento, o STF, entendeu por adequado abrir um campo de irritações ao convocar a Audiência Pública da Saúde.

E porque foi necessário adotar uma estratégia deste porte? Na medida em que os subsistemas adotam códigos, geralmente binários (reducionistas de possibilidades e de complexidade) incluir ou não valores é uma tarefa exclusiva para este código. A autopoiese do subsistema jurídico é organizada pelo código “Direito/Não direito” e uma vez acionado para dar solução às expectativas normativas quanto à efetivação de direitos sociais, portanto, oriundas do subsistema político, o código do subsistema jurídico passa a não oferecer respostas – estabelecendo problemas em sua auto-reprodução.