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2. As Fórmulas e formulações do imperativo Categórico

2.5. Thomas E Hill: Reino dos fins

Hill começa por afirmar que a ideia de reino dos fins é uma ideia de um estado ou como Kant afirma de uma “ligação sistemática de diferentes seres racionais mediante leis comuns”. O reino dos fins é, para os seres racionais, apenas um ideal: “ele tornar- se-ia efetivo se todos os homens agissem e decidissem como deveriam”; e tem três elementos fundamentais, a saber, os seus membros, a soberania e os fins privados que cada membro tem. Em relação ao primeiro elemento, Hill afirma:

Os membros são completamente racionais, pessoas autónomas, que dão a si mesmo leis universais às quais se conformam. Eles são fins-em-si- mesmos: isto é, de um valor incondicional e incomparável. Eles são

115 Com esta afirmação, em nosso entender, Kant não quer dizer que o princípio da universalidade e o princípio da humanidade não sejam princípios da moral. Mas simplesmente que, se os dois princípios anteriores são constitutivos do princípio da autonomia, basta pensarmos num princípio único da moralidade, como seu princípio supremo.

91 pensados abstratamente: isto é, pensando as pessoas como membros de um reino, abstraímo-nos (ou ignoramos) das suas “diferenças pessoais” (Thomas E. Hill, Dignity and Pratical Reason in Kant’s Moral Theory, p. 59). Portanto, estas são as três condições para que os seres racionais sejam efetivamente membros de um reino dos fins. A racionalidade dos agentes pressupõe que estes sejam autónomos e livres e por isso legislam segundo leis universais. Daqui resultam que têm de se tratar a si e aos outros sempre como fins-em-si-mesmos, o que lhes dá um valor absoluto, enquanto pessoas. Por sua vez, para que possam legislar num reino, isto é, num contexto em que exista uma ‘ligação sistemática de leis comuns’, os membros precisam de se abstraírem de seus interesses privados e, portanto, também das suas diferenças pessoais, para que seja possível harmonizarem-se num possível reino dos fins sob leis que sejam compatíveis para todos.

Em relação à interpretação do conceito de soberania existe uma polémica acirrada, porque é entendida como um conceito político ou como um conceito teológico. Em qualquer um dos casos é vista como uma analogia. Hill, em relação a esta questão, entende que o conceito de soberania reporta à ideia de Deus ou de uma vontade sagrada. Pelo contrário, Reath entende a soberania como uma metáfora política. Hill considera que a soberania é um conceito que apenas serve como exemplo de um legislador ideal. No entanto, isso seria colocar a soberania como um conceito exterior ao sistema filosófico kantiano, pois se evoca a ideia de Deus, a soberania teria de ser um conceito exterior e teológico – e isso é exatamente uns dos principais objetivos de Kant, isto é, afastar as teorias teológicas (ou que se baseiem no conhecimento de um ente perfeito para fundar a moralidade)117. Como afirma:

A soberania é distinta dos membros pelo fato de não estar sujeita às leis do reino. Isto não quer dizer, contudo, que é está no direito de infringir as leis, mas apenas que a sua natureza é tal que não poderá infringi-las. O soberano, que é presumivelmente Deus ou uma vontade sagrada, serve

117 Por isso, nós consideramos nesta pesquisa que o conceito de soberania tem de ser entendido como uma metáfora política, pois Kant afirma que os membros são ao mesmo tempo soberanos e sujeitos a uma lei que criam. Se são soberanos são, com efeito, um corpo soberano.

92 como exemplo de um legislador ideal, mas não como um legislador externo (Thomas E. Hill, op. cit., idem).

A soberania é, em nosso entender, um dos elementos mais importantes da fórmula da autonomia, onde já é evidenciado, mas fundamentalmente da fórmula do reino dos fins: a soberania é de fato o que nos mostra que a comunidade de legisladores é soberana e que cada membro dela, como membro legislante, está não só submetido à lei, como fora afirmado na fórmula da lei universal, mas é também soberano, pois participa da criação da própria lei: legisla universalmente num possível reino dos fins. Ademais, a autonomia garante que o agente racional, no exercício da sua soberania, “jamais deve tratar a si mesmo e a todos os outros como meros meios, mas sempre ao mesmo tempo como fim em si mesmo” (G 4:432, pp. 259 e 261). Pelo fato de ele ser membro do reino dos fins ele já é soberano:

Um ser racional, porém, pertence ao reino dos fins como membro, se ele legisla aí, é verdade, universalmente, mas também está submetido ele próprio a essas leis. Ele pertence a esse reino como soberano, se ele não está, enquanto legislador, submetido à vontade de qualquer outro (G 4:432, p. 261).

Nada indica, em nosso entender, que Kant esteja a pensar num Deus (a analogia continua a ser muito mais próxima da política). Isso é precisamente o que Kant quer retirar do seu sistema da moral. Embora se pudesse fazer a analogia sem introduzir um conceito teológico, para tornar a moral mais intuitiva – como é feito diversas vezes ao longo da Fundamentação em relação a uma vontade sagrada, isto é, usar uma analogia para tornar os conceitos mais próximos da intuição (e.g. em relação ao dever e às fórmulas do imperativo categórico) –, essa analogia não faz sentido neste contexto, porque o membro é considerado soberano, e Kant não poderia considerar o ser racional ao mesmo tempo como imperfeito e perfeito (como um Deus). Por conseguinte, Hill em seu livro mais recente, já não faz uma alusão a Deus, quando fala desta questão, muito embora continue a excluir uma analogia entre a soberania do reino dos fins e a soberania de um Estado.

93 Kant alude ao “soberano” do reino dos fins, que é apenas uma “vontade santa” que quer essencialmente o que todas a vontades dos membros querem. A única diferença entre o soberano e os membros do reino é que, porque não tem uma tendência para a tentação, o soberano não pode ser visto propriamente como “sujeito” às leis, que são queridas por todos num reino. Esta perspectiva é muito diferente da de um chefe de Estado secular, pois a autoridade depende do seu poder e que, por isso, poderá fazer ou reforçar leis corruptas. (Thomas E. Hill. Human Welfare and Moral Worth, p. 75).

No entanto, como Kant se está a referir a uma situação ideal, porque não se poderá pensar num tipo de Estado ideal como modelo? Podemos supor que Kant poderia pensar numa situação ideal em que não estivesse a pensar num único soberano e numa situação em que não fosse possível a corrupção das leis pelo soberano, precisamente porque todos seriam parte dessa soberania e onde os fins privados estariam à partida excluídos do ato de co-legislação. Esta ideia é expressa por Hill, por isso não se entende porque nega essa analogia quando afirma:

Os membros não são apenas considerados abstratamente, mas idealizados, pois eles fazem leis racionalmente de uma maneira que torna possível um sistema harmonioso de fins e a sua legislação não é influenciada por interesses particulares. As metáforas políticas “legislante”, estar “sujeito” às leis, “soberania”, “a união sistemática de diferentes agentes racionais sob leis comuns” e o modelo invocado de (idealizado) legislação secular. (Thomas E. Hill, op. cit., p. 76, negrito é nosso).

É incoerente afirmar que a soberania é uma metáfora política, mas que ao mesmo tempo, como afirmou em outra passagem, tem a ver com uma vontade santa ou com a ideia de Deus. Por outro lado, não é rigoroso afirmar que existe uma analogia com o modelo de legislação secular, quando se nega uma possível interpretação política da soberania no conceito de reino dos fins. Em outro lugar afirma que o reino dos fins é a ideia mais explícita de uma metáfora política. Sendo a soberania o novo conceito

94 introduzido com a fórmula do reino dos fins, é difícil entender esta dualidade. Como afirma:

A ideia de Kant de um ‘reino dos fins’ (Reich der Zwecke) é o mais explícito uso de um modelo político para a deliberação sobre princípios morais. Exceto para o chefe titular (Deus), todos os membros são ao mesmo tempo autores das leis e sujeitos a elas. O Chefe, sendo uma ‘vontade sagrada’, deixa de estar obrigado pelas leis apenas porque tecnicamente uma vontade sagrada segue apenas princípios racionais puros, sem qualquer tentação e, por isso, não se pode dizer que seja limitado pelas leis. (Thomas E. Hill. Respect, Pluralism, and Justice. OUP, 2000, p. 223). Pensamos que a analogia com uma vontade sagrada deve ser entendida no sentido em que Kant utiliza outras analogias e não para interpretar a soberania como um conceito teológico. Ademais, a vontade pura (que é um também ideal, por isso Kant afirma que poderá nunca ter existido na terra uma ação moral) tem esse estatuto, em certo sentido é sagrada, pois suscita um respeito incomensurável – o que não nos leva a afirmar que vontade pura seja um conceito teológico porque só em Deus existe, sem necessidade de um imperativo; e, é verdade, que a vontade humana possa não conseguir alcançá-la, mas existe essa possibilidade pelo menos em termos hipotéticos. De qualquer forma, é preciso assinalar, na Fundamentação não há nada que indique explicitamente que Kant estaria a pensar nessa possibilidade, isto é, num chefe de Estado. Podemos, contudo, utilizar este conceito estritamente moral e tentar entender se ele faz sentido no quadro dos escritos políticos kantianos.

2.6.

Onora O’Neill: As fórmulas do Imperativo Categórico e o Reino dos