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Tessituras urbanas: população e dinâmicas do mundo do trabalho

3 O ESTUÁRIO E A BAÍA: O ESPAÇO URBANO OITOCENTISTA ENQUANTO

3.3 Tessituras urbanas: população e dinâmicas do mundo do trabalho

Em termos de organicidade urbana, tanto Recife quanto Salvador se aproximam pela similaridade do ponto de vista da expansão ao longo dos séculos. À primeira vista, parecem um tanto desordenadas, não atendendo a parâmetros bem definidos. À medida que a população cresce entre os séculos XVIII e XIX, os espaços circunvizinhos à região portuária ficam saturados, levando as urbes a sofrerem intervenções nas paisagens naturais, as quais

297 Em passagem pelo Recife em 1865, os (?) Louis e Elizabeth(?) afirmaram que está longe de ser tão pitoresca, como a Bahia ou Rio de Janeiro. A cidade tem fisionomia muito mais moderna, parece também mais cuidadosa e mais próspera. Muitas ruas são espaçosas. O rio, que se atravessa em pontes elegantes, corre pela parte da cidade onde esta concentrad o comércio e ofuca-a. (Cf. MELLO, José Antônio Gonçalves. Arte e natureza no 2º reinado. Recife: Editora Massangana, 1985. p. 155). Provavelmente a proeminência da grande população negra

de Salvador e Rio de Janeiro e a crescente repulsa a escravidão tenham influenciado no julgamento dos franceses em relação a Recife. Além das inúmeras obras de melhoramento urbano realizados na cidade após a década de trinta desta centúria.

298 Fazemos referência tanto a Revolução Francesa, como a Industrial em curso na Inglaterra, que são acima de

contribuem para delinear as feições da vila e da cidade. No caso do Recife crescem os aterramentos de alagadiços e a ocupação efetiva da parte continental; e em Salvador, a habitação das encostas e das áreas acidentadas, além dos pequenos vales recortados por cursos de água que desaguam na Baía de Todos os Santos. De forma complementar a essa expansão urbana, precisamos refletir sobre o perfil populacional destes espaços e as dinâmicas do universo do trabalho no contexto aqui elencado para melhor compreender a ordem do vivido daqueles que faziam da música seu ofício único ou contingente. Inicialmente, para entender o perfil populacional destes espaços, temos diante de nós a escassez e a imprecisão dos dados censitários para o período. Fato que nos coloca num lugar de projeção, e não de exatidão acerca do total de indivíduos e de detalhes relacionados à origem, à ocupação, às qualidades e às condições jurídicas dos que permeavam as realidades aqui abarcadas. Sendo assim, buscaremos trilhar nosso entendimento em paralelo a vestígios documentais que produzam informações mais coerentes sobre essas questões, à luz das fontes e estudos consolidados.

Sempre houve interesse por parte da Coroa portuguesa de ter dimensões numéricas sobre suas possessões, seus súditos e as demais almas que estavam sob sua égide. Mas com toda certeza é na segunda metade do século XVIII que o empenho em sistematizar a coleta de informações, que configurariam a maior amplitude e disponibilidade de dados estatísticos. Principalmente no cenário de franco declínio da economia mineradora, na tentativa de pensar estratégias de atuação e de diversificação econômica para livrar a Metrópole da crise eminente299. Em carta régia datada de 21 de outubro de 1797 ao governador da Paraíba, Fernando Delgado Freire de Castilho, por intermédio de seu ministro D. Rodrigo de Sousa Coutinho (1755-1812)300 o rei especifica seu interesse em saber além do quantitativo de

habitantes que existem na capitania, pretendem também conhecer a fundo as ocupações, o número de casamentos anuais, de nascimentos e de mortes. Em termos mercantis, o documento orienta ainda que se informe detalhes sobre: importações e exportações; produções

299 Informações econômico-mercantis e maior abrangência dos detalhes populacionais passam a incorporar o

recenseamento em cada capitania. Segundo Smith, na era pombalina havia um interesse por notícias de cunho militar e mercantilista, naquele momento, com o colapso efetivo da exploração mineradora as informações tendem a privilegiar detalhes sobre as potencialidades produtivas, característica que segundo o autor estariam alinhada aos impulsos que o liberalismo começava a desencadear. (Cf. SMITH, Roberto. A Presença da

componente populacional indígena na Demografia Histórica da Capitania de Pernambuco e suas Anexas na segunda metade do século XVIII. In: Anais do XIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais,

Ouro Preto. 2002. p. 2. Disponível em: http://www.abep.org.br/publicacoes/index.php/anais/article/view/1232. Acesso em: 21 de jan. de 2019).

300 Efetivamente D. Maria I desde 1791 não delibera mais sobre as questões do reino devido o avançado estágio

de convalescência mental que estava submetida, atribuída às diversas perdas que sofrera de familiares e parentes próximos. Dentre os quais: o marido em 1786; o filho-herdeiro D. José e a filha D. Mariana Victoria, na Espanha em 1788; além dos primos Louis XVI e Marie-Antoinette da França aprisionados pelos revolucionários em fins de 1789 e seu confessor, o Bispo de Hetalônia, em outubro de 1791. Logo, podemos compreender que essa decisão parte efetivamente do diálogo entre seu regente e os demais atores políticos do contexto.

da capitania; consumo; como também os preços correntes dos gêneros nas praças comerciais de cada capitania301. Tudo indica que essa normativa se estende as outras capitanias portuárias e, dessa forma, a precisão dos dados se constituía numa exigência, porém nem sempre atendida na prática.

Segundo dados levantados a mando do governado José Cezar de Meneses (governou Pernambuco entre 1774 e 1787) e enviados por seu sucessor (D. Tomaz de Mello) ao Secretário da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro (1716-1795), mais especificamente em 1788, havia uma população de 21.539 almas dividida nas duas freguesias centrais (São Pedro e Santíssimo Sacramento). Isso deixando de fora o contingente dos habitantes de povoados da Várzea (4.475 habitantes) e da Muribeca (6.019 habitantes) que estão nos arrabaldes da cidade e se definem como limites para o que se concebia como Sertões302. Tudo indica que houve uma manutenção deste número nas décadas que se seguem, pois segundo estimativas dos primeiros anos dos oitocentos, do Anglo-lusitano Henry Koster, a população da vila orbita entre cerca de 25000 habitantes ou mais, e crescem rapidamente303. Entretanto, esse crescimento percebido por Koster não foi comprovado nos dados coletados a partir da contagem realizada em 1822, e posteriormente de um censo mais detalhado conduzido em 1826 (publicado pela primeira vez em 1828). O mesmo informa que a população do Recife não passava de 23.673 a 25.678 “almas” entre 1822 e 1826-28. Desta estimativa, cerca de 17.743 eram indivíduos livres (os libertos também estavam incluídos nessa mesma categoria), isso significa dizer, que 69% dos indivíduos tinham essa condição jurídica, e engrossavam as fileiras da população das três principais freguesias da vila304. Essa população livre era composta em sua maioria por pardos, cabras, crioulos305 e africanos, basta

atentar para o relato do exímio observador Vauthier, que anos mais tarde, em seu diário, atesta que o fenótipo essencialmente negro da população é uma das impressões que mais lhe chama a atenção quando de sua chegada na cidade no dia 21 de setembro de 1840306.

301 No documento também conta, o interesse em saber o número de navios que entram e saem do porto, afim de

ter um controle mais acurado sobre a observância da exclusividade das embarcações portuguesas e da circulação de produtos afim de evitar ilicitudes. (Cf. REVISTA BRASILEIRA DE ESTATÍSTICA, IBGE, ano I, julho/set.

1940, n. 3, p. 552-553. Disponível em:

https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/111/rbe_1940_v1_n3.pdf. Acesso em: 23 de dez. de 2018).

302 AHU – Avulsos de Pernambuco – Cx. 178, D. 12472. LAPEH - UFPE. 303 Cf. KOSTER, v.1, op. cit., p. 42.

304 Cf. MELLO, Jeronymo Martiniano Figueira de. Ensaio sobre a Estatística Política e Civil da Província de Pernambuco. Recife: Conselho Estadual de Cultura, 1979. p. 311. Disponível em: http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_manuscritos/mss537449/mss537449.pdf. Acesso em: 21 de jan. de 2018.

305 Qualidade identificada aos negros nascidos na casa de seu senhor, também utilizados para escravos locais.

(Cf. PAIVA, 2015, op. cit., p. 204-205).

Segundo Thales de Azevedo, a população soteropolitana também está em franco crescimento desde a primeira metade dos setecentos, mesmo com a perda da centralidade política e econômica para o Rio de Janeiro, na ocasião da transferência da capital do Estado do Brasil em 1763. Sem citar fonte específica, o memorialista aponta o número de 21.601 habitantes para 1706, que ultrapassa a marca de 40 mil em 1759. Número que mantêm certa estabilidade durante a segunda metade desta centúria, pois o censo de 1780 aponta para 39.209 almas habitando a cidade307. Contudo, havia uma tendência à discrepância nesses

números, a qual podemos vislumbrar na informação que Tollenare teve de que Salvador possuía em torno de 120.000 habitantes quando de sua passagem pela cidade em 1817. Parece-nos óbvio que experenciado no comércio e no trato em grandes cidades, o francês não tenha levado em consideração esses rumores, pois acreditava que não passava dos 75.000 habitantes nas freguesias centrais e arrabaldes308. O rumor e as expectativas do francês são colocados “em cheque” pelo censo eclesiástico de 1805, citado por Thales de Azevedo, que dá conta 45.600 almas. Cifra considerada coerente pelo autor, mesmo com todas as incongruências que esse tipo de fonte para o período teime em apresentar309. Segundo João José Reis, a imprecisão constante dos dados demográficos para esse período está relacionada, principalmente, pela pretensão dos governantes em impressionar o Regente ofertando números acima do real, tentando resgatar a importância dessa parte do império e de sua elite local. Segundo outro censo realizado em 1807, a população soteropolitana estaria enquadrada na cifra de 51.112 almas, sem distinção da condição jurídica, sendo 28% deste total de pessoas qualificadas como brancas e o restante como pardos e negros que transitam entre a liberdade e as diversas formas de cativeiro310.

O incremento da população destas duas urbes, observado no período estudado, não esteve unicamente dependente do crescimento vegetativo, antes relaciona-se, também, aos vários ciclos migratórios internos e externos. Migrações realizadas de forma voluntária ou forçada. Porém, vale salientar que, definitivamente, essa última forma se sobressai ao atentarmos para o contingente escravo que adentra nas capitanias de Pernambuco e da Bahia pelos seus principais portos e estradas por intermédio do fluxo vindo das diversas regiões da África ou da Colônia. Sobre a migração externa voluntária nos últimos anos do XVIII, podemos afirmar que sempre foi pequena, mas contínua, sendo a maior parte composta por

307 AZEVEDO, Thales. Povoamento da cidade de Salvador. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1955.

p. 189-203.

308 TOLLENARE, op. cit., p. 285. 309 AZEVEDO, op. cit., p. 227. 310 Idem, p. 34.

pessoas em busca de uma vida melhor para si e para sua parentela, que quando não vinha de imediato, ficava à espera das condições para acompanhar o chefe de família. Esse tipo de iniciativa geralmente era independente, o indivíduo contava com seus próprios fundos ou apoio de um conhecido já residente nessas terras311. Mas havia, paralelamente, iniciativas de

migração com fins colonizadores. Em outubro de 1799 o governador interino dos Açores recebe a ordem de recrutar sessenta casais de pessoas que sejam robustas, e queiram ir voluntariamente para um estabelecimento, que se manda formar na Bahia, onde se lhes há de mandar dar tudo o que for necessario para o seu arranjamento312, na tentativa de ocupar regiões desabitadas da capitania, o que não exclui a possibilidade de permanecerem em Salvador pelas possibilidades de ocupações que a cidade poderia os oferecer. Visto que no final do século XVIII, o comércio entre Salvador e as Ilhas era bem expressivo e consistia na importação de vinho, aguardente, louça inglesa de pó de pedra, algum pano de linho curado, linhas e pouca carne de porco e na exportação de açúcar e aguardente de cana313. O que poderia demandar atuação de agentes e intermediários insulares que aspiravam inserção social e fundos para trazer sua família e ameniza a árdua condição submetida aos recém-chegados como aponta Beatriz Nizza314. Vale salientar que houve uma tendência permanente desde a segunda metade do século XVIII para imigração portuguesa ao Brasil que teve seu ápice após a independência, sendo responsável pelo estabelecimento de uma forte praça mercantil no Rio de Janeiro, em Salvador e em Recife, proeminentemente formada por portugueses que serão hostilizados mais a frente pelo antilusitanismo crescente ao longo do Império315.

Europeus de outras nacionalidades também começam a se estabelecer de forma efetiva por todo Brasil com o advento da Corte do Rio de Janeiro. Entre os quais destacam-se franceses e ingleses, também atraídos pela abertura econômica e pela efervescência cultural experenciadas a partir de 1808. Os franceses só obtiveram maior facilidade para se instalarem após a derrocada napoleônica em 1815, anteriormente eram admitidos aqueles que

311 BARBOSA, Rosana. Um panorama histórico da imigração portuguesa para o Brasil. Arquipélago. História.

2ª série, v. 7, 2003, p. 177. Disponível em: https://repositorio.uac.pt/handle/10400.3/387. Acesso em: 01 de nov. de 2018.

312 AHU – Açores - Cx. 30, D. 30

313 Cf. RODRIGUES, Paulo Miguel. As relações entre a Madeira e o Brasil durante o primeiro quartel do século XIX - alguns aspectos. As ilhas e o Brasil. Ilha da Madeira: Centro de Estudos da História do

Atlântico/Secretaria Regional do Turismo e Cultura, 2000. p. 432.

314 A autora cita trecho da carta datada de 30 de janeiro de 1820 do açoriano Manuel Diogo, residente em

Salvador dirigida a sua mulher, com quem se casara em 1796, em que se queixa das dificuldades de levantar fundos para financiar a vinda da esposa. (Cf. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Patrimônios de açorianos no

Brasil no fim do período colonial. Revista da SBPH, Curitiba, n. 9, 1994, p. 33).

315 DOURADO, Bruna Iglezias Motta. Comércio de grosso trato e interesses mercantis no Recife, Pernambuco (c.1837- c. 1871): a trajetória do comerciante João Pinto de Lemos. 2015. p. 35-37. Dissertação (Mestrado em

justificassem sua partida pela repulsa dos ideais revolucionários e aceitasse a nacionalidade portuguesa instituída por decreto real. Contudo, por mais que alguns se encaminhassem para Pernambuco e para Bahia, a grande maioria se voltou para a sede da Corte, mesmo tendo grande parte enfrentado dificuldades para se manter a cá nos tempos quando os Bragança estiveram “à deriva nos Trópicos”. Alguns, inclusive, se achavam sem meios para retornar para a Europa seguindo a família real em 1821316. Para além do insucesso, houve os que se

dedicaram a diversos ofícios e conseguiram sucesso. Sobretudo, aqueles relacionados às atividades que auxiliavam a implementar moda e costumes franceses entre as elites317. Uma abastada solteirona baiana por nome Maria Violante Meneses de Castro de Albuquerque, tinha ao seu serviço um desertor da frota de Jerônimo Bonaparte (1784-1860) em passagem por Salvador em 1806318. O trânsfuga lhe servia como mordomo e mantinha uma relação de tal intimidade que gerava especulações319. No grupo de franceses frequentado por Ver Huell durante sua retenção na Bahia, figuravam: um relojoeiro por nome por nome Fanchette casado com uma branca nascida na Colônia320e possuidor de uma casa de campo nas cercania da Igreja do Bonfim; um fabricante de plumas; um terceiro, tal qual os velhos trocadores, tocava uma guitarra e cantava muito bem321.

Entretanto, após 1808 os ingleses eram maioria absoluta dentre os estrangeiros não ibéricos nas cidades portuárias do Brasil. Isso se dá mediante o reflexo da política econômica liberal e o surto produtivo gerado pela Revolução Industrial que causou um movimento, lançando incontáveis súditos da dinastia de Hanôver desde fins do século XVIII322. Instalados

316 DUMONT, Juliette. Preciosos súbditos, emigrantes atravancadores: A França e os Franceses do Brasil no

início do século XIX. In: VIDAL, Laurent; LUCA, Tania Regina de (Orgs.). Franceses no Brasil: séculos XIX- XX. São Paulo: Editora UNESP, 2009. p. 107-108.

317 Para Pernambuco, podemos citar o mestre marceneiro Julian Antoine Fortunat Beranger (?-1853), francês de

Nantes que deu entrada na Irmandade de São José do Ribamar em 1818. (Cf. ACMOR, LAB 2978. f. 176v). O mesmo constitui grande fama pelo tamanho de sua oficina e, através da qualidade e beleza dos móveis que produzia, sendo esses amplamente consumido pelas elites pernambucanas em suas casas-grandes, palacetes e sobrados. Cujo legado foi continuado por seu filho Francisco Manuel Beranger (1820-1857), que estudou na França e trouxe inúmeras inovações ao que era produzido na oficina da família. (Cf. CARVALHO, Gisele Melo de. Interiores Residenciais Recifenses: a cultura francesa na casa burguesa do Recife no século XIX. 2002. p. 135-136. Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal de Pernambuco, Recife).

318 Na ocasião o irmão de Napoleão retornava de uma tentativa frustrada de ocupação da ilha de Santa Helena e

necessitava de reparos nas embarcações, víveres e tratamento para os tripulantes doentes permanecendo na cidade entre os dias 02 a 21 de abril daquele ano.

319 VER HUELL, op. cit., p. 142.

320 Em seu texto o holandês sempre se refere aos descendentes de portugueses nascidos na Colônia como

crioulos. O mesmo esteve influenciado pelo conceito que esta categoria recebe nos domínios espanhóis na América.

321 Cf. Idem, p. 151.

322 Com o advento do período joanino, a autonomia inglesa foi praticamente ilimitável, o que proporcionava

intensa liberdade política, econômica e inclusive social. Essa autonomia “conquistada” se exemplifica pelo de haver total liberdade de culto e de construção de templos religiosos e até mesmo de necrópoles para o enterramento dos súditos da coroa britânicas em lugares apartados das igrejas e cemitérios católicos, como foi o

no Brasil formavam uma espécie de comunidade prosélita, no intuito de garantir os símbolos e a dignidade de sua “britanidade”. Em 1821, Maria Graham observa em Salvador o zelo material e espiritual do reverendo Robert Synge com a comunidade inglesa local, através da regularidade do culto no templo protestante e a administração de um fundo arrecadado entre os patrícios que servia para, dentre outras coisas, a manutenção de um hospital e de um cirurgião voltado a atender os membros da comunidade323. Ao contrário dos franceses, que

pelo visto tiveram que sempre estar a mercê do atendimento médico particular, ou o oferecido pela caridade da Santa Casa de Misericórdia324. Por outro lado, alguns ingleses buscaram fincar raízes e estender suas redes de influência, com pretensões que iam além de seu interesse mercantil, como o caso do comerciante Charles Bowen (1772-1822) que atuou como emissário do governo provisório instalado em Pernambuco na Revolução de 1817, quando viajou para o Estados Unidos em busca de apoio a experiência republicana325. Roberto Cartervright (Robert Cartwright) em 10 de setembro de 1814 reivindica diante dos mesários da Santa Casa de Misericórdia da Bahia um dote de 100$000 por ter desposado a moça branca exposta na mesma instituição em 06 de agosto de 1787 por nome Caetana Quitéria de Jesus326. Por opção pessoal, por aspirar o dote, ou por falta de recurso para fazer frente junto à comunidade de compatriotas, Cartwright tenha buscado constituir laços familiares fora desse nicho, destoando dos demais. Contudo essa comunidade demonstrou muito empenho em manter suas tradições e em se fortalecer enquanto grupo mercantil, pois nas vésperas da independência das 22 casas comerciais de propriedade estrangeira, 18 pertencem a ingleses caso do Rio de Janeiro em (1809), Salvador (1811) e Recife (1814). Além disso, o alvará de 08 de maio de 1808, ratificado pelo artigo 10º do Tratado de Comércio e Navegação (firmado aos 19 de fevereiro de 1810) garantiu a nomeação de um magistrado de foro privilegiado conhecido como Juiz Conservador da Nação Britânica. Escolhido através de consulta a comunidade inglesa residente no Brasil. Esse magistrado poderia ser inglês, português ou natural da terra, teoricamente, estava submisso a autoridade da legislação portuguesa. Entretanto, o próprio tratado de comércio abria margem para o privilégio e para a livre atuação deste juiz já que também teria

benefício pela reconhecida Eqüidade da jurisprudencia Britannica, e pela singular excellencia da sua Constituição. (Cf. TRATADO DE AMIZADE, COMMERCIO, E NAVEGAÇÃO ENTRE SUA ALTEZA REAL O PRINCÍPE REGENTE DE PORTUGAL E SUA MAJESTADE BRITANNICA. Assignado no Rio de Janeiro em

19 de fevereiro de 1810. Lisboa: Impressa Régia, 1810. p. 16. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/7405?locale=en. Acesso em: 10 de dez. de 2018).

323 GRAHAM, 1990, op. cit., p. 174. Uma comunidade em franco crescimento e que vai quase que monopolizar

o comércio de importações de manufaturados nas cidades portuárias, cujos investidores que estabeleciam sociedade atuavam na Inglaterra intermediando as transações. Para comprovar, basta atentarmos para o que diz

Almanak de Pernambuco para o ano de 1845, citado por Gilberto Freyre. Nele constam inúmeras empresas

situadas em logradouros próximos ao porto, tais como as ruas: do Trapiche, da Cruz, da Senzala Nova, do Torres, da Moeda. (Cf. FREYRE, Gilberto. Ingleses no Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000. p. 91).

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