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Texto e música, interpretação e criação

Capítulo 7 CONFIGURAÇÕES IDENTITÁRIAS MARCADAS PELA

7.6 Texto e música, interpretação e criação

Ao falar sobre particularidades da voz, é possível desvelar outra especificidade em relação a ensinar a cantar. O canto, além da técnica e dos estudos de fisiologia e fonoaudiologia trabalha também com a linguagem. Ao cantar, além das notas, fraseado, agógica etc, está também explícito o texto escrito. “No caso da voz humana em sua ma- nifestação musical- o canto- essa busca é representada pela questão fundamental que o cantor trabalha em sua arte: a harmonização entre o som puro (música) e o verbo (pala-

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vra)” (ABREU, 2001, p. 104). Independentemente das questões musicais, o cantor pre- cisa interpretar um texto, ser o “porta-voz” desse texto por meio da música. Sant’Anna (2001) ressalta que “canto e palavra devem e podem andar juntos, posto que juntos tam- bém nasceram. [...] O poeta e o cantor falam por um ritmo próprio. Amalgamando canto e palavra eles dialogam com e por sua tribo - em tempos eletrônicos ou não” (SANT’ANNA, 2001, p. 21) Assim, a voz como um instrumento musical mostra-se híbrida, ou seja, se faz presente com o texto e com a música.

Os professores participantes também apontaram para a questão interpretativa em relação ao texto, à palavra. Tratando-se de especificidades do ensino de canto, a palavra, o poema de uma canção torna-se tão importante quanto as questões musicais. Dentre os quatro participantes da pesquisa, o discurso de Violeta foi o que mais enfati- zou a importância do texto para a interpretação, para performance:

uma das coisas que na minha opinião fortalecem e ajudam as questões técnicas é a interpretação. E o canto você não trabalha só interpretação musical, você trabalha texto. E você jogar através da palavra um sen- timento que está muito próximo daquilo que você está passando, às vezes é impossível, você não canta, você desmonta. "Não, hoje não dá pra cantar isso. Hoje eu não tenho condição de cantar”. Da mesma forma quando você está alegre, uma peça jocosa sai de maneira ímpar.

(Entrevista Violeta, p. 20)

Ao trabalhar as questões interpretativas, Violeta mostra que muitas vezes é atra- vés do poema, do texto que as questões de técnicas começam a ser trabalhadas na aula de canto. Assim, a relação texto/música, texto/melodia é, além disso, um “pretexto” para se trabalhar outras questões musicais. Valente (2012) ao problematizar questões sobre a performance no canto, discute também a questão dos textos como algo impor- tante nas canções. “Os textos literários geralmente confiados aos poetas que trabalham em parceria com os compositores são de importância capital, e têm na voz o seu meio de expressão e no piano o seu comentador ideal” (VALENTE, 2012, p. 29). A coloca- ção da autora se aproxima do discurso de Violeta no que diz respeito ao texto. Assim, a professora revela o texto como um dos parâmetros para se ensinar canto. Ao ser um aspecto importante, Violeta comenta sobre as suas aulas: “a gente faz muitos exercícios. Exercícios de trava-língua, exercícios de interpretação do texto. Eu gosto que o aluno leia o texto antes de cantar, porque muitos chegam e cantam: "e aí? o que você está fa- lando?" (Entrevista Violeta, p. 20).

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Além do texto, os professores enfatizam também a importância do contexto em que a música está inserida. A questão levantada por Violeta de que cantar não é sim- plesmente pronunciar as palavras, ou seja, deve- se saber o que se canta, é explicitada por outros professores. Suzanna, explicita que é importante “conversar sobre o contexto, a cultura. Porque música é inserida em uma cultura, em um contexto, em uma história. [...] Você tem que tornar a aula uma coisa interdisciplinar. Você tem que falar sobre tudo e tentar associar a música a outros focos.” (Entrevista Suzanna, p. 12). Assim, é possível descortinar a reflexão de Valente (2012) a qual coloca que “a voz é fruto de sua cultura e de sua história; recebe e imprime marcas de diferença, percepção, transmissão, reciprocamente, ela inscreve os valores e referenciais que constituem, justamente a his- tória e a cultura” (VALENTE, 2012, p. 26).

O professor Giovani também ressalta a importância da interpretação. As ques- tões que não são estritamente ligadas às questões técnico-musicais (como por exemplo, teoria, afinação impostação etc.) são realçadas pelo professor como algo que se soma a interpretação.

As questões interpretativas de fazer com que o aluno não simplesmen- te repita, mas que ele vá criando a sua própria interpretação. As ques- tões estilísticas, quando o repertório não permite uma interpretação completamente pessoal, o repertório já exige, você sabe, o coro do Händel que nós estamos fazendo, então o trabalho com história da música. Trabalhar essa questão de estilo, teoria musical. Outras ques- tões que são as habilidades na performance, na questão da colocação, da postura, do olhar, que isso não é ensinado, mas no sentido de que eu conscientizo os alunos. O corpo, o que é que eles precisam fazer na hora da apresentação. (Entrevista Giovani, p. 16)

Giovani fala da questão do corpo no ato da performance. Essa colocação vai além do que se pensa em relação ao texto e ao contexto de determinada música para apresentação musical. O professor nomeia esse corpo na performance como outras habi- lidades e que muitas vezes não é ensinado, desta forma, o docente usa o termo “consci- entizar o aluno”. Esse corpo explicitado por Giovani não é apenas a questão do cuidado com o corpo em relação às particularidades da voz, mas uma linguagem do corpo, uma forma de gesto musical, ou seja, o corpo ligado à interpretação musical.

Embora o gesto musical esteja ligado à uma discussão mais ampla, é possível compreender a partir Freitas (2005) a relação entre gesto, conhecimento musical e a- prendizagem musical. O autor explicita que a compreensão dos elementos musicais bem como o desenvolvimento do pensamento e raciocínio musicais encontram as suas bases

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na construção do gesto que se realiza através do sistema sensório-motor. Assim, o autor evidencia que “se pode compreender de maneira orgânica a construção do gesto e do conhecimento musical, ficando incompreensível uma abordagem que parta apenas do gesto, e não da música” (FREITAS, 2005, p. 58). O autor supracitado enfatiza que “é preciso de que o gesto musical seja suscitado na sua função integrada com a música, e estimulando na sua totalidade” (FREITAS, 2005, p. 63). Dessa forma, Freitas (2005) revela: “não é a sua posição mais elegante ou o gesto teatral que vai gerar a boa execu- ção, mas o gesto que a própria música suscitou como o mais adequado para a sua con- cretização, dentro da unidade de uma concepção” (ibid).

A indagação do professor Giovani em relação ao corpo, à expressão e ao gesto musical, possibilita a reflexão de que embora o professor fale “conscientizar o aluno”, o corpo, o gesto musical são intrínsecos à interpretação musical. O docente afirma não ensinar, ou seja, não é algo pronto, o aluno deve construir essa expressão do corpo, esse gesto musical. Dessa forma, é possível inferir que o gesto musical também está relacio- nado ao texto e ao contexto da música, ou seja, faz parte de uma totalidade, faz parte da

performance musical.

Nos discursos dos professores participantes é realçada a importância da interpre- tação musical. O termo “interpretação musical” pode sugerir diversos parâmetros im- portantes para uma performance. A interpretação musical, no caso do canto pode estar ligada à uma cena (no caso de musicais e óperas, por exemplo) ao texto, à questões téc- nico-musicais e, assim como colocado pelo professor Giovani, ao gesto musical. Os dados revelam/ fazem entender que a interpretação musical além de ser um termo amplo é também subjetivo, ou seja, atravessa textos e contextos, gestos e técnicas, cultura e sociedade. Além disso, uma interpretação musical também pode sugerir a particularida- de de um sujeito ou de um grupo, a identidade do artista e do cantor em sua performan-

ce.

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