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3 A DECLARAÇÃO DE PEQUIM COMO TEXTO SENSÍVEL:

3.1 O texto sensível

Os textos de natureza sensível, como a bíblia, são amplamente divulgados e conhecidos pelas sociedades. No campo da tradução, a sensibilidade textual é mais bem reconhecida e estudada em textos sagrados. Assim, faltando estudos no que tange à análise de documentos diplomáticos, tais como declarações e documentos oficiais, como textos sensíveis. Neste trabalho, dedicar-nos-emos, por meio da tradução da Declaração de Pequim, a levantar indícios de que tais documentos também podem ser considerados sensíveis. Atualmente, encontramos alguns estudos que abordam a tradução de textos sensíveis. Destacamos, principalmente, as reflexões de Simms (1997), Hatim e Mason (1997) e Hatim e Munday (2004). Com relação aos textos jurídicos e políticos sensíveis, encontramos as pesquisas de Schäffner (1997; 1998), Ardelean (2008) e Daraghmeh (2010), que apresentam indícios de sensibilidade textual em discursos políticos. Já na área da tradução de textos sagrados sensíveis, encontramos as pesquisas de Gohn (2001), Souza e Figueiredo (2009) e Carmo (2011). Os estudos sobre a tradução de textos sensíveis contemplam principalmente a tradução de textos

sagrados como a Bíblia Hebraica, o Novo Testamento, o Alcorão e o Evangelho Segundo o Espiritismo (GOHN, 2001).

A tradução de textos sagrados iniciou com São Jerônimo (348 d. C), que, ao traduzir o Novo Testamento, optou por uma tradução pelo sentido do texto traduziram invés de uma tradução palavra por palavra. Com isso, São Jerônimo quebrou paradigmas tradutórios estabelecidos pela Igreja, que via no texto bíblico uma cópia fiel da palavra Divina. Já no século XVI, a tradução da Bíblia ganhou diferentes traduções para inúmeras línguas europeias, tanto para a versão protestante quanto para a versão Católica Romana, assim, destaca-se a tradução da Bíblia em alemão feita por Luthero, em 1522. De acordo com Bassnett (2005), ainda hoje, encontramos grandes dificuldades em traduzir os livros sagrados, pois há uma linha tênue entre a estilística e a interpretação.

Ao falarmos da tradução de textos sagrados, adentramos no território de texto sensível, pois essa modalidade trata de questões religiosas que estão estreitamente ligadas a culturas e ideologias. Assim como os textos religiosos, os textos diplomáticos também podem ser sensíveis, uma vez que, ao tratar de questões sociais, culturais, jurídicas ou religiosas, podem afetar crenças, valores e tradições de determinada sociedade.

A Declaração de Pequim, ao tratar da promoção e defesa dos direitos das mulheres, acaba tocando em um tópico sensível para muitas nações: a posição da mulher na sociedade, o reconhecimento de seus direitos, a necessidade de sua proteção contra a violência e a crença, majoritariamente fundamentada na religião, de que mulheres são inferiores aos homens e, portanto, devem ser submissas a eles. Ao defender a igualdade entre os sexos, a Declaração de Pequim está inevitavelmente entrando em choque com essa crença. É justamente nesse ponto que reside a sensibilidade desse texto, pois ele mobiliza as crenças individuais. Assim como a Declaração de Pequim, outras declarações também podem apresentar um conteúdo sensível, ao pregarem os direitos de determinados grupos sociais excluídos ou pouco reconhecidos entre grupos étnicos majoritários, como no caso da Declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas (ONU, 2007). Nesse sentido, o tradutor pode se deparar com concepções que vão além do linguístico (SIMMS, 1997). Dessa forma, percebemos que os desafios tradutórios envolvidos na tradução de textos sensíveis vão além da busca por equivalentes, visto que o que está em questão não é apenas a equivalência de determinados termos, mas a recepção da tradução.

Tanto os textos sagrados como os textos jurídicos, políticos e diplomáticos podem ser considerados textos sensíveis. Mas, por que eles são sensíveis? O que caracteriza um texto como sensível? Nenhum texto pode ser, a priori, considerado sensível. A sensibilidade de um texto somente pode ser avaliada a partir da sua recepção pelos leitores Dessa forma, sempre é levado em conta a audiência específica, pois o que pode ser considerado um tema sensível para um público pode não ser para outro. De acordo com Simms (1997), um texto pode se tornar sensível se ele tocar em questões relacionadas ao Estado, à religião, ao pudor e às crenças particulares de determinados grupos sociais. Ainda segundo o autor, o texto sensível apresenta quatro domínios: sagrado, profano, político e jurídico. Um texto sensível, independente da seu domínio, trata de um conteúdo que é considerado tabu, ou a própria existência do texto por si só já é um tabu (SIMMS, 1997). Conforme aponta Schäffner (1997, p.131), “textos traduzidos enriquecem a vida intelectual das comunidades-alvo e, por vezes, eles introduzem novas estruturas linguísticas ou novos gêneros para a língua e a cultura alvo”, mas eles também podem causar irritação e confusão por parte dos leitores-alvo. Dessa forma, o texto sensível pode ser reformulado e adaptado para ser compreendido e aceito na sociedade alvo. Nesse sentido, conta-se muito com a experiência do tradutor para resolver questões culturais entre as línguas e saber lidar com eventuais problemas de tradução no ato tradutório. De acordo com Simms (1997), a tradução de textos sensíveis apresenta uma discussão binária entre uma tradução livre e uma tradução fiel (literal).

A tradução fiel, também chamada de tradução literal, está ligada à cópia exata do texto-fonte. Para Newmark (1988, p. 63), a tradução fiel, “tenta reduzir o significado contextual do original dentro dos limites das estruturas gramaticais da língua-alvo.” Nesse sentido, o tradutor, ao optar por uma tradução literal fará a transferência do texto palavra por palavra. De acordo com Hatim e Munday (2004) e Chesterman (1997), a tradução fiel seria uma aproximação exagerada entre as propriedades lexicais e sintáticas das línguas fonte e alvo. Conforme argumenta Simms (1997), ao optar por uma tradução literal, o tradutor se torna invisível na sua tradução, por exemplo, não evidenciar adaptações e paráfrases do autor, apresentando um aspecto autoritário e obediente ao autor e às suas palavras.

Com relação à tradução livre, Chesterman (1997) afirma que esse tipo de tradução prioriza as equivalências funcionais e proporciona mais liberdade para o tradutor no ato tradutório. Assim, a tradução livre objetiva capturar o sentido do texto

(HATIM; MUNDAY, 2004). A tradução livre pode ser vista muitas vezes com a falta de fidelidade ao texto original. Na visão de Simms (1997), ao optar pela tradução livre em um texto sensível, o tradutor pensa mais na relação entre o leitor e o texto do que nas ideias principais do autor, ‘traindo’ as intenções do autor. Outro ponto sobre a tradução livre aplicada ao texto sensível está na grande liberdade do tradutor no ato tradutório. Contudo, segundo Simms, em textos jurídicos e legais, e aqui adicionamos também os textos diplomáticos, a criatividade e a liberdade não devem ser extremas a ponto de a tradução se transformar em um texto cultural. Assim, o tradutor busca uma adequação do conteúdo textual para a cultura-alvo. De acordo com Nord (2010), para produzir um texto adequado, o tradutor precisa coletar o máximo de informações possíveis sobre a situação, o tempo, o contexto e o conteúdo do texto, para que a tradução seja compreendida pela audiência.

Ainda pensando na tradução de textos sensíveis, Simms (1997) argumenta que a tradução literal não cabe nessa perspectiva, pois não podemos nos centrar somente na palavra, principalmente pelo fato de os textos sensíveis estarem impregnados de fatores extralinguísticos, como o contexto, o tempo em que o texto-fonte foi escrito, a situação em que este texto se insere, a audiência que lerá o texto e o seu conteúdo textual. Todavia, o tradutor não pode recorrer somente à tradução livre a ponto de se perder o conteúdo por completo. Considerando os textos jurídicos e políticos, bem como os diplomáticos, como sensíveis, uma grande liberdade tradutória é um risco, pois o tradutor não pode se desprender do texto original. Desse modo, para Simms (1997, p. 9), a tradução de um texto sensível “pode ser uma tradução que preserva a literalidade, ao passo que também auxilia o leitor onde sua compreensão possa falhar” 16. Nesse sentido, uma forma de ajudar o leitor a compreender o texto é por meio da interpolação textual, ou seja, o tradutor opta por adicionar notas de rodapé e informações extras, em itálico ou entre chaves e colchetes, que auxiliem a audiência a entender melhor o texto e a sua tradução. Uma das vantagens previstas nesse tipo de tradução é a visibilidade do tradutor (VENUTI, 1995; SIMMS, 1997), pois, a partir das informações extras, o leitor reconhece o que é o texto original, a tradução e o que é material do tradutor (SIMMS, 1997).

16 “The answer might be a translation which preserves literality whilst helping the reader where her

Neste estudo, compreendemos a Declaração de Pequim (ONU, 1995; 1996), um documento diplomático e jurídico, como um texto sensível, pois trata de um tema ainda tabu em muitas sociedades: a igualdade de gênero. Como aponta Fuente Luque (1999), a tradução de textos diplomáticos está relacionada a missões diplomáticas, embaixadas, consulados e agências internacionais, por exemplo, a ONU e a União Europeia. De acordo com Afkir (2013), as traduções em organizações internacionais lidam com importantes aspectos políticos, culturais, sociais e econômicos nos processos de negociação diplomática entre os países-membros. Assim, os tradutores de documentos diplomáticos devem ser imparciais e respeitar as diferenças culturais entre as línguas. Conforme destaca Afkir (2013), a tolerância linguística e cultural nas relações diplomáticas evita crises políticas e espalha a paz entre as nações. Sendo assim, a tradução diplomática apresenta uma questão delicada: os documentos produzidos nesse âmbito devem ser claros e devem ‘agradar’ a todos os membros. Segundo Carvalho (2006), considerando que uma organização internacional conta com mais de uma língua oficial, a principal dificuldade na tradução de documentos diplomáticos e oficiais é neutralizar as diferenças semânticas entre os discursos nas diferentes línguas. Para Carvalho (2006, p. 188), a tradução de documentos diplomáticos considera mais do que a competência linguística:

[...] na passagem de uma língua para outra, tende-se a mudar de um universo referencial para outro, podendo envolver realidades distintas, de cultura a cultura. A apreensão de um texto original deve ser efetuada tendo por pano de fundo o quadro referencial da língua/cultura de chegada, fazendo com que o produto final – o texto da tradução – possa conter expressões cujos sentidos não coincidem exatamente com o discurso de origem. Aquilo que parece culturalmente bem definido em uma língua pode apresentar-se obscuro ou ambíguo em uma outra.

Dessa forma, o tradutor também considera os fatores extralinguísticos já citados anteriormente, como o contexto, o tempo, a cultura, as crenças e valores dos leitores do texto-alvo. Considerando que a linguagem diplomática é caracterizada pela ambiguidade, vagueza e complexidade (AFKIR, 2013), o tradutor tem a possibilidade de adaptar para a língua-alvo certos termos ou questões não compreendidas, evitando um choque cultural e social. Contudo, os tradutores não podem deixar suas crenças e valores se refletirem nas traduções.

A tradução da Declaração de Pequim, além de ser uma tradução diplomática, também é oficial. Conforme destaca Merkle (2013), a tradução oficial, muitas vezes,

não recebe uma definição clara, pois o conceito de “oficial” ainda é confuso. Para Asensio (2003), a tradução oficial se sobrepõe à tradução legal, à tradução oral e à tradução e interpretação judicial, pois o tradutor lida com diferentes gêneros que compõem essas traduções, por exemplo, certificados, certidões de nascimento e casamento e licenças. Além disso, a tradução oficial está relacionada à tradução institucional, ou seja, uma tradução ligada a uma instituição ou organização específica. De acordo com Merkle (2013), para muitos estudiosos da tradução, a tradução oficial está relacionada à tradução de organizações supranacionais, que trabalham em contextos plurilíngues e igualitários, como a ONU e a UE. Nessa perspectiva, destacam-se as políticas linguísticas e a tolerância linguística entre as línguas oficiais, principalmente a promoção e defesa das línguas minoritárias na tradução oficial.

No que tange às normas nas traduções oficiais, Asensio (2003) destaca que, frequentemente, relacionamos esse tipo de tradução às normas e a um formato rígido de documento. Todavia, nem sempre a tradução oficial segue uma norma, pois há graus de obrigações tradutórias que variam de acordo com a jurisdição e com o cliente. É importante destacar que, a tradução oficial admite certo grau de liberdade e criatividade. Entretanto, de acordo com autor, a criatividade e a liberdade só são outorgadas caso a tradução necessite de clarificação, homogeneização terminológica, aprimoramento de estilo e de compreensão da tradução, fornecimento de explicações e de informações culturais ou institucionais específicas e preenchimento de lacunas lexicais e semânticas. A Declaração de Pequim, um texto diplomático e oficial, pode ser considerada um texto sensível a partir da temática do texto, como as noções de empoderamento da mulher e de igualdade de gênero. Nesse sentido, a leitura feita pela audiência é de suma importância para o tradutor, que escolhe sua metodologia e técnicas pensando tanto nas intenções do autor quanto nas experiências, crenças e valores compartilhados pelos leitores a fim de não causar um choque social na sua leitura. Nessa perspectiva, a adequação almejada pelo tradutor pode ser explicada pela Teoria do Escopo, teoria essa que trata da relação entre o tradutor, o a instituição que encomenda a tradução e a audiência do texto traduzido. Assim, na próxima seção, discutiremos as relações entre os pressupostos da Teoria do Escopo (REISS; VERMEER, 1996) e o texto sensível.

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