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RECONHECENDO O OBJETO EM SEUS NEXOS CONCEITUAIS

4.3 TERRITÓRIO E COTIDIANO

A Atenção Primária em Saúde (APS) no Brasil tem as suas práticas de cuidado e gestão dirigidas a populações de territórios definidos (BRASIL, 2011). Nesse sentido, o entendimento sobre o território e o cotidiano de uma comunidade pode revelar contextos de vulnerabilidade e, ao mesmo tempo, as potenciais soluções para reduzi-los, contribuindo para a elaboração de ações de saúde pautadas pela realidade local.

O referencial teórico utilizado para abordar o conceito de território e cotidiano remete-se prioritariamente aos estudos de Milton Santos (1978, 1994, 2005, 2006, 2007 e 2009), Michel de Certeau (1996) e de Rogério Haesbaert (2011), cujas abordagens podem ser transportadas para o cenário das práticas de saúde.

Comumente associado à geografia, o conceito de território não tem nesse campo de conhecimento a sua única aplicação, ele tem sido utilizado por outros campos de conhecimento tais como economia, ciência política, sociologia e antropologia (HAESBAERT, 2011), incluindo a saúde, que tem incorporado os conceitos de território e espaço como referenciais para a construção de políticas, programas e projetos, e para a organização de ações e serviços com base territorial.

Santos (2005) diferencia o território e o território usado, em que o primeiro são formas, e o segundo são objetos e ações, sinônimo de espaço humano, espaço habitado, sendo o seu uso, e não o território em si mesmo, que faz dele objeto da análise social. Interessa à saúde, e em especial à concretização de práticas com as características da intervenção comunitária, o fato de que no território se estabelece uma sociabilidade no cotidiano, que será tanto mais intensa quanto maior for a proximidade entre as pessoas envolvidas (SANTOS, 1996 apud BARCELLOS 2008).

Destacamos ainda a distinção entre os conceitos de espaço e território. A noção de espaço implica que diversos segmentos de uma mesma comunidade tenham diferentes entendimentos e usos relacionados ao espaço. A significação de espaço é diferente para cada um e é determinada pelas experiências e pelas operações que dão origem a sua definição (SANTOS, 1978).

O espaço geográfico é um conjunto indissociável de sistemas e objetos (fixos) e de ações e funções (fluxos), que se inter-relacionam, organizam-se e se dispõem refletindo a estrutura desse espaço geográfico. Os fixos são os objetos ou formas que podem ser criados pelo homem (estradas, prédios, barragens, hospitais) ou de ordem

natural (rios, montanhas) e os fluxos dizem respeito aos movimentos, circulação de pessoas, mercadorias e ideias (SANTOS, 1978).

Santos (1997, 2004), entendendo o espaço como processo e produto das relações sociais, que se realiza pela ação, destaca a importância da técnica para sua compreensão. A técnica aqui é entendida como “conjunto de meios instrumentais e sociais, com os quais o homem realiza sua vida, produz e, ao mesmo tempo, cria seu espaço” (SANTOS, 1997, p. 29).

Santos (1997) afirma que é o lugar que atribui às técnicas o princípio de realidade histórica, relativizando o seu uso, integrando-as num conjunto de vida, atribuindo- lhes efetividade histórica, e desse modo, não há técnicas isoladas. Em um determinado lugar há a operação simultânea de várias técnicas, por exemplo, técnicas agrícolas, industriais, de transporte, comércio ou marketing e de saúde.

Os lugares redefinem as técnicas, e cada objeto ou ação (que se instala) se insere em um tecido preexistente e tem seu valor modificado e sua presença também se

modifica em relação aos valores preexistentes. Todos os objetos e ações veem modificada sua significação absoluta (ou tendencial) e ganham uma significação relativa, provisoriamente verdadeira, diferente daquela do momento anterior e impossível em outro lugar (SANTOS, 2004).

O entendimento das técnicas, sua repercussão sobre o espaço, e deste sobre a técnica, são fundamentais para redefinir horizontes relacionados às práticas de saúde, práticas que se desenvolvem em um espaço peculiar, em um dado momento.

Entre as dimensões do espaço, Barcellos et al. (2008) referem-se à vivência e à percepção como dimensões essenciais e complementares que consolidam os aspectos subjetivos do espaço, marcado ainda por afetividade e referências de identidade sociocultural, não fazendo referência a limites e a acesso. Geiger (1994 apud BARCELLOS, 2008, p. 25) refere que “o espaço transcende fronteiras e, psicologicamente, transmite a sensação de abertura”.

Em contrapartida, o conceito de território nos recorda a noção de terra, material. Território tem sua origem do vocábulo latino terra e corresponde a territorium. Conforme Di Méo (1998 apud HAESBAERT, 2011, p. 45), o jus terrendi confundia-se com o direito de aterrorizar. Embora não ocorrendo consenso sobre essa origem etimológica, é importante ressaltar que, direta ou indiretamente, o que se propagou sobre território diz respeito a um duplo sentido: à terra, ao território como

materialidade, e aos sentimentos que o território inspira, por exemplo, medo (para quem é dele excluído) e satisfação (para quem dele usufrui ou com ele se identifica).

Santos et al. (2000 apud HAESBAERT, 2011, p. 58-9) aponta que o uso, sobretudo o econômico, é o definidor por excelência do território. O autor afirma que o território pode ser usado como recurso, para atender aos interesses particulares de atores hegemônicos, ou como abrigo para os atores hegemonizados. Segundo o autor, o território usado é um todo complexo com relações complementares e conflitantes.

Na concepção jurídico-política de território, “o vínculo mais tradicional na definição de território é aquele que faz a associação entre território e os fundamentos materiais do Estado” (HAESBAERT, 2011, p. 62), já a perspectiva idealista remete à apropriação simbólica do espaço (HAESBAERT, 2011, p. 69). Para Bonnemaison e Cambrézy (1996 apud HAESBAERT, 2004 p. 72-3) “o território não diz respeito apenas à função ou ao ter, mas ao ser [...] perder seu território é desaparecer”.

A perspectiva integradora de território envolve a leitura deste como espaço que não pode ser estritamente natural, nem unicamente político, econômico ou cultural, mas integrado entre as diferentes dimensões sociais, o que aponta para dois caminhos: admitir vários tipos de territórios coexistentes no mundo contemporâneo (políticos, econômicos, culturais, cada um com uma dinâmica própria) ou trabalhar com a ideia de construirmos o território de forma articulada, integrada tal como se configura a rede urbana (HAESBAERT, 2011).

Santos (2007), questionando para quem seria real a rede urbana, aponta o fato de que para muitos a rede urbana existente e a rede de serviços correspondente são realidade apenas para os outros, fazendo dos excluídos do acesso à rede e aos serviços cidadãos diminuídos e incompletos. Essa desigualdade no valor de cada pessoa, desse ou daquele território, contribui para que o homem passe literalmente a valer em função do lugar onde vive.

Já na perspectiva relacional, o território é visto completamente inserido dentro de relações social-históricas ou de relações de poder. Para Haesbaert (2011, p. 89), “toda relação de poder espacialmente mediada é também produtora de identidade, pois controla, distingue e separa e, ao separar, de alguma forma nomeia e classifica os indivíduos e os grupos sociais”.

Santos (1994) destaca que assim como existem normas sociais e culturais, que embora não tenham força de lei existem concretamente como formas sociais herdadas, hoje o território é também uma norma, que deriva de ações e do próprio território como

ele se apresenta arranjado. Os arranjos territoriais se dão em função da racionalidade da produção do próprio espaço, de sua dependência técnica.

Após transitarmos pela complexidade e multiplicidade que o conceito de território comporta, retornamos ao seu componente cultural para trazer à tona o conceito de cotidiano, que abre novas possibilidades para o entendimento contextual do processo saúde-doença em espaços comunitários (BARCELLOS et al., 2008)

Para compreendermos o cotidiano ligado à dimensão cultural do território, recorremos a Certeau (1996) quando diz que para se considerar a cultura como ela é praticada, segundo o que a sustenta e organiza, é necessário considerá-la sob três prioridades evocadas pela cultura popular: a oralidade, a operatividade e o ordinário.

Certeau (1996) destaca que a oralidade constitui espaço essencial da comunidade e que não existe comunicação sem oralidade. Oralidade esta em toda parte porque a conversação se insinua em todo lugar, organiza a família, a rua, o trabalho, o que acaba por lhe conferir um estatuto teórico inferior (prática comum).

Em relação à operatividade, Certeau (1996, p. 339-341) afirma: “a cultura não é informação, mas seu tratamento através de operações em função de objetivos e relações sociais” e a cultura ordinária é antes de tudo “uma ciência prática do singular”, que toma às avessas nossos hábitos de pensamento nos quais a racionalidade científica é conhecimento do geral. O autor afirma que nossas categorias de saber ainda são muito rústicas e nossos modelos de análise por demais elaborados para permitirem imaginar a abundante prática inventiva das atividades cotidianas.

De acordo com Santos (2006), o cotidiano é compartido entre as mais diversas pessoas, firmas e instituições. A cooperação e o conflito são a base da vida em comum do lugar, do qual vêm solicitações e ordens precisas de ações condicionadas, mas é também o teatro insubstituível das paixões humanas, responsáveis, através da ação comunicativa, pelas mais diversas manifestações da espontaneidade e da criatividade. É no lugar que a rede praticamente se integra e dissolve através do trabalho coletivo, implicando um esforço solidário dos diversos atores.

Referindo-se à existência de uma ordem global e uma ordem local, Santos (2006) diz que a ordem local funda a escala do cotidiano, e seus parâmetros são a copresença, a vizinhança, a intimidade, a emoção, a cooperação e a socialização com base na contiguidade. Já a ordem global funda as escalas superiores ou externas à escala do cotidiano, seus parâmetros são a razão técnica e operacional, o cálculo de função, a linguagem matemática. Cada lugar é, ao mesmo tempo, objeto de uma razão global e de

uma razão local, convivendo dialeticamente. Constitui-se então a Lei do Mundo e a Lei do Lugar.

Sintetizando as questões referentes ao território e ao cotidiano de um ponto de vista mais pragmático, Haesbaert (2011) considera que a implementação das políticas de reordenamento territorial necessita considerar duas características básicas do território: o seu caráter político, jogo entre os macropoderes políticos institucionalizados e os micropoderes simbólicos produzidos e vividos no cotidiano das populações e, também, o seu caráter integrador, tendo o Estado como gestor redistributivo e os indivíduos e grupos sociais capazes de reconhecer e tratar o espaço social e suas múltiplas dimensões.

Consideramos que os conceitos de cotidiano e território propostos por Milton Santos e Rogério Hasesbaert e a abordagem da dimensão cultural aportada por Michel de Certeau, ao dialogarem com as práticas de saúde, podem contribuir para refletirmos sobre a intervenção comunitária, objeto deste estudo, como práticas de saúde que propõe a superação do uso do território pautado pelos saberes e práticas normatizados pela Lei do Mundo, para outras possibilidades que incorporem saberes e práticas que se pautem pela dimensão cultural do território, seus usos, normas, saberes e técnicas próprios, conformando ações contextualizadas com a Lei do Lugar.