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Agora eu sou atriz. Agora estou do lado de lá da dramaturgia. Agora eu sou aquela que recebe as palavras. Agora tenho que ser aquela que confere sentidos às palavras, com a voz, com o corpo, com a presença. Nunca se sabe, nunca sei no que vai dar. Agora eu nunca estou sozinha no trabalho. Agora o que sou deve-se somar aos outros atores e seremos muitos sempre. Agora eu não sou protagonista, no sentido daquele personagem/pessoa que move a ação. Agora eu não sei de nada. Agora o que eu desejo

“No princípio de tudo foi a fome que me deu. E quando a fome rói, o entendimento da gente desanda. Não pensei, não calculei, olhei a horta de seu Francisco, conhecido em roda por Chico Avelós, saltei a cerca e fui. E lá fiz destrago na verdura dos maxixes, no doce dos melões, roí até as sementes de uma abóbora madura. Me empanturrei feito padre em batizado de rico. “Tem cabra do seu Biú na horta, de novo, pai!”, gritou um menino. Eu levantei a cabeça e olhei. Era de mim que falavam. Cabra é bicho ligeiro e eu ainda quis voltar pra segurança do outro lado da cerca, mas o Chico, já falado, conhecido em roda por Chico Avelós, sustentou a winchester e nem mirou: a bala chegou antes do som do tiro e o baque dela aqui no pé do ouvido me tirou todo o entendimento. Tudo o que veio depois foi por causa disso: de uma cabra e uma horta: a culpa foi minha.”

como artista tem que se dar no terreno das palavras escritas anteriormente. Então, eu não sei o que fazer. O vazio toma conta do princípio, tudo está por fazer, mas o vazio não é vazio, já existe o verbo. E eu grito. Do outro lado da criação, o ator. Aquele que vai encontrar com o público. Agora eu sou aquele que precisa fazer do aqui-agora algo que seja relevante nesse encontro. Agora eu tenho que desorganizar, dar-me a um fluxo, distender, desenroscar. Agora eu preciso valorizar a escrita de sensações em alguma pele, talvez a minha, e inevitavelmente as sensações são maiores do que o que a organização pode prever. Agora é o reino do não sei. Tentar ser narradora. Tentar não ser narradora, tentar estar no presente e no passado, da mesma maneira, na mesma intensidade. É preciso resignar-se, dar espaço para ser e estar. O que penso não vale nada se não ajo. O que penso não se dá. O que dá a ver é o corpo e a voz. O tempo é curto, a tarefa é gigantesca. O que um ator pode querer da dramaturgia é do reino daquilo que ele

pressupõe uma relação com a natureza onde a alteridade desta não é, e não pode ser, submetida a um controle do caçador”. Tal acepção do trabalho do artista vem ao encontro do que Abreu chamou anteriormente de processo indutivo, diferenciando-o do processo dedutivo, tal qual já havíamos abordado em nossa dissertação de mestrado:

“Abreu usa a diferenciação entre processo dedutivo e indutivo de criação para falar a favor de uma ‘lei do material’, mais próxima do indutivo. Quando lidamos com um material interessante de maneira dedutiva, nós o organizamos de uma maneira eficiente, que trará um resultado cartesiano, reproduzindo tudo o que já existe, antecipando a existência de uma determinada forma para determinado conteúdo. No processo dedutivo, o dramaturgo organiza o material que tem de acordo com o que já sabe, com o conhecimento já adquirido. (...) ‘Como é que um artista pode querer ser a voz e a antena de uma época se o que ele faz é reproduzir o que aí já está, a partir de uma expectativa da mídia, do resultado e do que o público já conhece?’, pergunta (...) O processo indutivo trata o material de maneira a ‘respeitá-lo’ como principal motor da criação, para além de nossa capacidade conclusiva e de raciocínio.”21

21FAHRER, Lucienne Guedes. Luís Alberto de Abreu - A Experiência pedagógica no ensino da dramaturgia.

Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2011. Página 15.

“Aprecio muito ave acauã quando vejo. Figuro ser eu ela, solto pra qualquer rumo, sem parede, sem montanha, sem chão. Por isso, nome cristão meu é Givanildo, sobrechamado Acauã. Nome Givanildo já esqueci. De cima, olho o cinza crestado de sol do mato ralo, sem ave, sem bicho, sem vivente nenhum? Engodo! Enganação! Meu olho firma a vista e vê cobra parada como graveto fosse, essas espertezas de bicho. Então, desfecho, disparo voo e no tempo de um “ai, jesus!”, bicho rastejante já tá na minha garra e no meu bico, querendo ferrar presa de veneno na minha carne. Cadê que consegue? Daí levanto voo pra ir onde o vento me soprar. Acauã sou, jagunço estou às vezes.”

No processo dedutivo, assim como acontece com o “ator coletor”, trata-se de lidar com o material da criação de maneira a combinar elementos que estão em domínio, dentro das capacidades e competências dos artistas, no lidar com o material, sem muito espaço para a dúvida, para o erro ou para o “não saber”. Já o processo indutivo, que Abreu nomeia como lei do material, diz respeito a deixar que o material induza à sua própria conformação, ou seja: para que isto se dê os artistas precisam entrar em diálogo com seu material, deixar que ele se abra a campos diferentes, se necessário, tirá-lo do caminho mais óbvio e direto para a cena. Para Abreu, a tentativa do dramaturgo no processo de Cabras

“(...) é produzir o material e ouvir o material. (...) Teatro aqui todo mundo sabe fazer; todo mundo sabe o que é teatro, sabe o que é a forma teatral, sabe tudo isso, porque ninguém aqui é principiante. Mas a questão fundamental é se a forma que a gente conhece e sabe é mais eficaz ou mais eficiente, e se diz respeito mesmo ao material.”22

O foco, portanto, está no material, e em como os atores, em trabalho conjunto, podem revelá-lo cenicamente, ou ainda apontá-lo para caminhos que nem mesmo o autor

22ABREU, Luís Alberto de. O processo de construção de Recusa sob o olhar da dramaturgia. Revista Sala Preta.

Vol 13, n. 1, jun 2013. Página 136.

consegue fazer enquanto age. Mas o que eu faço quando não concordo com o que está escrito? Em que lugar posso dizê-lo, senão em cena, sendo múltipla com os companheiros? Onde estou? Eu não sou atriz. Eu sou atriz na medida em que consigo fazer-me corpo e voz, com os outros atores, no momentos presente. Eu sou atriz. Não é fácil, o outro lado. Eu sabia, mas tinha esquecido. Eu sabia, mas passei anos a fio perseguindo a mim como a atriz do paraíso, considerando a volta como garantida, passeando, visitando outros lugares. Nunca me vi como expulsa. O lado da dramaturgia também não é fácil, isso eu sei. Mas o lado do ator me impele a ser incompleta sempre, frágil, sensível demais, sujeita, sujeito. O que pode um ator? O que é, afinal, um ator criador? O que será,

“Sou duro. Meu cerne não quebra, não lasca, machado perde o fio em minha casca e braço de homem forte cansa. Sou pau roxo, mesma casta de ipê, braúna, aroeira, matéria dura que rejeita prego e faca não tira lasca. (...) ‘Livra a cabeça’, gritou o chefe. Foi o que fiz, subi e desci sobre os gravetos das costelas, rompendo osso, chamando sangue, puxando grito agudo que não veio da garganta, veio de lugar mais fundo que homem só revela nessas horas. (...) Depois, aquela massa de roupa azul, sangue e deformada forma humana esqueceu de respirar. Pra sempre. O rosto preservado testemunhava quem ele tinha sido. Aí, vi o facão forjado pela mão de seu Aniceto Ferreiro, num só golpe, separar a cabeça do resto do corpo. Depois não sei mais. Só me recordo de Azulão me lavando, com capricho e areia, em mina d’água e o roxo de que sou feito ficou mais escuro. Retornei à minha boniteza de antes, quase. Mancha de sangue entranha em madeira, não adianta arear.”

afinal, um ator em processo de criação de dramaturgia? O que vem antes? O que tem que vir depois? Por que essas vozes não se calam dentro de mim? Por que não há descanso? Por que o preparo não significa quase nada? A técnica, serve pra que? Eu sempre cheguei na hora certa. Eu sempre me preparei. Eu esperava muito. Eu queria muito. Eu tinha expectativas. Sou parte. Eu não sou parcial. Eu não sei estar no meio. “Ou engasgo ou grito”, escrevi e gritei certa vez. O lugar do ator é parcial, é cruel. Satisfazer-me com as metades, com as parcialidades de mim mesma, metades de mim mesma, frações ainda menores. Eu tenho receio de ser impressionista, sensível demais, mesmo agora. Já que o corpo e a voz do ator estão no primeiro plano da importância, a consciência parece vir a reboque. Agir, não parar. Pensar, mas transformar em ação. A linguagem oprime, exige, quer demais, não posso ofertar o que não tenho. Eu sempre tento me vestir de acordo. Eu sempre tento me alimentar bem, eu tenho a pressão controlada.

pudesse antes ter percebido. A atitude de caçador foi estimulada pela diretora Mara Thaís como tática principal para lidar com os textos de Abreu e com os outros textos usados durante o processo, sobretudo na realização dos estudos.

A segunda referência para a realização desses estudos pode ser encontrada no trabalho de análise ativa, ou antes do etjud, desenvolvido pelo diretor russo Anatoli Vassíliev a partir da herança de Stanislavsky:

“(...) o etjud não pode ser transformado em um exercício, isto é, em algo que deve ser executado com precisão absoluta. Deve sempre existir uma relação livre e muito viva com os próprios erros. Em duas ou três tentativas é necessário obter o máximo de realização das intenções; depois disso, é indispensável ir além, prosseguir na leitura”.23

23Informações presentes em aula dada por Anatoli Vassíliev em Bruxelas, durante a primeira edicão de Ecole dês

Maîtres (21 de setembro de 1990), com o título Texto Literário e Improvisacão. Traducão para o português de Papoula Bicalho e Matilde Biardi. Cópia em papel de arquivo digital. Também pode ser encontrado no endereço eletrônico: https://duedudepaula.wordpress.com/2011/08/08/texto-literrio-e-improvisaoa-vassiliev/ Acesso em 11 fev. 2016.

Eu bebo bastante água antes. Eu tento não ser ressentida. O ressentimento nos tira de nós, nos deixa à deriva num mar da não-ação, do assujeitamento, então eu tento não cair no ressentimento. Eu preciso encontrar a potência da linguagem que foi pedida. Eu tento me preparar. Eu tento corresponder. Eu tento entender a minha lógica. Eu tento mudar a minha lógica. Eu tento não parar, eu consigo não parar. Agora que estou atriz o tempo me consome. Não encontro a reflexão, devo mergulhar na sensação, nas impressões. O que opino não interessa. Interessa minha sensação, se ela virar expressão. Imediata. Se. No aqui, no agora. O jogo é de Sísifo.

Um parágrafo se faz necessário quando é preciso continuar a agir, não importa se sabemos ou não onde estamos.

O processo colaborativo na minha formação, desde quando comecei a fazer teatro. Ou mesmo antes, quando tinha menos de 20 anos e sentia que o corpo era a fonte de maior felicidade, o corpo

Quanto a lidar com um texto através do etjud, Vassíliev afirma:

“Minha pesquisa se mantém na relação entre texto literário e improvisação. A conexão de liberdade e ausência de liberdade. De exatidão e anarquia. Penso ser essa a única possibilidade de fazer voltar a vida sobre a cena.”

Ou ainda:

“O objetivo da prática do etjud é aquele de liberar o ator (do texto e do público), de tornar o teatro vivo, de tornar a ação imediata.”

Muito diferente de utilizar o texto do dramaturgo para “compor” ideias cênicas, o etjud quer considerar de fato o texto, tal qual ele se mostra, através dos atores. A exploração deles, portanto, deve resultar muito mais em ações que revelem o que o texto é numa relação viva e espontânea entre os atores, e não na composição individual de cada um.24

Tanto o texto de Tatiana Motta Lima quanto a fala de Vassíliev e, antes dele, o trabalho de Constantin Stanislavsky, de quem Vassíliev conservou, ampliou e desenvolveu

24Há outra entrevista, dada por Vassiliev a Maria Shevtsova, na qual ele desenvolve pressupostos para o etjud que

pode ser encontrada em português no endereço eletrônico: http://performatus.net/anatoli-vassiliev/ Acesso em abril de 2016.

diante do outro, o corpo no encontro com outros corpos. Então trabalhar em conjunto no teatro tinha a ver com encontro, com pesquisa, com vontade de expandir os campos, com vontade de fazer diferente, com vontade de promover sentido à vida. O processo colaborativo, ainda o jardim do éden, ainda o lugar de onde não tinha sido expulsa. Qualquer fruto proibido, se comido, dará lugar a um castigo, a uma perda com a qual teremos de lidar. Ou o ressentimento. Mas o éden não deixará de existir, e o lugar do corpo no encontro com o outro, feliz, íntegro, jamais será esquecido. Mas o tempo passa. Expulso, o ator, do éden. Agora, seu trabalho com o suor. O parto com dores. Se comecei como atriz, passei pela dramaturgia... se continuei como dramaturga, volto ao lugar de atriz. O trabalho com o suor,

a experiência da análise ativa, têm em comum um trabalho que, além de artístico, promove o crescimento do artista, numa perspectiva pedagógica. Acredito que o trabalho de Maria Thaís na Cia. Balagan pode ser visto de maneira semelhante. Parte da criação, através dos estudos e das outras pesquisas e treinamentos, no caso de Cabras, estava relacionada à aproximação de outras lógicas de abordagem do material, a outras maneiras de pensar. “Caçar”, portanto, ou ter relação livre com o material, é condição para que se desenvolvesse a dramaturgia ao mesmo tempo em que se desenvolve o ator.

Se o estudo foi o principal procedimento ou dinâmica coletiva de criação, agindo em camadas com os textos de Abreu, houve estudos teóricos e pesquisas que complementavam o imaginário do trabalho. Tais dinâmicas não eram utilizadas diretamente na construção da dramaturgia; não tinham utilidade visível e aplicável, digamos assim; antes, tinham como objetivo alargar o ponto de vista dos artistas.

Além das palestras, dos treinamentos de dança tradicional e música, leitura de textos teóricos e filmes, a Cia. Balagan realizou uma importante viagem à região norte de Minas Gerais e sul da Bahia. Essa pesquisa de campo é exemplar do trabalho de criação do processo de Cabras: o dramaturgo não foi, não viu o que os outros artistas viram ou viveram. A ideia da viagem não era coletar informações ou responder ao estímulo com mimese das pessoas e dos conteúdos vistos e ouvidos, mas permitir que houvesse memórias e imaginações com as quais lidar sobre a camada do texto; ou mesmo talvez “E havia uma voz também antiga que ainda ressoa e clama: aos acostumados à maciez dos frutos sumarentos, aos crescidos no calor temperado pelo frio das montanhas, aos criados na umidade das matas, aos habituados a tantas curvas polidas, à delicadeza de sedas, ao paladar doce, a tocar com pontas de dedos sedas e cetins... A esses, pede a voz, que não se espantem com a aspereza das pedras, com suas escarpas duras, seus ângulos agudíssimos, suas formas sem simetria, sua dureza pesada e profunda, seu silêncio. A pedra, garante a voz, não carrega maldição nem culpa por assim ser, é só uma outra forma de ser. Há, adverte a voz, quem na pedra consiga enxergar beleza, geometrias inesperadas, combinações estéticas, gradações de cinza e marrom que encantam os olhos, diz a voz. E convida: tirem as sandálias dos pés porque a terra onde pisam é sagrada. E sobre essa terra pasta uma cabra.”

o parto com dor. Eu espero que possamos nos entender. O parágrafo acontece quando não é possível parar, quando não é possível parar de procurar, tatear, imaginar, tentar, imaginar novamente. E me pedem para que deixe de ser eu, é isso? De pensar como eu? Como poderei, em algum momento, deixar de ser eu? E me transformar só em grupo? E me transformar em pedra? E me transformar em vento? E me transmutar em cabra, em punhal, em planta? É cruel, a perda do paraíso, porque nos joga diretamente de cara na terra. E a terra nunca foi tão dura. Percebo a dureza porque é de sensação que preciso, dos sentidos, da sensibilidade.

As palavras de João Cabral de Melo Neto. É pedra, aquilo; é duro, é seco. As palavras da literatura de cordel. As palavras de Abreu. O Hagakure, o Ramayana. O canto de músicas muito antigas, de domínio público.

O mais difícil é finalmente entender que sou um outro. Um diferente. Um outro. Não somos a mesma

25SARRAZAC, Jean-Pierre. A irrupção do romance no teatro. Folhetim. Número 28, páginas 11. 2009.

não tivesse nenhum objetivo definido. Mas a viagem permitiu uma intensa vivência da alteridade e do perspectivismo que, a partir dali, ao menos para mim, atriz, deixaram de ser somente conceitos e pressupostos teóricos do trabalho, convertendo-se em sensibilidade para fazer as conexões e aberturas necessárias para lidar com os materiais e também com os outros campos da pesquisa.

* * *

Resta ainda uma última consideração. Nas frases finais, tanto da dramaturgia de Recusa quanto na de Cabras – cabeças que voam, cabeças que rolam, Abreu dá um pequeno recuo, como se fosse um discreto voto de desconfiança em meio a tanto deslocamento. Escreve trechos numa linguagem mais comum, quase bíblica em Cabras, quase jornalística em Recusa, e cede à tentação de, nos últimos instantes, garantir um entendimento de todo o movimento anterior. Depois de falar sobre muitos pontos de vista, de acenar para a existência da vida também nos objetos, nas forças da natureza, nos animais e em multi-narradores, depois de “desconfiar do personagem como representante da humanidade”, como escreveu Sarrazac a respeito do “teatro-relato”25, Abreu arremata

as peças como quem ainda queria contar uma história, quase somente isso.

“Dois índios piripikura, possivelmente os últimos de sua tribo foram encontrados, no interior do Mato Grosso. Subnutridos, um deles muito doente, apêndice quase supurado. Riam. Sempre recusaram contato. Recusaram ajuda. O doente foi operado. Fugiram do hospital para a mata três dias depois.”

coisa. Não somos iguais. Não sou pedra. Não sou vento. Não moro no sertão, não nasci no sertão. Embora seja filha de migrante e imigrantes, meu lugar é são paulo. Olhar para o brasil do sol escaldante e da água rara não é fácil para mim. Mas eu me esforço. Talvez concorde que minha salvação tenha sido a infância no interior. Eu olho pra isso e entendo que sou o outro. Que nunca serei o que não sou. É preciso imaginar, e imaginar muito. É preciso viver na imaginação. É preciso imaginar na frente do outro, imaginar e transformar isso em forma. Mas não só forma, mas forma viva, com vitalidade, com vigor. Senão eu morro. E morre comigo a palavra do outro, a dramaturgia, João Cabral de Melo Neto, o cordel, o código do samurai, o poema épico indiano, as palavras de Abreu.

Ao mesmo tempo em que sou imaginação preciso ter corpo forte. Preciso entender que não sirvo. Que preciso caminhar. Que não posso ficar no meu passado. Que o meu passado não serve. Sou o outro. Sou

aquele que vai receber palavras de um outro. De um outro universo. De um outro bicho, de um outro que é mineral, vegetal.

Li o que escreveu Vassíliev: “acontece porque o teatro profissional está sempre na defensiva. Porque para um profissional é muito embaraçoso encontra-se em uma situação em que é novamente como uma criança, como alguém que não sabe de nada.”

Parágrafo. Não ao ressentimento. Seguir. Preparar-se. Modificar-se, tornar-me forte. A dança dos caboclinhos exige demais do corpo acostumado à cidade, ao balé francês, ao movimento dominado, a um temperamento apolíneo. A consciência da técnica vocal e o conhecimento musical poderiam alçar as palavras ao vento necessário a um narrador que precisa, agora, estar em trânsito. Mas não. Seria difícil, é o que gostaria de dizer, mas não posso. Não é difícil, portanto, deixa pra lá.

Parágrafo. Eu queria tanto conseguir entender o que estou fazendo aqui, o que estava fazendo lá. Mas é preciso agir.

É preciso ser um narrador em trânsito. Um que não tem tempo de se reconhecer e – zás! – já é outro, e outro, e outro. Múltiplo também na quantidade. Como