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Laikui Cardoso Lins

O filme Terra em transe, produzido no ano de 1967 pelo cineasta baiano Glauber Rocha, ao lado de suas diversas outras obras, também de grande importância, é considerado um cânone da cinematografia nacional, ocupando, em razão disso, lugar destacado no interesse de pesquisadores e estudiosos que se prestam à investigação acerca da sétima arte, de uma forma geral, ou de múltiplos aspectos da cultura nacional.

Mas o que torna uma obra como essa um cânone? Discutir a fundo esta questão não é, definitivamente, o propósito deste trabalho, entre- tanto, desmerecê-la também não parece prudente, pois, como se sabe,

Terra em transe provocou, em sua época, reações diversas por parte de

intelectuais, políticos e espectadores em geral, suscitando discussões acaloradas acerca de seu conteúdo e das mensagens que pretensamente seu autor buscou evidenciar.

Consultando textos, análises, entrevistas, enfim, materiais diversos sobre o lançamento de Terra em transe, é fácil perceber que o filme foi considerado hermético, difícil e confuso por aqueles que o assistiram. Seu carregado conteúdo simbólico e sua estruturação hermética, além do forte apelo “revolucionário”, intrínseco à película, são a razão para

isso, garantindo, desse modo, sua importância no escopo das obras mais representativas do cinema mundial e da cultura brasileira.

O fato é que obras como Terra em transe persistem, desde seu momento inicial, quando lançado, em 1967, como filmes singulares junto à crítica, aos espectadores e aos estudiosos da cultura. Tanto o é que esta película em particular, junto a outras do mesmo autor, regressa ao contexto atual, 40 anos depois lançada pela primeira vez, como parte do projeto de remasterização da obra completa de Glauber, coordenado por sua filha, Paloma Rocha, na tentativa de preservação dos filmes do Cinema Novo, enquanto patrimônio intelectual.

É consecutivo a ações como esta, em que obras, ou até mesmo todo um acervo, são relançadas após tantos anos de seu contexto original, a promoção do contato das novas gerações com esses filmes.

É papel do cânone promover a permanência da obra na cena cultu- ral, atravessando gerações. No caso de Terra em transe, esse é um dos fatores que atrai o interesse de pesquisadores na discussão de diferentes aspectos desta obra. Mas, se o cânone atravessa gerações, em relação a

Terra em transe, obra canônica, como já se disse, em que é fácil perce-

ber a intensidade de seu conteúdo e de sua forma, na perspectiva de sua permanência junto ao público e à crítica ao longo dos anos, cabe questionar:

Os filmes podem ser entendidos fora de seu contexto de produção industrial? [...] Quais os problemas levantados por uma leitura [...] de um filme dos anos 40 na década de 90? De que diferentes maneiras um texto fílmico pode ser lido em diferentes contextos nacionais ou históricos? (STACEY, 1993, p. 261)

Esse questionamento é o foco central do trabalho que ora exponho. Fruto de uma pesquisa de pós-graduação em nível de mestrado, realiza- da entre os anos de 2007 e 2009, através do Programa de Pós-graduação em Literatura e Diversidade Cultural da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs), com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb), busquei investigar os contextos de recepção do filme Terra em transe em dois momentos distintos: no momento de seu lançamento, décadas de 1960/1970, através de estudo bibliográfi-

co; e hoje, 40 anos depois, por meio de pesquisa etnográfica, a fim de perceber as leituras possíveis deste filme hoje, em contraposição ao seu contexto original, ontem; e os problemas e particularidades que isso poderia gerar, neste momento extemporâneo.

Partindo de abordagem teórico-metodológica interdisciplinar ancorada nos estudos culturais e nas suas contribuições para a pesqui- sa mediática, que enxerga os diversos textos constantes dos meios de comunicação – seja o rádio, a TV, o jornal, o cinema etc. – pelo prisma da polissemia e providos de força simbólica, o receptor, nesta pesquisa, ocupa, assim, a função ativa, capaz de aceitar, negar e mediar sentidos.

Dentro dessa proposta de ênfase no receptor, como forma de compreender de que modo o filme Terra em transe poderia ser entendi- do na atualidade, em oposição/complementação às formas do passado, cresce a importância em considerar a teoria da espectatorialidade cinematográfica, explicitando o seu conceito numa oposição ao que se convenciona chamar de estudos de audiência. Nesse sentido, torna-se importante ressaltar a diferenciação entre essas duas frentes de investi- gação, estudos de audiência versus espectatorialidade cinematográfica, como bem salientam Ana Carolina Escosteguy e Nilda Jacks (2004, p. 3). Para elas:

Na literatura internacional, convenciona-se chamar os estudos de efeitos, os usos e gratificações e os estudos de recepção como pesquisa de audiência, destinando a expressão estudo de recepção para uma vertente dentro do amplo quadro das audiências midiáticas.

A par dessa diferenciação, segue-se uma ressalva. Abrigada sob a tutela dos estudos culturais, há ainda a diferença entre estudos de recep- ção e espectatorialidade cinematográfica, referindo-se a primeira aos estudos que levam em conta a atividade do receptor de um modo geral, seja ele ouvinte de rádio, telespectador, usuário de internet e/ou compu- tador ou espectador de cinema, e as formas de interação com essas mídias; enquanto que a segunda denominação refere-se exclusivamente aos espectadores de cinema, interessando-se pelos modos através dos quais interagem com os filmes dentro dos seus diversos contextos.

Nessa perspectiva, de consideração do aporte teórico da espec- tação cinematográfica, abrigado no complexo dos estudos culturais e partindo da metodologia da pesquisa etnográfica, enquanto método preferencial da abordagem culturalista, como propõe Stuart Hall, no seu texto Codificação/Decodificação, de 1973, Terra em transe transforma- -se em fonte de interesse na pesquisa de recepção A recepção de Terra

em transe: ontem e hoje.

A realização desta pesquisa empírica foi procedida no municí- pio de Bom Jesus da Lapa, cidade do oeste baiano, com população de 62.199 habitantes e distante 777 km da capital, Salvador. (MULTIMA- PAS, 2009) Na microrregião em que está localizada Bom Jesus da Lapa, esta se constitui no município de maior desenvolvimento econômico e social. A população de lá tem laços culturais muito estreitos com Brasília, Salvador, Vitória da Conquista e Guanambi, localidades a que recorrem os moradores para encontrar produtos e serviços conside- rados por eles de difícil acesso, como saúde, educação, determinados gêneros comerciais etc. E suas principais atividades econômicas estão baseadas na agricultura, no comércio e no turismo, conforme o IBGE.1 Também é importante destacar que o município não dispõe de muitas opções de lazer e entretenimento. Essa observação ganha relevância porque, sendo a ida ao cinema considerada como uma atividade de lazer, percebe-se que esta não se faz possível em Bom Jesus da Lapa. Prefeitura, associações de moradores ou qualquer outra entidade social, por sua vez, não possuindo a cidade nenhum cinema ou espaço propício à exibição de filmes, não desenvolvem nenhuma atividade relacionada à projeção de filmes.

Dessa forma, os seus habitantes só têm acesso a filmes por meio de locações em locadoras de fitas e DVDs da cidade ou através do acesso às TVs por assinatura ou até mesmo aos canais de televisão aberta. Esta cidade foi escolhida como lócus para o empreendimento desta etapa da pesquisa devido ao fato de ser lá onde residia a pesquisadora no momento da execução do estudo.

Na aplicação da metodologia da pesquisa etnográfica neste estu- do, que, como já explicitado, é a melhor forma para captar aspectos tão subjetivos e difusos no que se refere a audiência, foi escolhida a utilização da técnica de grupos focais ante as mais diversas no uso da etnografia, a exemplo de entrevistas informais, observações gravadas em vídeo, diários de bordo, questionários, depoimentos, enfim. Assim, a utilização desta técnica, que privilegia essencialmente a fala em deba- te, promovendo de modo mais direcionado a observação e a coleta de dados, pareceu a mais adequada no caso em particular.

Constituída pela formação de “[...] grupo [ou vários grupos] de discussão informal e de tamanho reduzido, com o propósito de obter informações de caráter qualitativo em profundidade”, sua principal característica é a valorização das reflexões dos participantes, expressas através da fala. (GOMES; BARBOSA, 2000)

Ao todo, foram sujeitos-participantes deste estudo de recepção cinematográfica 12 pessoas, de diferentes níveis de instrução escolar, profissões e faixas etárias, visando alcançar o máximo de heterogenei- dade, propondo suscitar diversas interpretações. Esses grupos foram organizados em três grupos focais diferentes, que se reuniram na casa da pesquisadora para assistir ao filme, no período entre 7 e 14 de julho de 2009.

Como um dos resultados do trabalho empreendido, verifica-se que o contexto no qual se estabelecem relações com o filme é relevante na tentativa de entender esse espectador de hoje. Um bom exemplo disso é o peso semântico que ganha a palavra “revolução” no trânsito entre filme e espectador. Terra em transe é um filme com forte apelo revolucionário, em ambos os sentidos. Ele emprega uma forma revo- lucionária de construção sígnica: fragmentado, enigmático, hermético. Propositadamente, a obra não se apresenta como um texto fluido para o espectador; este, se quiser entendê-la, precisa operacionalizar esque- mas cognitivos diferentes daqueles postos em ação para assistir ao filme entretenimento.

Nesta pesquisa foi feito um recorte que privilegiou o trabalho com espectadores comuns, ou seja, sem instrução dos trâmites cinematográ- ficos, como, supõe-se, sejam os estudantes de cinema, de audiovisual, os

cineastas, os cinéfilos e as pessoas ligadas de alguma forma ao ambiente cinematográfico. Ao contrário, privilegiou-se a análise sobre o especta- dor que possivelmente iria ao cinema assistir a um filme enquanto uma atividade cultural de lazer. Dessa forma, entender que tipo de mediações ele faria constituiu-se no problema a ser investigado.

No caso específico deste trabalho, considerando os procedimentos elencados, chegamos essencialmente a esses resultados: o filme, mesmo hoje, suscita várias interpretações quanto à sua mensagem final, utili- zando uma linguagem difícil, confuso em alguns aspectos, mas que permite uma certa compreensão do todo, de uma maneira “holística”.

Entretanto, esta é a primeira pesquisa cujo propósito é a ênfase no espectador contemporâneo concreto, de “carne e osso”, na relação com o filme Terra em transe, ou melhor dizendo, com um filme do Cinema Novo, mas isso não significa que outros resultados, levando em consi- deração a espectação cinematográfica sobre essa mesma obra fílmica, estejam descartados. Devido ao procedimento escolhido e ao tempo de execução do estudo, chegamos a esses resultados. Porém, se forem invertidos os padrões, talvez outras respostas sejam possíveis, ou quem sabe, as mesmas.

Por isso, o que se configura aqui, neste estudo, não é o fim, resul- tado pronto de uma pesquisa posta em prática, mas sim um dos vários começos possíveis envolvendo o Cinema Novo e a teoria da recepção cinematográfica.

REFERÊNCIAS

ESCOSTEGUY, Ana Carolina; JACKS, Nilda. Práticas de Recepção Midiática: impasses e desafios da pesquisa brasileira. In: ENCONTRO ANUAL

DA ASSOCIAÇÃO DOS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO, 13., 2004, Salvador. Anais... Salvador: Compós, 2004, p. 3. GOMES, Maria Elasir S.; BARBOSA, Eduardo F. A técnica de grupos focais

para obtenção de dados qualitativos. Belo Horizonte: Educativa Instituto

de Pesquisas e Dados Educacionais. 2000. Disponível em: <http://www. tecnologiadeprojetos.com.br/banco_objetos/%7B9FEA090E-98E9-49D2- A638-6D3922787D19%7D_Tecnica%20de%20Grupos%20Focais%20pdf. pdf>. Acesso em: 19 jun. 2009.

HALL, Stuart. Codificação/decodificação. In: ______. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003. p. 365-381. MULTIMAPAS. Mapa do Estado da Bahia: Político, Rodoviário, Turístico

e Estatístico, 2009. Índice de municípios. Disponível em: <www.multimapas.

com.br>

STACEY, Jackie. Textual obsessions: methodology, history and researching female spectatorship. Revista Screen, San Francisco, Califórnia, v. 34, n. 3, p. 261, 1993.