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3 EXPRESSÕES POÉTICAS DAS CULTURAS AFRO-BRASILEIRAS

3.1 Terreiros de Candomblé na Bahia

A primeira vez que esta pesquisadora, na condição de doutoranda, pisou em terreno sagrado do candomblé, no estado da Bahia, ocorreu não na condição de integrante de assistência em um ritual público, mas em um encontro, em uma conversa com a ekede do terreiro considerado mais antigo da Bahia e ainda em funcionamento: Ilê Axé Iyá Nassô Oká, mais conhecido como Terreiro Casa Branca do Engenho Velho da Federação. Ekede Sinha, do Terreiro Casa Branca, é responsável pela administração do terreiro, como ela mesma diz. Acostumada a lidar com visitantes, o que inclui pesquisadores, ekede Sinha, com generosidade e boa vontade acolheu o encontro para a entrevista, abrindo espaço entre suas

inúmeras atividades, numa semana plena de obrigações aos orixás e feira cultural de saúde64.

A semana foi marcada, particularmente, pela festa de semana de obrigações internas, ou seja,

64 A pesquisadora trazia a indicação do professor Renato Silveira (2006), o que contribuiu para facilitar o acesso de modo imediato em meio a tantas atribuições. E não é por acaso. Silveira é respeitado no Terreiro Casa Branca, ousa-se assegurar que essa aproximação está relacionada com uma obra de referência para a pesquisa sobre os cultos afro-brasileiros. O candomblé da Barroquinha: processo de constituição do primeiro terreiro baiano de keto, de autoria de Silveira, foi a primeira obra lançada no Terreiro Casa Branca, segundo ekede Sinha.

que não são abertas ao público. Semana que começou com a preparação da festa de Olubajé65 no qual se dá o banquete dos reis.

O Banquete dos Reis é uma festa que Oxum proporciona à Obaluaiê, né. Então, é uma festa onde o orixá que é o dono da festa, Obaluaiê, ele convida as pessoas para virem comer. Então, é uma festa muito trabalhosa, tem muita comida e a gente faz na... numa praça, na praça da casa dele. As pessoas chegam e quanto mais a gente canta mais chegam pessoas para comer. Não é dentro do barracão do candomblé, é num outro espaço do candomblé. Menina, é uma festa bem trabalhosa. E aí depois que acontece a festa, nos outros dois dias tem um ritual que é feito em pé, entendeu? (Informação verbal)66.

De acordo com o calendário sagrado do Terreiro Casa Branca, a festa acontece em uma segunda-feira e é dedicada a Obaluaiê bem como a Oxumarê e Nanã, todos “[...] seriam entidades divinas de uma mesma família procedente das regiões do antigo Daomé” (PRANDI, 1991, p. 249). Entidades que aqui chegaram com os africanos oriundos de vários reinos da África, dentre os quais o Reino de Daomé, atual República do Benin, na África Ocidental. O Terreiro Casa Branca do Engenho Velho da Federação, de nação Ketu, tem nas suas origens influências de outras nações de candomblé como jeje e angola. Os orixás regentes são Oxóssi, Xangô, Oxalá e Oxum; representam as quatro mais fortes tradições iorubanas que chegaram à Bahia: jeje-nagô, iorubá-tapá, aon Efan e ijexá (SILVEIRA, 2006).

Seguindo as tradições orais, Silveira (2006) conta que o Reino de Ketu teria sido fundado por Sopaisan, tido como filho ou neto de Odudua, o pai fundador da nação iorubana, na costa ocidental da África. Por volta do século X, Sopaisan e um clã de cento e vinte linhagens migraram para uma província habitada por nativos fons, “[...] a cerca de duzentos quilômetros de Ifé.” (SILVEIRA, 2006, p. 326). O autor diz que “[...] os emigrantes iorubás fundiram-se nas sociedades locais, de modo que Ketu era o último Estado iorubá diante do território fon. Seus habitantes passaram a ser chamados de nagôs ou anagôs (anàgó) pelos vizinhos fons, termo que terminou sendo aplicado a todos os iorubás do oeste.” (SILVEIRA, 2006, p. 326). No final do “[...] século XVIII Ketu era um reino de médio porte, fora das rotas do mercado de longo curso, porém centro regional dinâmico, estrategicamente importante na região.” (SILVEIRA, 2006, p. 327). Conforme o autor registra, a costa ocidental da África já estava sendo explorada pelos europeus e tornara-se economicamente importante para o comércio atlântico, incluindo a mercadoria humana africana com o tráfico de escravos, desde meados do século XVII. Joseph Levi (2006) considera que os primeiros escravos africanos

65 O termo Olubajé significa festa de Omolu e que etimologicamente tem o sentido de banquete do Senhor, ficando assim a classificação: (olu= senhor; ibá je= comer em companhia dos outros), segundo Claude Lépine (2011).

remontem ao século XVI, ano de 1532. No entanto, assegura que eles já estavam em terra brasileira em 1539 e durante a vigência do primeiro Governador-geral, Tomé de Sousa (1549- 1553) e dos seus predecessores, Duarte da Costa (1553-1557) e Mem de Sá (1558-1572). A maioria de escravos africanos era transportada da África Ocidental, onde, atualmente, estão localizados os países Senegal e Angola, a chamada antiga Costa do Guiné, e também eram procedentes de “[...] bases e feitorias portuguesas como as de Arguim, Santiago, São Jorge da Mina e a ilha de São Tomé.” (LEVI, 2006, p.6).

Os nagôs de Ketu quando chegaram à Bahia já encontraram africanos de outras etnias, como, por exemplo, os jejes, os malês, os angolas. E com eles todo um modo de ser e de estar cujas raízes culturais transcendem o mundo visível para o mundo invisível com o culto dos orixás e voduns, para citar as divindades das culturas nagôs e jejes. Para os africanos que chegaram ao Brasil na condição de escravos e seus descendentes, religião é cultura. Religião é modo de ser e de estar. A religião africana, segundo Roger Bastide (1968, p. 6), está centrada em um “[...] modelo mítico sobre o qual devem-se moldar as condutas dos indivíduos pertencentes à mesma unidade étnica: a maneira de lavrar a terra, a arquitetura das casas, os passos de dança, o sistema de parentesco, a organização das chefferies, os gestos na união amorosa.” O autor traça um paralelo entre civilização africana e civilização ocidental para apreensão do sagrado. A linguagem é o ponto de contato que ele estabelece, recorrendo ao campo da etnologia, para investigar o sagrado na civilização africana em comparação com a civilização ocidental. A estrutura da civilização africana é marcada por símbolos, enquanto a ocidental é por sinais. Assim explicitado, a proposição de Bastide torna-se um paradoxo. Mas aqui se considera que a linguagem, assim como o mito, são metáforas da realidade, sendo que “[...] a essência da linguagem é simbólica porque consiste em representar um elemento da realidade por outro, como ocorre com as metáforas.” (PAZ, 2012, p. 42). Bastide (1968, p. 7) vê também ponto de convergência: tanto a representação do pensamento simbólico quanto a do pensamento por sinais exige uma “[...] estrutura humana imutável e idêntica em todas as partes.” Bastide (1968) cita Cassirer que concebe que o homem necessita de meios artificiais para ver a realidade, ou seja, por intermédio das formas linguísticas, imagens artísticas, símbolos míticos e ritos religiosos. Aqui finda a condição humana geral, segundo Bastide, e se forja a oposição entre sistema de símbolos e sistemas de sinais, referentes às sociedades africana e ocidental.

Na civilização dos sinais, a liguagem é enquadrada em regras gramaticais e os sentidos estão nas palavras devidamente organizadas. Ou como diz Bastide (1968, p.7), “[...] o Ocidente substitui cada vez mais, e sobretudo a partir de Descartes, a ordem mítica por uma

ordem aritifical mais ou menos fabricada pelos matemáticos ou gramáticos.” Na civilização do símbolo no modo de ser e estar africano, as palavras transitam para o outro lado do real nas quais suas mensagens reproduzem e representam “[...] seus valores subjetivos, coletivos e culturais.” (BASTIDE, 1968, p. 8).

O africano vê em tudo que percebe através dos seus sentidos coisa diversa da que êle [sic] vê - descobre o Outro, isto é, o sagrado, através dos minerais, vegetais ou animais. Não é a palavra do homem que significa e circunscreve os objetos; são os objetos ou coisas, que são ‘palavras’, para o africano. Para nós, ao contrário, o mundo não é mais que uma língua bem feita, por ser obra humana e não mais palavras originadas nas coisas; um conjunto de sinais ligados por regras fixas. (BASTIDE, 1968, p. 8).

E essa descoberta do mundo diverso e encantador vai exigir de civilizações como etnias africanas do culto dos orixás e voduns – acrescentam-se, neste contexto, civilizações

indígenas, ou espécimes raras e surpreendentes como o poeta brasileiro Manoel de Barros67 –

o uso ampliado dos sentidos: do olhar apurado, do escutar aguçado, do cheirar inebriante, dos sabores partilhados, do toque despertador. Deixar-se enveredar pelos caminhos encantatórios dos sentidos, de tal modo que coisas se tornem palavras, objetos virem palavras, o invisível apresenta-se visível. Este sagrado tão diverso não cabe na racionalidade ocidental que limita e delimita as coisas em palavras, reduzindo linguagem social, no dizer de Paz (2012, p. 47), “[...] num jargão árido de técnicos e jornalistas.”

As tradições orais são fundamentais para vivências e adaptações dos cultos afros no Brasil. São essenciais nos sistemas simbólicos da religião de origem africana, mas também são estratégias de disseminação dos interesses da comunidade religiosa por intermédio de um sistema de comunicação oral simplificado que interliga de modo direto emissor, meio e receptor. Ou seja, as informações dos terreiros correm de boca em boca, como atesta ekede Sinha. “Eu falo com um filho, o outro filho fala com o outro filho, o outro filho fala com o

outro filho [...]” (Informação verbal)68 e assim segue o processo de comunicação do povo de

santo, mesmo na atualidade, conforme se verificou com os entrevistados. “É ‘um selo de

correio na boca’, como a gente fala.” (Informação verbal, grifo nosso)69, complementa Sinha.

67 Manoel de Barros é poeta brasileiro, de Mato Grosso, autor de vasta produção literária como poesia, literatura infantil e relatos autobiográficos. O universo que salta dos poemas desse autor são inspiradores para o jornalismo pela riqueza e amplitude como ele conseguiu quebrar limites, desenformando palavras, tornando- as potencialmente belas para além dos significados mais comuns.

68 Trecho da entrevista com ekede Sinha realizada no Terreiro da Casa Branca, em 26/09/2013. 69 Trecho da entrevista com ekede Sinha realizada no Terreiro da Casa Branca, em 26/09/2013.

Mãe de santo; pai de santo; filho e filha de santo. Esta é a forma de tratamento nos terreiros de candomblé e de mina. O sistema de parentesco foi ressignificado com a extradição de africanos de diversas etnias para o Brasil. Laços de parentesco diferentes dos biológicos foram criados entre os nagôs, os jejes, os angolas etc., conforme Parés (2007). Do mesmo modo, as associções de caráter religioso como as irmandades também contribuíram para reforçar a aproximação entre os africanos e seus descendentes em torno de uma coletividade. Sentido de pertencimento que estariam presentes nos batuques, nos calunduns, cujos elos e

forma de parentesco se prolongaram com os candomblés (PARÉS, 2007; LIMA, 2011)70.

No candomblé o “[...] conceito de família biológica cede sempre lugar ao outro, de família-de-santo.” (LIMA, 2011, p. 80), cuja liderança está centrada no seu líder maior, a mãe de santo denominada de ialorixá ou no pai de santo, identificado como babalorixá, condição alcançada somente pelo processo iniciático no culto dos orixás.

O rito da iniciação constitui o primeiro e decisivo momento da integração das pessoas no candomblé e estabelece uma relação permanente que é a própria essência da organização social do grupo. A iniciação, em suas várias formas, além dos aspectos psicológicos que envolve, por ser o meio pelo qual as pessoas se identificam com seus orixás, provê, ainda, o mecanismo de agregação no grupo em que se poderá, eventualmente, atingir a completa participação nas hierarquias dirigentes. (LIMA, 2011, p. 91).

De acordo com o autor, os primeiros ritos integratórios são denominados de lavagem das contas, ou seja, quando o “[...] o abiã usará as contas de seu orixá lavadas pela mãe-de-santo do terreiro, e participará dos trabalhos da casa, onde aprende o comportamento ritual que mais tarde lhe será mais estritamente imposto.” (LIMA, 2011, p. 91). O abiã é o noviço ou a noviça, o aspirante, podendo passar das contas lavadas para a obrigação do borí. De acordo com Mãe Stella, o borí “[...] é uma ‘obrigação’ feita no iniciante com a intenção de

fortalecer, de segurar a cabeça – o Orí71.” (SANTOS, 2010, p. 38, grifo da autora). Borí é uma

cerimônia realizada no terreiro e inclui oferendas, cânticos, louvações, danças, partilha de comida.

Os sinais da iniciação são narrados como um chamado do orixá, uma cobrança da divindade. É preciso resolver essa questão para seguir a vida. Neto de mulheres com vínculos

70 Para Gisèle Cossard (2011), ialorixá e estudiosa do candomblé, a denominação de mãe, pai e filho e filha faz parte do sincretismo religioso que, no candomblé, faz com que cada divindade esteja associada a um santo católico.

71 Orí quer dizer cabeça (SANTOS, 2010); o mesmo que alma e tem relação com os antepassados da pessoa (LÉPINE, 2011).

no candomblé, Ivan Ayrá, o alabê72 do Ilê Axé Opô Afonjá, evoca a ancestralidade como sua relação primeira com o candomblé. Explica que sua avó paterna era iniciada no candomblé de nação banto e que a sua avó materna frequentava terreiro de candomblé, mas que não fora iniciada.

E tenho notícia que ela tinha que ser iniciada, ela tinha que cuidar de alguns orixás que também já eram de ancestrais dela. E ela não fazendo isso, isso caiu sobre mim. E daí depois essa coisa do orixá, do encantamento não tem muito como explicar, é difícil explicar. Se explicasse com tanta facilidade, não era encanto, né?. (Informação verbal)73.

Ele conta que começou a frequentar o terreiro de Mãe Stella com 14 anos de idade, apenas para brincar com outros jovens de sua idade. “E daí fui ficando, ficando, ficando, aprendendo sobre os rituais aqui da casa, conhecendo as pessoas e criando [...] passei a criar um amor por Xangô, uma coisa por Xangô. [...] Eu não tinha noção que ia ser

iniciado.” (Informação verbal)74, relata. Tornou-se ajudante no terreiro. “Estava aqui para

tudo. Eu ia para o barracão, ajudava na decoração do barracão e as pessoas já passaram, as

mais velhas pelo menos, a me ter como um garoto da [...] do axé.” (Informação verbal)75,

informa. Do garoto do axé para a condição de abiã, depois iaô e, atualmente, alabê, sete anos se passaram. Essa passagem do tempo, de acordo com Ivan, deu novo sentido para sua vida.

[...] eu sou uma pessoa antes da iniciação e sou uma outra pessoa depois da iniciação. A iniciação representa para mim o discernimento na vida. Eu saber o que é, qual é meu papel enquanto ser humano aqui no mundo. O orixá representa isso para mim. O Candomblé representa isso para mim. A minha iniciação representa isso para mim. Foi depois da iniciação que eu vim perceber o que era que eu vim fazer aqui, o que é, para que é que eu sou importante aqui na Terra, qual é minha função, sabe? Perceber que eu não sou melhor nem diferente, melhor nem igual, mas que sou diferente, por ser iniciado, por ser veículo de um ancestral aqui nesse novo mundo. É isso que é o que eu acredito. O Candomblé é importante para mim por isso, para demonstrar o que é ser um ser humano. (Informação verbal)76.

No processo de formação dos aspirantes, os postulantes recebem o nome de iaô, um termo iorubá que significa a esposa mais nova, sendo a partir daí o primeiro grau “[...] de um longo caminho de promoções e de cargos, de responsabilidade, de conhecimento e de poder.” (LIMA, 2011, p. 95). Ainda de acordo com Lima, nas chamadas casas tradicionais de

72 Alabê em iorubá é grafado alabę. Ele assume, nos rituais, o papel de comunicador entre os orixás e o egbé através da música, do toque dos atabaques e dos cânticos (SANTOS, 2010).

73 Trecho de entrevista realizada com Ivan Ayrá, no terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, em 19/11/2014 (APÊNDICE B, X).

74 Trecho de entrevista realizada com Ivan Ayrá, no terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, em 19/11/2014. 75 Trecho de entrevista realizada com Ivan Ayrá, no terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, em 19/11/2014. 76Trecho de entrevista realizada com Ivan Ayrá, no terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, em 19/11/2014.

candomblé da Bahia, “[...] a iaô só perde esse nome quando faz a obrigação de sete anos, isto é, quando renova os seus votos e sua ligação com seu orixá, numa cerimônia que revive a da iniciação.” (LIMA, 2011, p. 95). Gisèle Cossard (2011) diz que para se tornar iâo é preciso ser escolhida pelo orixá. Explica, ainda, que com a iniciação no candomblé a iaô aprenderá a controlar o transe, que é a descida do orixá ao mundo humano. Para a ialorixá, o momento do

ritual do transe em cerimônia pública77 é considerado uma festa com dança, cânticos e

gestuais apresentados sob o olhar do público presente no terreiro de candomblé.

Por ocasião do retorno do orixá à Terra, os trajes rituais, as insígnias levadas pelas iniciadas [iaôs] em transe, os ritmos, os cantos e a coreografia perpetuam lendas que formam uma herança preciosa que a iaô transmite de geração em geração. É o patrimônio da comunidade. (COSSARD, 2011, p. 134).

Na Bahia, o patrimônio cultural do candomblé tem classificação relativa aos terreiros de origem africana e, como tal, são considerados ortodoxos por seguirem os preceitos

do culto dos orixás, conforme os africanos que o trouxeram para o Brasil78. Estão nesta

condição, os terreiros mais antigos da Bahia, pertencentes à nação Ketu, localizados em Salvador como a Casa Branca, o Gantois, o Axé Opô Afonjá, o de Olga de Alaketo (SANTOS, 2005).

As narrativas em torno da africanidade por parte de candomblés na Bahia, segundo Parés (2007, p. 160), se dá, historicamente, após a Abolição, e tem relação com a constituição de um “[...] capital simbólico para enfrentar a concorrência das casas de fundação recente.”, ou seja, de origem mestiça e, portanto, originário de descendência africana mais longínqua.

A questão da africanidade dos candomblés baianos remete à fundação do Candomblé da Barroquinha, primeiro terreiro assentado no centro de Salvador, localizado nas proximidades do Mosteiro São Bento. O Barroquinha teria surgido entre 1788 e 1830, de acordo com a literatura especializada. Para Silveira (2006), a data provável de fundação seria por volta de 1798, inicialmente com um assentamento doméstico. Os nagôs de Ketu, segundo

77 As cerimônias públicas são apenas uma parte do longo e complexo processo de iniciação no candomblé; há outros rituais que fazem parte do processo de educação das iaôs, a exemplo das obrigações internas realizadas no terreiro de candomblé ou roça, como assim é chamado o espaço sagrado do culto dos orixás. Obrigação inclui toda a série de rituais que implicam recolhimento, silêncio, sacrifício de animais, abnegação, humildade, oferenda de alimentos, práticas de purificação. “É através das sucessivas obrigações que a carreira sacerdotal está organizada no candomblé.” (PRANDI, 1991, p. 249).

78 Luis Parés (2007) faz alusão à possível existência de candomblé sob a liderança de africanos até o final do século XIX, na Bahia. Ele levou em consideração o depoimento de uma africana integrante do candomblé à Nina Rodrigues, na qual a depoente informou que o terreiro no qual dançou era formado por africanos da Costa, enquanto o Terreiro do Gantois era de gente da terra, ou seja, crioulos e mulatos, descendentes dos africanos, nascidos no Brasil.

as narrativas dominantes, são os fundadores do Candomblé da Barroquinha, que, na ocasião pertenciam a Irmandade do Senhor dos Martírios, confraria de composição étnica. De acordo com Silveira (2006, p. 294), no início do século XIX, a Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Martírios da Barroquinha tinha entre seus integrantes africanos nobres do Reino de Ketu, malês importantes, contando ainda com “[...] boa capacidade de mobilização, arrecadação e produção. Era uma força cívica, portanto, política, que não podia ser subestimada [...]”.

Entre os líderes no processo de fundação do Barroquinha está o africano Bamboxé, príncipe de Oyó, que teria chegado à Bahia após 1831, na condição de escravo, como forma de burlar a legislação vigente que já proibia a entrada de africanos. Fora trazido por Maria Júlia Iyá Nassô e Marcelina Obatossi (SILVEIRA, 2006). Na Bahia, recebeu o nome de Rodolpho Martins de Andrade.

[...] era iniciado no culto de Ogodô, um dos orixás guerreiros da casa real de Oyó. Ogodô estava assentado na coroa de Xangô que se encontra no atual barracão da Casa Branca e sabe-se que a antiga coroa, substituída pela atual e perdida na década de 1960, foi confeccionada pelo próprio Bamboxê. (SILVEIRA, 2006, p. 403). Considerado um ancestral, no Terreiro da Casa Branca, era saudado na cerimônia

Padé79, ritual em homenagem aos mortos. Anterior a Bamboxé, outro africano é também

considerado primordial para a fundação do terreiro da Barroquinha: Babá Assiká. No Padé da Casa Branca, “[...] é o primeiro a ser homenageado.” (SILVEIRA, 2006, p. 406). O culto das divindades no Candomblé da Barroquinha, Oxóssi de Ketu e do Xangô de Oyó, foi mantido pelas principais Casas tradicionais de Salvador. Na Casa Branca, o ciclo de festas começa com Oxóssi, celebrado no mesmo dia de Corpus Christi; em seguida, no dia 29 de junho, acontece a festa dedicada a Xangô. Oxóssi, divindade cultuada em Ketu, atual República do