• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 1 TEXTO, LINGUAGEM E DISCURSO

1.2. TEXTO, DISCURSO E ABORDAGENS EM ANÁLISE

Considerando-se as cinco categorias essenciais discutidas anteriormente e a trajetória na construção dos sentidos, em especial os associados a pobreza e desenvolvimento, cabe agora refletir sobre os elementos materiais que permitem identificar os discursos.

Discursos são identificados por meios de textos colocados e uso e podem ser caracterizados como o repositório da cultura das diferentes épocas que se estuda, uma vez que seus autores materializam percepções sociais, filosóficas, históricas, políticas e pessoais. Tendo como referência essa afirmação de Garcia (2003), a análise textualmente orientada permite identificar a intencionalidade de seus autores, mas não prognosticar suas ações futuras, uma vez que o entendimento é que sempre há possibilidade para que novas interpretações dos autores [dos textos] e fatores intervenientes alterarem o curso das ações e das decisões.

O que se busca com a análise de textos – a unidade de análise dos discursos, do dizer colocado em prática – é compreender o conjunto de relações e componentes que neles se materializam. Há diversas formas de realizar esse trabalho. A definição de qual delas adotar depende das definições ontológicas e epistemológicas do trabalho e, por consequência, da metodologia e dos procedimentos de coleta e análise de dados.

De modo a tornar mais evidentes as opções analíticas do presente trabalho, cabe uma breve apresentação sobre possibilidades de abordagem em análises textualmente orientadas.

A Análise de Conteúdo, no campo das ciências sociais, busca explicitar os rumos das práticas linguareiras nas práticas de textos. Tal abordagem aposta no rigor do método como modo de não se perder na heterogeneidade de seu objeto. Considerada a centralidade da sistematização e do rigor metodológico, caracteriza-se, segundo Rocha e Deusdará (2005), uma tentativa de conferir maior objetividade aos estudos que têm por base manifestações textuais.

O fazer científico evidenciado na Análise de Conteúdo “constitui-se como ciência uma prática que se pretende neutra no plano do significado do texto, na tentativa de alcançar diretamente o que haveria por trás do que se diz”. (ROCHA; DEUSDARÁ, 2005, p. 318). Esse posicionamento caracterizaria um distanciamento entre o pesquisador e seu objeto, sendo a metodologia garantidora de uma pretensa neutralidade.

Nessa abordagem, o texto é visto como um “meio de expressão do sujeito, onde o analista busca categorizar as unidades de texto (palavras ou frases) que se repetem, inferindo uma expressão que as representem”. (CAREGNATO; MUTTI, 2006, p. 682).

Entre o rigor metodológico e a heterogeneidade do objeto evidencia-se, segundo esses autores, um modelo de ciência sobre o qual a Análise de Conteúdo está erigida: um modelo rígido, de corte positivista, herdeiro de um ideal preconizado pelo Iluminismo, centrado na crença de que a “neutralidade” do método garantiria resultados mais precisos. Uma das principais manifestações de tal posição seria associar análise quantitativa e “objetividade”5.

Na abordagem da Análise de Conteúdo, no processo de descoberta do texto, a tentativa de ultrapassar seus níveis superficiais parte da desconfiança em relação aos planos subjetivo e ideológico, que são considerados elementos de deturpação técnica. Desse modo, “a explicitação de um ponto de vista, qualquer que seja a ótica explicitada, desvirtua os rumos da análise, ou seja, a ideologia é vista como o descaminho da descoberta científica”. (ROCHA; DEUSDARÁ, 2005, p. 310).

O principal objetivo da Análise de Conteúdo seria construir e oferecer técnicas precisas e objetivas o suficiente para garantir a descoberta do verdadeiro significado dos conteúdos dos textos. Assim, é importante reafirmar a certeza de que há um sentido a ser resgatado em algum lugar, e de que o texto seria seu esconderijo. O papel do analista, encaminhado pela ciência, é, então, descobrir o sentido oculto do texto. (ROCHA; DEUSDARÁ, idem, p. 310).

O rigor metodológico, manifestado pela necessidade de explicitação da maneira mais precisa possível dos caminhos de uma investigação foi, segundo os autores, uma das contribuições da Análise de Conteúdo.

Fundamentada em outras premissas, a Análise de Discurso (AD) é uma das formas de se trabalhar com textos e pode apresentar diferentes estilos e enfoques. O que há em comum nas diferentes linhas, tal como argumentam Caregnato e Mutti (2006: 680), é i) a rejeição a uma concepção realista de que a linguagem é somente um meio de refletir ou

5 O referencial adotado pelos estudos de Análise de Conteúdo considera a noção antagônica, de “subjetividade”,

como a explicitação de qualquer forma de implicação do pesquisador com seu objeto de investigação (ROCHA e DEUSDARÁ, 2005, p. 309)

descrever o mundo e ii) a convicção da importância central do discurso na construção da vida social.

Consideradas as contribuições das distintas abordagens, para o que importa a este trabalho, a técnica, a sistematicidade e o rigor metodológico da Análise de Conteúdo são insumos importantes a se considerar, apesar das distinções de modelo ontológico, opções epistemológicas e tratamento operacional da análise. O que se pode extrair são procedimentos para identificação de indícios presentes nos textos selecionados, como será detalhado mais adiante, e que permitem delimitar de modo mais preciso as categorias de análise construídas na perspectiva da Análise de Discurso Crítica (ADC).

Pode-se dizer, com base nestas considerações que, enquanto a análise de conteúdo busca identificar as intenções e visões do(s) sujeito(s), do(s) interlocutor(es), a análise de discurso visa compreender as condições de produção do discurso, seu contexto. Em outras palavras, a análise de conteúdo olha ‘para dentro’ do texto e infere como é o contexto, enquanto a análise de discurso olha o texto ‘para fora’, procurando identificar as razões e situações que o configuraram de determinada forma.

A Análise de Discurso propõe o entendimento de um plano discursivo que articula linguagem e sociedade, entremeado pelo contexto ideológico. Segundo Rocha e Deusdará (2005), essa proposição não se constituiria uma substituição de abordagem, mas uma alternativa à perspectiva “tradicional”, um alargamento teórico com um olhar diferenciado sobre as práticas linguageiras.

Com a AD, reconhece-se a importância do papel da ideologia e do contexto histórico nas análises baseadas nas trocas discursivas em que se entrelaçam os conceitos apresentados, uma vez que

ideologia é entendida como instância definida pelo processo histórico-discursivo, materialidade enraizada na produção dos sentidos e mesmo na produção do sujeito – tal como definido pela Análise do Discurso – advindo daí a relação sujeito-ideologia-inconsciente. Sujeito e sentido, fugazes e errantes, podem ser captados enquanto efeitos do funcionamento discursivo a partir da observação das modulações ideológicas presentes no discurso. E é a partir da ideia de língua que se torna possível atingir essas instâncias, a partir do funcionamento da língua na história é que se pode depreender a materialidade do ideológico. (ALÓS, 2004, p. 497)

Os principais pontos de aproximação e afastamento das duas abordagens dizem respeito aos objetivos de pesquisa; ao papel do pesquisador; às concepções de texto, da linguagem e da ciência, tal como sintetizado no quadro a seguir:

QUADRO 2 - SÍNTESE DAS APROXIMAÇÕES E AFASTAMENTOS ENTRE ANÁLISE DE CONTEÚDO E ANÁLISE DO DISCURSO

ANÁLISE DE CONTEÚDO ANÁLISE DE DISCURSO

Objetivos de

Pesquisa Captar um saber que está por trás da superfície textual

Analisar em que perspectivas a relação social de poder no plano discursivo se constrói

Eu Pesquisador

Espião da ordem que se propõe a desvendar a subversão escondida; leitor privilegiado por dispor de “técnicas” seguras de trabalho

Agente participante de uma

determinada ordem, contribuindo para a construção de uma articulação entre linguagem e sociedade

Concepção de

Texto Véu que esconde o significado, a intenção do autor Materialidade do discurso

Concepção de

Linguagem Reprodução e disseminação de uma realidade a priori Ação no mundo

Concepção de

Ciência Instrumento neutro de verificação de uma determinada realidade Espaço de construção de olhares diversos sobre o real Quadro extraído de Rocha e Deusdará (2005)

Um dos aspectos que separa as duas abordagens é a compreensão de que, na abordagem discursiva, “o pesquisador, em um dado campo de análise, é co-construtor dos sentidos produzidos que se alteram o lugar em que ele se situa e sua postura de interlocutor em uma determinada situação de pesquisa”. (ROCHA; DEUSDARÁ, 2005, p.316).

Na discussão das duas abordagens, Caregnato e Mutti (2006) sintetizam aspectos relevantes que evidenciam visões de mundo bastante distintas, como apresentado do quadro a seguir:

QUADRO 3 – DIFERENÇAS ENTRE AS ABORDAGENS DE ANÁLISE DE CONTEÚDO E DE DISCURSO

ANÁLISE DE CONTEÚDO (AC) ANÁLISE DE DISCURSO (AD)

- Trabalha com conteúdo;

- Fixa-se ao conteúdo do texto, sem fazer relações além deste;

- Espera compreender o pensamento do sujeito através do conteúdo expresso no texto;

- Linguagem é vista como transparente; - Analista lê o texto buscando uma série de

significações que o codificador detecta por meio dos indicadores que a ele estão ligados.

- Trabalha com sentido;

- Busca os efeitos de sentido relacionados ao discurso; - Preocupa-se em compreender os sentidos que o sujeito manifesta através de seu discurso; - Linguagem é considerada opaca;

- Analista lê o texto focando a posição discursiva do sujeito, legitimada socialmente pela união do social, da história e da ideologia, produzindo sentidos. Elaboração a partir de Caregnato e Mutti (2006)

Considerados os objetivos deste trabalho de identificar e a analisar os discursos de pobreza e desenvolvimento relativos a iniciativas associadas aos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, o quadro comparativo sinaliza que a abordagem mais adequada é a discursiva. Isso porque se busca aqui compreender os fatores de contexto, a historicidade da questão da pobreza, seu processo de produção e reprodução, os sentidos, as relações e os conjuntos de valores inseridos e materializados nas práticas das iniciativas relatadas.

Tais ponderações reforçam o entendimento de que o trabalho de investigação dos discursos de pobreza e desenvolvimento não podem ser dissociados da análise do contexto em que se inserem e de onde são produzidos. Uma vez caracterizado um posicionamento, não se pode perder de vista a necessidade de manter o rigor metodológico na análise. Desse modo, a opção analítica adotada se vale da abordagem da Análise de Discurso, que permite perceber o conteúdo explícito e implícito das mais variadas formas de comunicação existentes. (GARCIA, 2003; p. 192) e será detalhada mais adiante.

CAPÍTULO 2 - DESENVOLVIMENTO E POBREZA: DISTANCIAMENTOS E