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4.4 Terapia e transformação

4.4.4 Terapia: um resgate do sentido de reautoria

Na seção “Terapia e Transformação” falamos das mudanças de cada indivíduo separadamente, já que cada um deles viveu um processo singular, tendo cada um percebido transformações específicas e significativas de acordo com suas biografias. Porém, podemos encontrar pontos em comum nos três entrevistados. O estilo das entrevistas foi marcado por uma apresentação do estado anterior à terapia, seguida de uma descrição de como foi o processo e das mudanças percebidas. Apesar do processo de Eduardo ter sido marcado por sua busca por autoconhecimento, enquanto a questão de Zilma girava em torno da resolução de um luto, e o processo de André comparável a uma batalha entre vozes opostas, as mudanças ocorridas durante a terapia, de forma geral, dizem respeito a um processo de fortalecimento da autoria e descoberta de novas facetas e habilidades:

A mudança caracteriza-se como uma transformação na história do self, favorecendo narrativas construídas na condição de autoria, expressas na própria voz, favorecendo a separação das pessoas, em relação aos discursos

subjugadores do self. (GRANDESSO, 2000, p. 258)

Como vemos, a mudança terapêutica está relacionada a uma mudança do self, que se torna mais livre e criativo para agir e escolher. Segundo a experiência de Grandesso (2000) sobre a transformação terapêutica, seus clientes “emergiram como novos selves, resgatada sua condição de autores, protagonistas de suas próprias existências, mais seguros e confiantes de si mesmos” (GRANDESSO, 2000, p. 378).

Queremos salientar, portanto, a terapia como um processo de fortalecimento do sentido de reautoria desses indivíduos. Para White e Epston (1993) uma terapia inspirada em um modo narrativo de pensamento, fomenta o sentido de reautoria de cada pessoa, ao trabalhar com a narração de sua história. A palavra autoria traz implícita a

ideia de pessoa como agente autônomo e “a noção do sujeito como autor de suas próprias ações no mundo, o que em si apresenta uma implicação moral e social.” (GRANDESSO, 2000, p. 73). Autoria5, então, vem falar de agência pessoal.

Segundo Grandesso (2008), Michael White compreende a agência pessoal como uma autoregulação de ações responsáveis e autônomas, fundadas na colaboração social. A agência é o grande ponto que diferencia o modo narrativo de situar a pessoa, do modo lógico-científico. Este entende que forças internas e externas agem modelando a pessoa, que é passiva frente a essas forças. O modo narrativo, por sua vez:

sitúa a la persona como protagonista o como participante en su propio mundo. Es un mundo de actos interpretativos, un mundo en el que volver a contar una historia es contar una historia nueva, un mundo en el que las personas participan con sus semejantes en la “re-escritura”, y por tanto en el moldeado, de sus vidas y relaciones (WHITE; EPSTON, 1993, p. 93).

McLeod (2004), em concordância, acredita que há uma relação entre as noções da Psicologia Popular, focada na agência pessoal, e a estrutura narrativa. A agência, formada a partir da narração de histórias, afasta-se da visão moderna de pessoa guiada por estados internos, e aproxima-se da Psicologia Popular, onde o indivíduo é visto como tendo propósitos e intenções. Segundo White (2004), a Psicologia Popular:

lança as pessoas como mediadores ativos, negociadores, e como representantes de suas próprias vidas, separados e em união com os outros. É uma psicologia que foca as pessoas vivendo suas vidas de acordo com certas intenções e propósitos, na busca do que importa para elas (tradução nossa) (p. 20).

Nesse sentido, expressões como “crenças”, “valores” e “compromissos” ganham ênfase para falar de estados intencionais, em oposição às noções de “motivos inconscientes”, “traços de personalidade” e “instintos” que marcam a perspectiva moderna valorizadora dos estados internos. A partir dessa mudança de perspectiva, a terapia passa também a ser vista de forma diferente. Goolishian e Anderson (1994) entendem a terapia como a mudança das autonarrativas do self. Os autores partem da

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Escolhemos traduzir agencypor “autoria”, entendendo que a palavra “autoria” traz implícita a noção do sujeito como dotado de relativa autonomia para usar os recursos linguísticos socialmente disponíveis, portanto, podendo fazer escolhas quanto aos repertórios e formas de narrar o que lhes acontece. Assim, o sujeito pode contar histórias alternativas que lhe posicionam mais favoravelmente, fortalecendo a noção de si e sua condição de protagonista e narrador de si mesmo, embora ninguém seja propriamente “autor de si” (RANKIN, 2002).

premissa de que os seres humanos são criadores de significado e intérpretes de seu próprio self, sendo toda ação, intencional e situada em um contexto histórico e cultural.

Na linguagem, criar significado implica narrar histórias. Portanto, o self, em uma perspectiva pós-moderna, pode ser considerado uma expressão dessa capacidade para a linguagem e a narração. Segundo Goolishian e Anderson (1994), o self como narrador é visto como resultado da produção de significado por meio da linguagem.

O self é um modo de aprender a caracterizar no discurso a própria capacidade como agente, como alguém que pode fazer, como ator. O self não é um ator, uma descrição ou uma representação, mas uma expressão mutável de nossa narração, uma maneira de contar nossa individualidade (p. 298).

Os teóricos acreditam em uma coautoria narrativa. “Não somos mais que coautores das identidades que construímos narrativamente” (GOOLISHIAN; ANDERSON, 1994, p. 300). Nas palavras de Paul Ricoeur, “aprendemos a nos tornar o narrador e herói da nossa própria história, sem na realidade virarmos o autor de nossas próprias vidas” (RICOEUR, 1991, p. 32 apud RANKIN, 2002, p. 7). O filósofo acredita que somos coautores da vida e autores da historia. Diferente de um autor que escreve uma história de ficção, não temos o controle de tudo em nossa história de vida. Dividimos a coautoria de nossas vidas com a cultura, que oferece as grandes narrativas das quais nos utilizamos para construirmos as nossas narrativas individuais; com as instituições sociais que restringem nossas escolhas pessoais; com os outros indivíduos com quem nos relacionamos direta ou indiretamente, e que dão à vida um caráter de imprevisibilidade. Segundo Gonçalves (1998), “não somos mais que a multidão de personagens que lançamos no mundo da experiência. Essas experiências devolvem-nos um sentido de autoria, mas não um sentido de identidade” (p. 137). Aqui o teórico contrapõe-se a ideia de identidade como algo fechado, único e já pronto, preferindo trabalhar com o conceito de autoria que permite falar de abertura, multiplicidade e construção. Não somos caracterizados por um só personagem, idêntico a si mesmo, como o conceito de identidade evoca. Autoria está relacionada à forma como damos sentido às múltiplas histórias, por vezes contraditórias, que vivemos. O termo remete à qualidade e ato de autor, que é quem escreve a história. A reautoria, portanto, fala da capacidade de se recriar, se reescrever, como um artista que tem a si mesmo como matéria prima. Não somos a unidade de uma identidade, mas a flexibilidade de um agente que se constrói e age com autonomia.

Possuir autogenciamento ou um senso dele significa ter a habilidade de comportar-se, sentir, pensar e escolher de um modo libertador, que abra novas possibilidades ou simplesmente nos permita enxergar que essas possibilidades existem. Agenciamento refere-se não apenas a fazer escolhas, mas a participar da criação de uma expansão das escolhas possíveis. O conceito de agenciamento pode ser comparado a ter uma voz e ser livre para usá-la ou não (ANDERSON, 2011, p.191).

Para Anderson (2011), autoagenciamento seria, então, a “percepção pessoal de competência para ação” (p. 191). Indica intencionalidade, escolha e liberdade para recriar-se. A terapia se faz importante nesse processo, pois é o ato de contar histórias que dá expressão à autonomia humana e nos devolve um sentido de agência (ANGUS; MCLEOD, 2004). São através das narrativas autobiográficas que as pessoas se tornam “autores” e obtém um senso de autoagenciamento.

Através do ato de articular um ponto de vista específico, incluindo intenções, propósitos e objetivos, em relação a um conjunto de ações e desdobramento de eventos, a narração de histórias dá expressão à agência humana (tradução nossa) (ANGUS; MCLEOD, 2004, p. 369).

Sendo a narração essencial na construção do sentido de agência, a terapia se faz relevante como o ambiente propiciador da construção narrativa, já que “quando nos é negada a oportunidade de expressar nossa agência, experienciamos sofrimento” (MURRAY, 2008, p. 115). O sofrimento do cliente está, assim, relacionado a uma perda de seu senso de agência. Zilma, por exemplo, perdeu a capacidade de agir e viver normalmente após a morte do filho. André também se viu paralisado e anestesiado em decorrência de um processo de depressão. Por fim, Eduardo relata que não conseguia encontrar sentido para as coisas que fazia, demonstrando uma dificuldade em sua capacidade para ação. Nesse sentido, Duero (2006) explicita o processo de restauração do sentido de agência que ocorre em terapia, em decorrência da construção de novas narrativas.

cabe citar una observación de Goolishian y Anderson (1973) quien cree que durante la terapia el terapeuta y el paciente trabajan fundamentalmente en la restauración del “sentido de agencia”, a fin de que el segundo llegue a sentirse mejor capacitado para iniciar acciones competentes. “...La agencia e intención son funciones de las narrativas que desarrollamos: nuestras narrativas nos dan un sentido de agencia (...) El cambio en terapia no es la resolución de problemas sino el restablecimiento del sentido de agencia que es paralelo al desarrollo de nuevas narrativas y, en consecuencia, nuevas intenciones que sean consistentes con esa agencia. Si la experiencia terapéutica es vivida como exitosa, lo que la gente experimenta entonces es una sensación de libertad: ahora puede tomar la acción por sí misma” (Goolishian y Anderson, 1973: 311) ( p. 146).

A agência seria uma função das narrativas desenvolvidas na clínica. É através da construção de novas histórias, que a pessoa sente-se livre para agir, e é essa sensação de liberdade para a ação que se configura como a transformação terapêutica, e não o desaparecimento do problema em si. André, por exemplo, ao fortalecer seu sentido de agência, tornou-se capaz de refletir sobre suas ações e escolhas: “agora com a terapia isso me leva a refletir sobre o que eu tô fazendo, em que lugar eu tô errando (pausa) tá me ajudando a caminhar no decorrer da vida.” Além disso, relata um sentimento de liberdade ao perceber novas facetas de si. Esse sentimento de liberdade é próprio da agência pessoal:

Quando eu penso em autoagenciamento, penso em duas palavras que os clientes frequentemente usam para descrever os resultados de uma terapia bem-sucedida: liberdade (de passados, presentes e futuros aprisionadores) e esperança (de um futuro diferente.) (ANDERSON, 2011, p. 191).

A possibilidade de poder se libertar dessas construções do passado e, consequentemente, poder construir novas percepções sobre si, traz para a pessoa em terapia um senso de agenciamento, de ter certo grau de controle sobre sua vida. A terapia seria o lugar onde novas potencialidades podem ser trabalhadas, capacitando o indivíduo a lidar de forma diferente com seus desafios. Na terapia, Zilma desenvolveu uma maior capacidade de ação e de executar suas escolhas: passou a estudar, sair, conversar com os colegas da sala, desenvolveu suas habilidades sociais e fez muitos cursos por indicação da terapeuta. Hoje trabalha com flores e decoração. Isso a ajudou a ter novas fontes de renda e melhorar as relações pessoais.

O resultado da mudança terapêutica implica, portanto, resgatar ou criar competências, recursos e habilidades apresentados em narrativas do self transformadas em novas redescrições ou, até mesmo, em novas autobiografias. (GRANDESSO, 2000, p. 259)

Ao explorar novas habilidades, Zilma passou, então, a desenvolver uma nova autobiografia, não mais fixada no papel de mãe, mas descobrindo que ela pode também ser mulher, estudante, amiga, entre outras vozes. “A mudança terapêutica decorre do estabelecimento de diferenças que possam ampliar as possibilidades experienciais da pessoa envolvida” (GRANDESSO, 2000, p. 296). Também podemos ver o desenvolvimento de novas ações na história de Eduardo. O estudante atribui à

terapia o êxito de ter ingressado na universidade pública, demonstrando que a terapia o capacitou para tal conquista, fortalecendo seus próprios recursos, já que uma vez o sentido de agência é restaurado, a pessoa sente-se mais segura e capaz.

Como forma de trabalhar a reescritura de histórias, e a consequente emergência de um senso de autonomia nas pessoas, White propõe a separação da pessoa de seu problema, através das conversações externalizadoras:

Cuando las personas se separan de sus relatos, pueden experimentar un sentimiento de agencia personal; y a medida que se apartan de la representación de sus relatos, se sienten capaces de intervenir en sus vidas y en sus relaciones. (WHITE; EPSTON, 1993, p. 33)

Na história de André, vemos um exemplo da agência sendo experimentada a partir da separação da pessoa de seu problema. As qualidades de André, como a sensibilidade, eram ofuscadas pela depressão: “Quando você tá numa fase depressiva, você acaba se vendo assim, com olhos, com uma visão distorcida... só vendo os seus defeitos, só vendo os seus problemas. Como eu falei, vendo que eu não sou só os meus problemas, eu tenho muito mais do que isso. Tenho qualidades”. Quando André passou a ver-se como separado de seus problemas, passou a perceber aspectos positivos de si, e viu-se capaz de agir diferente. White e Epston (1993) mostram que quando as pessoas se afastam das narrativas cristalizadas e descobrem outras narrativas possíveis, elas passam a entender que o modo como viviam não era “seu verdadeiro eu”, nem a única forma admissível de existência. Essa libertação de antigos padrões traz também uma liberdade para ação, que posiciona a pessoa como capaz de fazer novas escolhas.

Las prácticas asociadas a la externalización de problemas también: a) liberan a las personas de las descripciones saturadas de problemas de sus vidas y relaciones, b) fomentan la generación o resurrección de relatos alternativos y más gratificantes, y c) ayudan a las personas a identificar y desarrollar una nueva relación con el problema. En este sentido, estas prácticas fomentan una nueva sensación de agencia personal y, con ella, las personas son capaces de asumir su responsabilidad en la investigación de nuevas opciones en su vida y en el seguimiento de nuevas posibilidades. En este proceso, las personas experimentan una nueva capacidad de intervenir sobre su mundo (WHITE; EPSTON, 1993, p.78).

A agência, como esta capacidade de intervir sobre o mundo, encontrando novas possibilidades e sentindo-se capaz e responsável para assumir novas posturas, surge quando o indivíduo é capaz de olhar de forma diferente para a situação em que se encontra. Desta forma, a agência parece estar fortemente envolvida com o processo de

ressignificação que também é propiciado pela construção de narrativas na psicoterapia. Ao atuar na construção de significado, a narrativa dá voz à agência pessoal, abrindo espaço para uma negociação de sentidos e versões de si.

Ao falar em agência, estamos falando em diversidade, pois não há uma identidade dada que deva emergir. White (2004) lembra que existem histórias que abrem mais possibilidades existenciais que outras, o que não significa que uma seja mais verdadeira que a outra. Porém, como já foi discutido, a autoria não é um fenômeno puramente individual. Não é toda narrativa que pode ser criada. As narrativas precisam ser legitimadas socialmente para que tenham validade e utilidade fora do setting terapêutico. Para Murray (2008) “o narrador é um agente ativo, que é parte de um mundo social. Através da narrativa, o agente se engaja com o mundo.” (p. 116). As narrativas são, portanto, relacionadas e interdependentes. Ninguém pode dizer-se pai, por exemplo, se não há alguém que se diga filho deste pai, pois a construção de si está intimamente ligada ao Outro. Na terapia, a reautoria é feita no diálogo com o terapeuta.

Em resumo, a construção de narrativas promove um senso de agência ao dar ao indivíduo um sentido de autonomia; ao propiciar a revisão das auto-narrativas e abrir possibilidades de significação que permitam novas escolhas e levem a novas formas de ação; e ao possibilitar a integração das múltiplas histórias, criando um self narrativo unificado, porém múltiplo. A construção narrativa dá espaço para o novo e promove a liberdade de antigos padrões. Sentindo-se livre para agir, o indivíduo está, então, dando voz à agência. Reautoria, portanto, é a capacidade criativa de ação, aproximando-se da ideia de um self que é construído a partir das escolhas e intenções do indivíduo, em coautoria com o mundo, e afastando-se da ideia de um self essencialista que deve ser desvelado na terapia.