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3. EM BUSCA DE UM ENSINO DE HISTÓRIA SITUADO

3.1. TERRITÓRIOS SITUADOS: A ESCOLA E A COMUNIDADE

A Vila Maria da Conceição cresceu em torno de um local onde, em 1899, ocorreu um crime hediondo. A jovem imigrante alemã, Maria Francelina Trenes, foi degolada por seu amásio, o soldado da brigada militar Bruno Bicudo. A vila, por muito tempo conhecida como “Maria Degolada” tem nesta história seu mito fundador. Entre as versões recorrentes está a afirmação de que Maria Francelina era prostituta. Entretanto, a comunidade transformou a suposta “puta” em santa, ergueu uma gruta em sua homenagem e atribui a ela inúmeras graças atendidas. Assim registrei em diário de campo do Projeto de Educação patrimonial, O Poder da Memória, minha primeira entrada na vila com as alunas e alunos:

Então foram me mostrando os lugares escolhidos por eles como patrimônio. Começamos pela lendária Gruta da Maria Degolada. Cercada por uma mureta baixa e um pequeno portão de entrada, a grutinha, como é conhecida, é uma casinha de tijolos à vista com uma cruz no centro e outra no canto da mureta, por onde passam os fios dos “gatos” de luz puxados pelos moradores. Na parte interna da mureta inúmeras placas de agradecimento à santa por graças atendidas. A placa mais antiga é de 1942. Uma placa de maior tamanho, colocada no ano de 1999, contém os seguintes dizeres: “Em memória a Maria Francelina Trenes, no centenário de sua morte, pelas muitas Marias que se tornou e em repúdio a toda forma de violência e discriminação contra as mulheres”. A placa é assinada pelo Grupo de Mulheres e Associação de Moradores da Vila Maria da Conceição, pela Associação Cultural de Mulheres Negras e pelo Coletivo Feminino Plural Maria Mulher. A apropriação e ressignificação do assassinato de Maria Francelina por seu amásio, o soldado da Brigada Militar Bruno Bicudo é neste caso, feita pelos movimentos sociais da comunidade, mas ela também se dá através da tradição oral. Corre a história de que a santa não atende pedidos de membros da brigada militar, afinal seu assassino era brigadiano. (MOURA, 2012)

43 Povoada em meados de 1940, a Vila Maria da Conceição é fruto do processo de modernização e higienização das zonas centrais das cidades que estão associados a expulsão dos pobres para bairros afastados. A história desta comunidade é novamente atravessada pela presença de outra mulher. A irmã Nely Capuzzo dedicou a sua vida às crianças da comunidade da Vila Maria da Conceição. Hoje é nome de rua, nome de escola e a escola de samba entra na avenida pedindo sua benção. Escreveu dois livros Do porão da

humanidade (1996) e Miséria, quem te gerou? (1964) Os livros contam a

trajetória da Pequena Casa da Criança através de histórias do cotidiano, como se fosse um diário de bordo.

A irmã Nely chegou muito jovem em Porto Alegre e iniciou um trabalho de catequização com crianças da Doca das Frutas, vila de maloca situada no centro da capital. Acompanhou o processo no qual a Doca das Frutas, antiga vila no centro de Porto Alegre, foi removida a jatos de mangueira para a vila Maria Degolada. Irmã Nely subiu o morro com suas crianças e lá continuou seu trabalho, primeiramente sob as árvores, depois em um galpão de madeira construído pela comunidade - era a Pequena Casa da Criança. O prédio atual, de alvenaria e com uma estrutura muito maior, foi construído da mesma forma. Ali funciona uma escola, posto de saúde e aos finais de semana os ensaios da escola de samba.

Os livros da irmã Nely denunciam as violações de direitos humanos que eram submetidas às famílias, mas principalmente, às crianças do morro. Abordava a falta de opções frente à precariedade da vida. As fotografias do período nos mostram uma vila de casas de madeira improvisadas, sem saneamento e qualquer infraestrutura. Atualmente, é perceptível as melhorias de condições de vida na maior parte da vila, mas permanecem alguns becos e barracos de madeira.

Os familiares das alunas e alunos trabalham como cozinheiras, pedreiros, auxiliares de serviços gerais, auxiliares de enfermagem, motoristas e cobradores de ônibus, atendentes em lojas e bares, etc. Além disso, o morro tem seus empreendimentos próprios, como fazem os trabalhadores do carnaval, as costureiras, músicos, soldadores ou os proprietários de mercadinhos, padarias, bares, salões de belezas, estúdio de tatuagem.

44 O que se sabe sobre a Vila Maria da Conceição através dos jornais é que se trata de um território de tráfico de drogas. As famílias vivem no fogo cruzado, em meio as guerras entre as facções do tráfico, e a violência policial nas ruas e invadindo as casas. As estatísticas de genocídio da população jovem e negra, ali têm nome e endereço, muitas vezes são parentes e amigos. Em meio a este contexto se proliferam as mães de criação, tias, avós, ou até mesmo vizinhas ou amigas que assumem as crianças cujos pais morreram ou estão presos. Esta é também uma entre outras razões pelas quais muitas vezes as mulheres criam seus filhos sozinhas.

O que os jornais não dizem sobre a Vila Maria da Conceição é que é uma comunidade sensível, criativa, solidária, alegre, e que guarda consigo parte da identidade negra do Rio Grande do Sul. Esta identidade se expressa principalmente através da religiosidade e da música. Os tambores são a marca do morro. A qualquer hora do dia ou da noite batem tambores na Conceição, seja nos ensaios da Academia Samba Puro ou da Academia de Samba Realeza, seja nas casas de religião de Matriz Africana, no Bar do Ricardo ou no samba de beco. As crianças aprendem a percussão batucando em baldes e caixas, misturando samba com funk, enquanto a velha guarda traz as lembranças de um tempo que não volta mais, do velho samba de raiz afrogaúcha movido a tambor de sopapo.

Nas escolas de samba as mulheres trabalham com costura, mas também no barracão, construindo carros alegóricos. Na avenida são passistas, porta bandeiras, baianas e garantem o embalo da bateria com seus chocalhos. São muitas as casas de religião de matriz africana no morro da Conceição, de Umbanda e Batuque. A maior parte das alunas e alunos da escola frequentam essas casas e são filhas e filhos de santo. As mães de santo são vistas como exemplos de sabedoria e força, são mulheres extremamente ouvidas e respeitadas pela comunidade.

3.1.2. A Escola Santa Luzia

A escola em que trabalho nasceu comunitária, em 1959, em uma entre tantas “vilas de malocas” surgidas na Porto Alegre pós-enchente de 1941.

45 Situada no bairro Santo Antônio, continha em seu livro-ponto a assinatura de três professoras e uma funcionária. No caderno de matrículas alunas e alunos de 7 a 15 anos matriculados na primeira série. No ano de 1968, em plena ditadura militar, o Grupo Escolar torna-se uma Escola Estadual. A escola ficou, a vila se foi. Alegada a precariedade das instalações, a escola mudou-se em 1970 para uma rua nas proximidades do antigo local. A vila foi removida de forma truculenta para a Restinga no início da década de 70.

Permaneceu uma escola pequena, de ensino fundamental, e, não diferente de outras escolas públicas de periferia, carente de recursos financeiros, materiais e humanos. Conta com seis salas de aula, uma biblioteca, uma sala de supervisão, uma sala de direção, secretaria, sala multimídia, brinquedoteca, pracinha, quadra poliesportiva, sala digital, refeitório e três banheiros. Estão matriculados 218 alunos, cerca de 80% oriundos da Vila Maria da Conceição e 20% vindos das ruas entorno da escola ou de outras periferias da cidade.

São altos os índices de repetência e evasão escolar. Não é preciso um estudo estatístico, basta observação: os anos finais do ensino fundamental, para quem leciono, possuem duas turmas de 6° anos, duas turmas de 7° anos, uma turma de 8° ano e uma turma de 9° ano - que nunca passa de quinze alunos. As alunas e alunos faltam muito às aulas, às vezes “somem” por longos períodos. Compreendemos melhor este quadro quando ouvimos seus relatos de vivências sobre as mais diversas situações de violências, inclusive por parte do Estado, e sobre a necessidade de trabalhar.

Por outro lado, é inegável que a escola é um espaço de referência, reconhecido por alunas, alunos e comunidade. Pais, mães, tias, tios, irmãos, irmãs e por vezes até avós ali estudaram e tem histórias para contar. As festas e atividades, quando abertas a comunidade contam com a presença de muitas ex-alunas e ex-alunos, e com a riqueza das manifestações de cultura popular daquele território. Quando solicitados, alunas, alunos e familiares gostam de colaborar com a limpeza e manutenção do espaço e são raros os casos de roubo e depredação.

Certa ocasião, quando indaguei um aluno da 7°série, com 17 anos, sobre o que ia fazer na escola, ele respondeu: “Comer, conversar e namorar”. Percebo o que ele disse: é um lugar bom para socializar, é um lugar de

46 encontro. Nada como recreio, merenda e educação física. Se o dia for bom alguma professora os leva na sala de informática e os libera uns minutinhos no

Facebook. Porém, reside ai uma permanente tensão entre a escola que, mais

do que preocupada com o conhecimento, controla, disciplina e domestica os corpos e as linhas de fuga das alunas e alunos, produzindo jogos de poder que exigem negociação.

Há diversidade sexual na escola e geralmente há respeito por parte dos colegas. Isso chama atenção diante dos inúmeros casos de homofobia das escolas. Talvez esta diferença de percepção e práticas de socialização se deva ao fato de que a comunidade é, em sua grande maioria, ligada a religiosidade de Matriz Africana. Este é um fator relevante, pois as noções de corpo e sexualidade amarrados ao pecado, à culpa e à necessidade de confissão, advindos de uma Matriz Cristã, que hoje é fortemente presente nas Igrejas Evangélicas e Neopentecostais, são inexistentes. Os Orixás, divindades da religião dos Iorubás, cultuados nas religiões Afro-brasileiras, ao mesmo tempo em que são as forças da natureza (rios e mares, ventos e trovões), manifestam sentimentos humanos, e os trazem desprovidos do par bem/mal. Assim, na mitologia dos Orixás não existe hierarquia de gênero ou monogamia e narram- se histórias carregadas de vaidade, ciúmes, paixão, fúria, beleza, generosidade, cuidado e justiça.

Quanto às relações de gênero, destaco o arreganho e o futebol como práticas nas quais a performance da delicadeza não se aplicam às meninas. O “arreganho” (brincadeira) é constante e envolve violência, tais como tapas, empurrões e puxões de cabelo. E a sexualidade, como os atos de passar a mão na bunda uns dos outros e também falar sobre o corpo e as experiências sexuais dos colegas. Nestas “brincadeiras”, as meninas não são vítimas, ao contrário, impetuosas, fortes e desbocadas respondem aos meninos de “igual para igual”. Nos jogos mistos de futebol, comuns no recreio e Educação Física, algumas meninas se destacam ganhando o respeito dos meninos por um lado, mas os deixando furiosos e até violentos se driblados por uma delas.

Nos mutirões coletivos de trabalho fica evidente que as meninas são capazes de executar as mesmas tarefas que os meninos. A equipe diretiva surpreendeu-se com a reação das alunas no início do ano ao anunciar a regra que restringia o uso de roupas curtas e decotes na escola. As meninas

47 alegavam que o calor era para todos e que ninguém impedia os meninos de andar com as “calças nos joelhos” aparecendo as cuecas ou de jogar futebol sem camisa. Resultado: permaneceram os decotes.

Como professora de História, abordei inúmeras vezes e de diversas formas as questões de gênero em sala de aula. Dentro do que considero limitações da escola/instituição/história/disciplina me movo evidenciando a ausência e o silenciamento das mulheres resgatando personagens e acontecimentos. Procuro desenvolver a compreensão de que a História é um campo em disputa e que isso envolve relações de poder. Na intersecção com as questões étnico-raciais, temas centrais para a população negra são considerados de extrema importância, como por exemplo, a redução da maioridade penal, as disputas de territórios quilombolas e periféricos, o genocídio e encarceramento da juventude negra, o acesso a políticas públicas que garantam dignidade e as políticas afirmativas e de reparação.

Trabalhamos com a estética das mulheres negras através de turbantes, tranças, tingimento de tecidos e escritura negra feminina através de poemas de Conceição Evaristo. Fomos até o encontro de mulheres negras, organizado pela Frente Quilombola, no qual as alunas participaram de oficinas, assistiram um documentário sobre a Angela Davis e ouviram diversos relatos, entre eles o da primeira mulher negra a ingressar no curso de medicina da Universidade federal do Rio Grande do Sul.

3.2. UM PLANO: ENSINO DE HISTÓRIA SITUADO

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