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TEORIAS E IDEIAS RACIAIS NO BRASIL – DO SÉCULO XIX À ORGANIZAÇÃO

CAPÍTULO 3 – CENAS ANTERIORES À CONSTITUIÇÃO DE 1988: FORMAÇÃO E

3.1. TEORIAS E IDEIAS RACIAIS NO BRASIL – DO SÉCULO XIX À ORGANIZAÇÃO

O século XIX conheceu o período do desenvolvimento e afirmação da ciência positivista e determinista. A publicação de A origem das espécies, de Charles Darwin, em 1859, estabeleceu as bases para a disseminação do paradigma evolucionista nas ciências naturais e também no pensamento social. O vocabulário evolucionista como “adaptação” e “sobrevivência do mais apto” ganhou espaço no universo intelectual que debatia as diferenças e similitudes entre os povos e raças. Para a escola evolucionista social, a humanidade seria uma só, com uma única origem e história e se desenvolveria linearmente por meio de estágios sucessivos. A humanidade, para os evolucionistas, é representada por uma pirâmide, divida em estágios que

iam da selvageria – uma espécie de infância - à civilização, cujo modelo era a sociedade européia da época (Laraia, 1979).

As máximas de Darwin para o mundo natural também foram recuperadas por filósofos para apontar as diferenças entre as raças como sendo essenciais. Esses teóricos ficaram conhecidos como darwinistas sociais e transformaram a diferença em objeto de estudo, objeto da ciência. Dentre os darwinistas sociais, tiveram grande eco os deterministas raciais. Distanciando-se do princípio da humanidade como una e igual, autores como Arthur de Gobineau e Le Bon acreditavam na correspondência entre as características físicas e as características sociais, determinando que a divisão do mundo em raças corresponderia a uma divisão entre culturas. Conformou-se também uma doutrina psicológica coletiva, que estabelecia relações entre comportamento e raça.

Esse saber sobre as raças gerou um ideal político de sociedade. A partir do diagnóstico da inferioridade moral e cultural de algumas raças, cunhou-se uma prática dentro do darwinismo social, a eugenia. Com a respeitabilidade da ciência, a eugenia tinha por objetivo intervir na reprodução da sociedade para uma suposta melhoria biológica, moral e cultural (Schwarcz, 1996).

No Brasil, até o século XX, as teorias do determinismo racial tiveram impacto no pensamento social, tendo sido adotadas nas instituições de pesquisa e de ensino brasileiras predominantes na época. De forma geral, destacavam o caráter essencial das raças e o lado nefasto da miscigenação, já avançada no Brasil.

Os primeiros escritos sobre o negro brasileiro seguiam essa orientação. O psiquiatra Raimundo Nina Rodrigues foi o primeiro intelectual a escrever sobre a influência da raça e da cultura negra sobre o comportamento e a sociedade. Em seus estudos sobre criminalidade e loucura, Nina Rodrigues pressupõe o desigual desenvolvimento filogenético da humanidade entre suas diversas raças e atribui à presença do negro a responsabilidade pelo subdesenvolvimento brasileiro (Laraia, 1979). O autor aceitava os ditames do racismo científico, inclusive suas asserções acerca da inevitável “degenerescência mulata” de um país miscigenado (Andrews, 1997)

O pensamento do autor exerceu grande influência no meio acadêmico baiano, tendo escrito entre 1886 e 1906 uma série de artigos no campo da medicina associada à questão racial. Nina Rodrigues foi editor chefe e professor da Faculdade de Medicina da Bahia, tendo influenciado dezenas de autores na adesão das ideias deterministas raciais (Andrews, 1997).

Oliveira Vianna (1883-1951), já adentrando o século XX, avançou mais que Nina Rodrigues no desenvolvimento das ideias da inferioridade dos negros mestiços. Apregoava que a nação brasileira não estava fadada à inferioridade cultural dos países onde predominava a raça negra. O incremento no contingente de brancos operaria uma melhoria geral na “cultura” do país. Segundo Andrews (1997), a tese do branqueamento salvou o Brasil da triste perspectiva de degeneração racial inevitável e reverteu-se em ações estatais concretas. A Constituição de 1891 proibiu a imigração africana e asiática para o país e os governos federal e estaduais da Primeira República (1891-1930) empreenderam esforços orquestrados no sentido de atrair a imigração européia ao país.

Não se trata aqui de citar todos os autores que difundiram esse pensamento, mas de apontar que, nesse contexto, a presença do negro e a mestiçagem existente era descrita como constituindo explicação central para o atraso do país e que a discussão racial deixava de lado o debate sobre as condições de cidadania do negro no Brasil (Schwarcz, 1996).

Foi nos 1930 que o papel do negro e da mestiçagem passou a ser concebido de forma menos pejorativa. A obra Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre (1992), introduz o pensamento culturalista americano como modelo de análise das relações raciais no Brasil, desqualificando o modelo biológico. Se vale do critério histórico-cultural para caracterizar as raças. Desse modo, analisa as relações íntimas entre senhores e escravos. A partir do estudo do contato sexual entre senhores brancos e escravas negras, o autor aponta uma união harmoniosa das raças, simbolizada e corporificada pelos mulatos racialmente mistos, que Freyre considerava não como um estágio humano na estrada do embranquecimento, mas como elemento característico da sociedade brasileira.

A análise do autor qualifica positivamente a sociedade senhorial e vê a miscigenação apenas pelo lado positivo e cordial, pouco destacando a violência inerente ao tema. Para Freyre, o preconceito existente decorre da situação de classe e não de raça (Schwarcz, 1996; Laraia, 1979). Freyre é apontado como o intelectual brasileiro mais importante da construção da idéia de que o Brasil seria uma democracia racial, idéia que ganhou grande importância nas ciências sociais brasileiras e tornou-se o centro da construção da identidade nacional do país. Segundo Andrews (1997), os escritos de Freyre tornaram-se a base de uma nova ideologia semi-oficial propagada em declarações públicas, escolas e universidades, e na mídia nacional.

Nos anos 30, pesquisadores estrangeiros são atraídos para o estudo das relações raciais no Brasil. Entre eles está o americano Donald Pierson, que desenvolveu estudos acerca da situação do negro na Bahia, tendo publicado o livro Negroes in Brazil: A study of race contact

at Bahia (1942), fruto de seus estudos realizados entre 1935 e 1937. Pierson confirma o argumento de Freyre do preconceito como uma questão de classe. Ressaltou que o problema dos descendentes de escravos era econômico e educacional e não racial. Assim, a Bahia seria um lugar de convivência pacífica entre brancos e negros, um exemplo de harmonia racial a ser seguida. Em síntese, segundo Laraia (1979, 165):

Os trabalhos de Freyre e de Pierson caracterizam a primeira das posições acadêmicas sobre o assunto: aquela que atribui às diferenças de classes e das tensões sociais o problema do negro. A segunda posição seria aquela que, mesmo admitindo a existência do preconceito, alega que o critério de cor é irrelevante para a definição dos diversos grupos sociais.

Até os anos 50, intelectuais brasileiros sustentaram internacionalmente que o Brasil era um grande “laboratório racial”, que serviria de exemplo para possibilidades de convivência pacifica entre as raças outros países, se comparado com os Estados Unidos e com a África do Sul.

No entanto, é nessa mesma década que ocorre uma mudança na abordagem dos estudos sobre a questão racial, que passa a ser tratada sob o ângulo da produção de desigualdades (Plínio dos Santos, 2010). Interessada pela imagem de laboratório racial, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) patrocinou um conjunto de pesquisas sobre as relações raciais no Brasil.

É frequente a afirmação de que as pesquisas patrocinadas pelas UNESCO frustraram a expectativa inicial da instituição. Os trabalhos produzidos tiveram em comum o reconhecimento da existência do preconceito e da discriminação racial no Brasil. Tais estudos foram um catalisador da produção sobre a situação racial brasileira (Maio, 1999). Grande número de obras foram publicadas nos anos 60 e 70, como Brancos e negros e São Paulo (1959), de Roger Bastide e Florestan Fernandes; As metamorfoses do escravo, de Octávio Ianni (1962); Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional, de Fernando Henrique Cardoso (1962), A integração do negro na sociedade de classes (1965) e O negro no mundo dos brancos (1972), de Florestan Fernandes.

A partir dos anos 50, iniciou-se assim, um ataque ao mito da democracia racial. Para os autores dos anos 70 não existem mais dúvidas de que o preconceito racial existe no Brasil. A idéia de uma democracia racial brasileira dificultava a percepção das desigualdades raciais existentes na sociedade. Problematizando nossa heterogeneidade cultural e racial, Florestan

Fernandes, lamentava à época que enquanto no meio acadêmico tecia-se o consenso da inexistência da convivência harmônica e democrática entre as raças, a sociedade mais ampla estava pouca atenta para os significados dessas descobertas cientificas. A crença na democracia racial ainda vigorava entre os “leigos” (Fernandes, 1960). George Andrews (1997), apesar de reconhecer que durante os anos 80 a democracia racial perdeu seu domínio inquestionável na vida nacional brasileira, aponta que no período da ditadura militar (1964-85) foi justamente quando o discurso de unidade nacional baseado na idéia de democracia racial era mais evidente. O combate ao mito da democracia racial bem como a afirmação de uma identidade negra foram os grandes temas que permearam as lutas do movimento negro contemporâneo que se constitui na década de 70 no Brasil, o qual descrevo brevemente a trajetória, tendo em vista sua importância para o agendamento do direito à propriedade das terras de quilombo.