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PARTE II ARQUITECTURA MONÁSTICA E CONVENTUAL FEMININA EM

1.2 A IGREJA MONÁSTICA

1.2.1 A tese da rotunda medieval

Tem sido tradicionalmente aceite que o conjunto de edificações medievais sobreviventes do antigo mosteiro cisterciense se reduz praticamente à estrutura claustral e a um campanário, escondido pelas construções posteriores65. As restantes construções resultam de campanhas de obras realizadas principalmente no século XVI, a que importa adicionar algumas alterações dos séculos posteriores.

Recentemente, Paulo Varela Gomes e Walter Rossa contrariaram a tese, aceite por toda a historiografia da arte, de nos encontrarmos em presença de um edifício de planta central edificado de raiz no século XVI, no tempo da abadessa Leonor de Vasconcelos. Defenderam que a “rotunda” constitui um interessante exemplo de uma edificação cisterciense medieval, tendo recebido mais tarde uma cobertura manuelina66.

O cuidado com que os autores interrogam o espaço desta antiga igreja cisterciense, debruçando-se sobre os testemunhos epigráficos, tipologias arquitectónicas e espaços funerários bem como sobre problemas estruturais exige uma justa atenção em relação às diferentes hipóteses levantadas para sustentar esta tese.

Estes dois historiadores são os primeiros a reconhecer a invulgaridade de uma planta centralizada para uma igreja cisterciense, encontrando a justificação para esta opção planimétrica estranha a qualquer tradição construtiva cisterciense no facto das monjas oriundas de Alenquer, aí possuírem um edifício com idêntica planimetria. Segundo estes investigadores, tal facto é confirmado pelo nome de “Santa Maria a Redonda” atribuído à igreja de Alenquer e pelos vestígios desse edifício ainda hoje

65 Vergílio CORREIA e Nogueira GONÇALVES, Inventário Artístico de Portugal - Cidade de Coimbra, Academia Nacional de Belas Artes: Lisboa - 1947, p. 62 e Pedro DIAS – A Arquitectura de Coimbra na Transição do Gótico para a Renascença (1490-1540), Epartur, Coimbra, 1982. pp. 215 e ss.

66 Ver Paulo Varela GOMES e Walter ROSSA, “A Rotunda de Santa Maria de Celas, um Caso Tipológico Singular” Arte e Arquitectura das Abadias Cistercienses nos séculos XVI, XVII e XVIII (Colóquio, 23-27 Novembro de 1994, Mosteiro de Alcobaça) Instituto Português do Património Arquitectónico, Lisboa, 2000, pp. 197-223.

existentes67. Na verdade, esta argumentação estabelece uma associação entre a arquitectura das igrejas monásticas cistercienses e a tipologia planimétrica de edifícios de comunidades não cistercienses o que apresenta uma relação nunca estabelecida para análise e filiação das casas dos cistercienses68. O essencial desta tese parte, na realidade, da existência de um documento epigráfico há muito conhecido e vulgarmente referido pelos diferentes autores que se têm debruçado sobre o cenóbio. Trata-se da tabela em latim que refere a construção realizada no século XVI pela abadessa Leonor de Vasconcelos.

SACELLVM · VEL ·CAPELLAM HVIVS·COENOBI S. MARIA : DAS : CELAS: A CIMENTIS : EXTRVI IM PERAVIT · LEONORA · EIUSDEM · ANTISTES O(R) TA NOBILI FAMILIA : VASCONCELLORVM : ADD(I) DIT OPERI : QVAM CERNIS : TESTVDINEM QVE ANTEA NVLLA ERAT:QVAM REM CVM DIGNAM MVNERE IVDICASSET : CATHOLICVS AC CHRIS TI AN(I)SS(I)MVS REX NOSTER IOHANNES : TER CIVS : TOTIVS STRVTVRE IMPENSAM MAGNA EX PAR TE : EI PERSOLVI IVSSIT PERACTVM HOC OPVS ES T ANNO A GENESI : SALVTIFERI HESV : 1529 :

67 Id., ibidem, p. 212.

68 Ao contrário do que é afirmado por Paulo Varela GOMES e Walter ROSSA não há provas de que a comunidade de religiosas de Alenquer alguma vez tivesse sido cisterciense. Ver Paulo Varela GOMES e Walter ROSSA, ob. cit., pp. 212 e 221 nota 8 e Maria do Rosário MORUJÃO ob. cit., p.25.

com a seguinte tradução69:

A ermida ou capela deste Mosteiro de Santa Maria de Celas mandou edificar dos fundamentos Leonor Prelada dele da nobre família dos Vasconcelos. Acrescentou à obra a abóbada que vedes, a qual dantes não havia. A qual obra como inquirisse ser digna de prémio o católico e cristianíssimo nosso Rei D. João terceiro mandou pagar o gasto de toda a obra em grande parte. Fez-se esta obra no ano da Encarnação do Senhor de 1529.

Qualquer expressão, respeitante a um edifício em que se fale “dos fundamentos”, significa que, não nos encontramos perante um mero prolongamento de estruturas murárias anteriores, em superfície ou em altura, mas perante uma obra que partiu dos alicerces. Era esse o significado da utilização da palavra “fundamentos” no contexto de qualquer obra arquitectónica. Desta forma, a utilização deste vocábulo corrobora explicitamente a interpretação tradicional de que a abadessa Leonor de Vasconcelos mandou construir uma nova igreja de raiz. A utilização deste vocábulo “fundamentos” exprime igualmente o facto de que esta abadessa se orgulhava do novo templo, e não apenas da abóbada como defendem Varela Gomes e Walter Rossa, argumentando que a capela ou ermida não designava a igreja como um todo mas apenas uma capela70. Para

esta via interpretativa identificam a “ermida ou capela” (Sacellum vel capellam) com a “capela mausoléu” mandada edificar por Leonor de Vasconcelos e inicialmente destinada a seu sepulcro ou então com a nova capela-mor71. Se o termo “capela” é de facto susceptível de ser utilizado para designar uma capela funerária parece francamente forçado que designe a capela-mor quando no século XVI era vulgarmente empregue o termo “ousia”, de origem medieval ou capela-mor. Embora se traduza Sacellum por

69 Utilizamos a tradução presente em Frei Bernardo D’ASSUMPÇÃO, ob. cit., p. 15, actualizando a grafia.

70 Paulo Varela GOMES e Walter ROSSA, ob.cit., p. 212. 71 Id., ibidem, p. 212.

“ermida”, designação que correspondia à existência da igreja num local isolado, parece mais correcto traduzi-la por “pequeno santuário”, termo empregue no latim do século XVI. O uso de um termo erudito nesta tabela, laudatória da abadessa D. Leonor de Vasconcelos, utilizado no latim da Antiguidade para designar um santuário com uma ara ao centro é significativo. A sua escolha revela que a igreja de Celas é um espaço centralizado e que naturalmente é todo o espaço do templo, ou santuário, que é designado e posto em destaque no texto epigráfico.

A referência aos “fundamentos” ultrapassa uma mera curiosidade sobre as características de edificação, sublinhando a grandeza do empreendimento por parte de quem se encontrava à frente da comunidade.

Para apoiar a tese da existência de uma rotunda medieval em Celas são apresentados dois aspectos de ordem construtiva: a presença de oito contrafortes e a existência de uma janela que interrompe um friso. Os contrafortes, como a abóbada da rotunda, terão possivelmente sido edificados nos anos 20 ou 30 do século XVI e provavelmente sob a direcção de João de Castilho72. Tal facto não constituiria surpresa se não fosse escrito pelo cronista Frei Bernardo D’Assumpção, em meados do século XVII, que os contrafortes foram erguidos “depois de acabada a igreja”73. A edificação

tardia dos contrafortes permite aos autores colocar duas hipóteses interpretativas: a abóbada não estava prevista de início; a abóbada foi edificada sobre uma estrutura pré- existente74. Embora Varela Gomes e Walter Rossa se inclinem para a segunda hipótese, corroborando assim a tese da existência da rotunda medieval, parece-nos que deve ser levantada uma terceira hipótese: a de que os contrafortes foram realizados apenas quando se tornaram necessários do ponto de vista estrutural para suporte de panos

72 Id., ibidem, p. 211. 73 Id., ibidem, p. 204. 74 Id., ibidem.

murários quinhentistas e não medievais. A edificação de uma nova igreja no mosteiro cisterciense significava que este se encontrava perante uma situação vulgar para os tempos medievais: não se destruía totalmente um edifício para se edificar de novo, mas coexistiam a antiga e a nova edificação. Esta coexistência constituía uma exigência especial quando se tratava de edifícios de culto para poder assegurar a normal vivência das comunidades monásticas. Enquanto se edificava a rotunda de Celas no século XVI, necessariamente a antiga igreja continuava a ser utilizada pelas exigências de culto referidas e também porque as anteriores construções do mosteiro eram estruturalmente importantes para o reforço dos novos muros que lhe eram contíguos. Esta alteração dos espaços permite também compreender a enorme irregularidade formal do mosteiro, como é aliás justamente destacada por Paulo Varela Gomes e Walter Rossa75.

A análise destes autores parte também do pressuposto que a distinção feita no texto entre “abóbada” e “obra”, interpretada quando a nós relativamente à igreja e à abóbada, não corresponde apenas a uma preocupação descritiva entre estruturas de suporte e cobertura, mas tem sim um sentido de ordem temporal. Na nossa interpretação, a presença dos dois termos significa que ambos correspondem a momentos temporais claramente distintos. Poder-se-ia pensar que esta diferença temporal correspondia simplesmente ao desejo de conservar a memória da existência de mais do que uma campanha de obras no século XVI, realidade construtiva que os próprios autores defendem76. No entanto, persiste a questão: porquê distinguir entre igreja e abóbada se ambos correspondem a trabalhos realizados no abadessado de Leonor de Vasconcelos na primeira metade do século XVI?

Parece-nos que a necessidade de distinguir a abóbada dos muros e estruturas de suporte encerra um valor simbólico, pela importância concedida há muito a coberturas

75 Id., ibidem, p. 197. 76 Id., ibidem, p. 211.

abobadadas, especialmente no espaço sagrado. Encontramos a mesma distinção entre igreja e abóbada, por exemplo, no século XIV, no texto de carácter hagiográfico sobre a vida da rainha Santa Isabel, em que a propósito da edificação do convento de Santa Clara de Coimbra, também se diz explicitamente que mandou fazer a igreja e a

abóbada, destacando-se desta forma a importância da abóbada no convento das

clarissas. Este facto era tanto mais relevante quanto constituía uma excepção no panorama construtivo das ordens mendicantes do Portugal da época77.

A importância conferida aos espaços abobadados e a distinção em relação aos espaços sem abóbada possui uma longa tradição na actividade edificatória cristã desde os edifícios paleocristãos. A importância simbólica da cobertura em pedra tem que ser compreendida igualmente face aos antecedentes medievais da representação do Santo Sepulcro: de planta central e abóbada, o que corresponde a um modelo prestigiado e que alcançou larga difusão no Renascimento e em particular no Renascimento italiano78. As análises atrás expostas permitem-nos concluir que a tese tradicional, ou seja, a existência em Celas de uma rotunda quinhentista não só não aparece desmentida pela memória epigráfica como este documento, quanto a nós, a corrobora.

77 Ver Relaçam da Vida da Gloriosa Santa Isabel, Rainha de Portugal, em José VIANNA – A Vida da Rainha Santa Isabel, 2ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1954, p. 101. Ver capítulo sobre

Santa Clara de Coimbra e o ponto do capítulo 2 relativo à Arquitectura dos Mendicantes, e tese de Francisco Pato de MACEDO, Santa Clara – a – Velha de Coimbra. Singular Mosteiro Mendicante, Dissertação de Doutoramento em História da Arte apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2006, capítulo III, ponto 2.

78 Ver André BONNERY, Mireille MENTRÉ e Guylène HIDRIO – Jérusalem, Symboles et Représentations dans l’Occident Médiévale, Jacques Trancher, Paris, 1998, especialmente 3ª parte sobre

as representações de Jerusalém e dos seus monumentos. Sobre o Prestígio da Planta Centralizada Wolfgang LOTZ, “Notes on the Centralized Church of the Renaissance” em Studies in Italien