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A escola, muitas vezes, é o único espaço onde o sujeito pode encontrar-se com o livro literário. Deveria ser, portanto, um ambiente privilegiado para a formação de leitores. Ela assume a responsabilidade de introduzir o educando no processo de alfabetização e, gradativamente, de aprimoramento de leitura, em direção ao letramento literário. É papel da instituição de ensino contribuir para que a aprendizagem da língua escrita, envolvendo as dinâmicas complementares de leitura e de escritura, não se encerre na simples aquisição do código. Torna-se também necessário preparar o leitor para que adote um comportamento em que a leitura deixe de ser eventual e passe a fazer parte da vida do educando, despertando-lhe prazer e desejo em aprender.

Nesse sentido, entre as diversidades de materiais emergentes no contexto escolar é imprescindível a obra literária, em especial, os contos populares, pois, além de se inserir na esfera da cultura, como uma resposta do autor às questões sociais da época, instiga o leitor a repensar sua vida, seu contexto, a fim de modificar o seu entorno e a si mesmo (SARAIVA, 2001).

Mas será que as atividades direcionadas à obra literária no contexto escolar são favoráveis à formação de leitores? Como a obra literária é trabalhada no espaço escolar? Será que os alunos têm a possibilidade de repensar seu contexto, sua vida a partir de suas leituras? Essas e outras indagações foram questões centrais que tentamos focalizar durante as observações e entrevistas no colégio que aplicamos a pesquisa.

Por ser localizada em um bairro popular da cidade, com famílias de baixa renda, a escola acaba sendo um dos poucos espaços de encontro entre o aluno e o livro. Isso demanda uma responsabilidade maior por parte da instituição, tendo em vista que a leitura poderia desencadear uma mudança na sua condição social, na forma de conduzir sua vida e ver seu meio social.

Segundo aponta o Regimento Escolar (2008) do estabelecimento escolhido para a pesquisa, além da pobreza existente na comunidade atendida, as famílias

geralmente são numerosas, os adultos não têm emprego fixo, o que acaba levando muitas vezes crianças e adultos para as ruas com intento de buscar alternativas para o sustento. O bairro apresenta escassas opções de lazer, e a escola é um dos poucos espaços existentes para essa finalidade. O tráfico de drogas, conforme ressalta o próprio Regimento, é intenso no bairro. Outro problema enfrentado pela instituição é a depredação do espaço físico externo, além de furtos e arrombamentos às dependências da escola.

Diante desse panorama, o colégio busca estratégias que visam aproximar a escola da comunidade, e, entre elas, destacamos a contação de histórias. Conforme enfatiza a profissional responsável pela biblioteca, sempre que há reuniões de pais e eventos promovidos pela instituição ou pela comunidade em geral, ela dispõe um momento para explanação das histórias. Além disso, a disponibilidade do acervo para leitura, o empréstimo de materiais e a diversidade de horários em que as famílias podem desfrutar da pesquisa no próprio ambiente escolar são fatores que têm atraído os pais para o ambiente escolar.

Mas, a leitura não se restringe aos alunos e à comunidade, também é oferecida aos professores. A profissional responsável pela biblioteca, que define como meta para 2009 desenvolver um trabalho eficaz e comprometido com propostas diferenciadas de promoção à leitura, busca, através do projeto ―Hora da Leitura‖, um momento específico para tal ação. Todas as terças-feiras, no último período de aula, em ambos os turnos, estudantes, professores e serventes param suas atividades e interagem com a diversidade de textos que a biblioteca escolar disponibiliza. Para cumprir essa finalidade, a professora classifica os textos em gêneros – contos, poesias, artigos, folders, charadas – organizando-os em caixas. Toda semana há uma rotatividade desse material entre as turmas de estudantes e funcionários. O procedimento permite que os sujeitos não só tenham acesso e conheçam uma diversidade de textos, mas optem por leituras que lhes agradem. Não há uma regra para leitura do material, no entanto percebemos que ocorre de forma distinta, dependendo do gênero proposto. A professora da biblioteca explica que quando os alunos entram em contato com charadas ou folders, por exemplo, buscam partilhar a leitura com os colegas. Entretanto, esse procedimento não ocorre da mesma forma com os contos e os poemas, pois, segundo sua observação, os alunos preferem uma leitura mais reservada.

A preocupação em desenvolver propostas que contribuam para formação de leitores foi um dos aspectos evidenciados durante toda entrevista realizada com a docente responsável pelo trabalho na biblioteca. Conta que sua formação é Habilitação para o Magistério e atualmente cursa Licenciatura Plena em Artes. Ocupa o cargo de bibliotecária há dezessete anos e mesmo não tendo formação específica para atuar em bibliotecas, busca aperfeiçoamento constante através de cursos direcionados ao assunto. Afirma que gosta muito de ler e do trabalho que desenvolve com contação de histórias, paixão que pode ser evidenciada no único espaço em que encontramos elementos promotores de leitura.

Na porta da biblioteca, há uma imagem convidativa e que representa o trabalho realizado: uma senhora contando histórias a um grupo de crianças e uma frase sob a imagem dizendo ―Biblioteca a eterna procura‖. Nesse espaço, centralizam-se os projetos de promoção à leitura, desenvolvidos pela profissional em parceria com a professora titular ―para que não seja um momento desvinculado da sala de aula‖, comenta a professora da biblioteca. Durante o ano, semanalmente, em um horário específico de aproximadamente 50 minutos, cada turma compartilha desse momento.

Ilustração 2 - Porta de acesso à biblioteca

A biblioteca é pequena, mas aconchegante, com sofá, mesas redondas, boa luminosidade e um vasto acervo de materiais para leitura, organizados em estantes

e caixas. Os livros, assentados em prateleiras, são divididos por gêneros textuais e as obras literárias são subdivididas em literatura infantil e infanto-juvenil. A prateleira com literatura infantil é baixa, ao alcance dos pequenos. Ao observá-la, constatamos que não há separação entre obras literárias e não literárias, pois todos os livros destinados à criança são classificados como ―literatura infantil‖.

Como o tempo destinado ao trabalho na biblioteca é restrito (50 minutos), a profissional inicia a atividade de contação durante 40 minutos, cabendo à educadora titular dar continuidade em sala de aula. Os dez minutos finais são destinados à troca de livros. A responsável pela biblioteca coloca sobre a mesa uma variedade de obras, e os alunos manuseiam os textos enquanto outros vão até as estantes para fazerem a escolha do material para leitura. As crianças têm liberdade de escolha, mas, ao mesmo tempo, a professora fica atenta às opções dos alunos com o propósito de verificar se a obra selecionada, no seu entendimento, é adequada para o estudante e ainda apresenta sugestões de outras leituras.

Ilustrações 3 e 4 – Disposição do acervo na biblioteca

Esse procedimento é essencial para promover o hábito de leitura, pois, ao oferecer livros que sejam próximos da realidade dos estudantes, os sujeitos acabam se identificando com a linguagem, com os ambientes e com os problemas apontados pelo texto. Essa familiaridade com a obra pode gerar uma predisposição para a leitura, desencadeando assim o ato de ler (BORDINI; AGUIAR, 1993). Esse olhar vigilante da professora, além de auxiliar o sujeito na escolha do material, possibilita que conheça os gostos das crianças com quem trabalha. Sabemos que cada

indivíduo possui interesses distintos e variados acerca da leitura e esse momento de contato com os livros possibilita ao estudante selecionar seu material de acordo com suas necessidades momentâneas, que podem ser direcionadas à informação ou à recreação (BORDINI; AGUIAR, 1993).

Outro modo para configurar o panorama da leitura na escola ocorreu por meio de entrevista com a professora titular da turma. Essa profissional tem Habilitação em Magistério e Pedagogia nas Séries Iniciais. Seu depoimento revela que procura desenvolver um trabalho mais voltado às normas, à conduta, tendo em vista a indisciplina de alguns alunos. Uma das atividades orientadas pela docente foi efetivada a partir de uma contação realizada pela bibliotecária, através de uma história chamada ―Vamos construir pontes e não muros‖. O texto não tem autoria identificada e, conforme a docente, foi retirado de um almanaque, porém não lembra o título do exemplar. A partir da história, a professora sugeriu aos alunos que refletissem sobre suas relações pessoais e propôs que falassem sobre alguns motivos que pudessem levá-los a construir muros ou pontes. Em seguida, a turma montou um painel com desenhos de pontes e nelas escreveu palavras, como ―amizades‖ e ―paz‖, simbolizando o que os alunos pretendiam construir a partir de suas atitudes.

No que se refere à literatura infantil, percebemos essa preocupação na análise do projeto da biblioteca. Em um dos tópicos, a responsável pelo espaço apresenta como objetivo ―abordar com a literatura infantil o tema medo‖ e, para cumprir esse propósito, cita alguns personagens que utilizará na ―Hora da História‖, como: ―bruxa, bicho-papão, vampiro, bandido, lobo mau, homem do saco...‖. Valendo-se da leitura, a professora busca algumas formas de trabalhar o tema eleito, solicitando aos alunos que escrevam seus medos em papéis para, em seguida, colocá-los em uma caixa, pedindo a um anjo que levem os temores para longe.

Além de o texto não ter caráter literário, a atividade citada não focaliza aspectos intrínsecos ao texto, como, por exemplo, a estrutura narrativa de modo a instrumentalizar o estudante a desenvolver sua competência narrativa e, consequentemente, contribuir para o letramento literário desses leitores. Na verdade, essa prática de leitura é uma estratégia para discutir o medo. Como Saraiva enfatiza, é necessário arquitetar práticas de leitura que possibilitem um

encontro entre os textos e seus leitores, deixando de lado concepções que se reduzam à forma de ver o livro (SARAIVA, 2006).

Na entrevista com a professora titular da turma, percebemos a falta de clareza sobre o que vem a ser literatura e sobre o trabalho que compete ao professor, mediador do processo de ensino-aprendizagem da leitura. Ela argumenta que a literatura seria utilizada em suas aulas ―como prazer e, ao mesmo tempo, a literatura como uma habilidade: da leitura, da compreensão‖. Embora a afirmação demonstre preocupação em desenvolver a competência de leitura dos alunos, a literatura, como já discutimos, tem especificidades, que abrangem a reflexão acerca da natureza humana, por meio de uma linguagem simbólica.

O modo como a linguagem verbal se materializa evidencia certa literariedade, que pode ser entendida como um conjunto de características que contribuem para que um texto se torne polissêmico. É esse modo de organização da linguagem que evidencia o simbólico, o polissêmico, que é imanente ao artístico e possibilita que a literatura dê ―forma concreta a sentimentos, dilemas, angústias e sonhos por meio de representações simbólicas, criadas pela imaginação‖, como afirma Saraiva (2006, p. 29). Esse seria um dos conteúdos da literatura que deveria ser explorado na escola.

A leitura de uma obra literária envolve habilidades, muitas das quais são específicas em virtude da natureza desse texto. Na literatura, por exemplo, a realidade é transformada por meio da linguagem empregada, criando mundos subjetivos, ficcionais. Além disso, são usados recursos estilísticos, como a seleção rigorosa de palavras, uma organização sintática pontual, a fim de enaltecer determinados sentidos ou ainda gerar ambiguidades, o que é da natureza desse tipo de texto.

A partir da afirmação da docente, percebemos que, além de mesclar conceitos – leitura e literatura –, a professora não diferencia o texto literário de outras produções textuais. Essa confusão conceitual torna-se ainda mais evidente quando a professora afirma que ―literatura pode ser gibi, charadas, histórias em quadrinhos ou até textos que encontramos em materiais didáticos‖. Notamos, nessa fala, a influência do conceito de texto e, novamente, a falta de clareza para identificar o que pertence ao domínio do campo literário.

Saber distinguir literatura de não literatura é um dos aspectos essenciais para iniciar um trabalho em sala de aula que tenha como meta a orientação dos

discentes para a leitura do texto literário, mas não é o suficiente. Além dessa distinção, os educadores devem ser instrumentalizados para desenvolver em suas aulas atividades que favoreçam a apropriação das obras, ou seja, que auxiliem o estudante a perceber peculiaridades de cada modalidade textual. É necessário que professor e aluno percorram juntos os caminhos do texto e, nesse percurso, o adulto auxilie o infante a dar significado ao lido, mostrando outras possibilidades de perceber esse texto para que, gradativamente, o sujeito vá traçando seu próprio caminho como leitor.

Mas como promover um ambiente que gere inquietações nos sujeitos a partir das leituras? Como auxiliar os sujeitos a discorrerem pelos caminhos de um texto sem que desistam durante o percurso? Como possibilitar o encontro entre o leitor e o livro quando o sujeito não gosta de ler?

Pensando nessas questões, elaboramos os roteiros de leitura valendo-se de propostas lúdicas. Segundo Bordini e Aguiar (1993), as atividades que envolvem ludicidade, além de fazerem parte dos interesses de crianças e jovens, quando geradas a partir dos textos, tornam-se recursos importantes para desenvolver o prazer pela leitura. As autoras argumentam que, além de os textos agradarem aos leitores, as atividades desenvolvidas a partir deles devem fortalecer o pacto entre o leitor e a obra. A ludicidade presente nas atividades acaba quebrando o sentido obrigatório de leitura, contribuindo para que ―o ranço de disciplina escolar‖ (BORDINI; AGUIAR, 1993, p. 26) se transforme em ato espontâneo e instigante, desencadeador de momentos agradáveis de leitura.

Sobre esses momentos, gerados a partir das ações que integram os roteiros de leitura, é que iremos discorrer a seguir. Momentos em que do livro emergem diferentes personagens, ambientes, universos reais e imaginários, materializados a partir da criatividade e do pacto estabelecido entre os alunos e as narrativas, por meio da leitura.