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THOMAS KUHN E A OPOSIÇÃO ENTRE CIÊNCIA NORMAL E EDUCAÇÃO

VERDADES CIENTÍFICAS ABSOLUTOS METAFÍSICOS

4 CIÊNCIA E EDUCAÇÃO: DA CERTEZA DESARTICULADA À DÚVIDA ARTICULADA

4.2 THOMAS KUHN E A OPOSIÇÃO ENTRE CIÊNCIA NORMAL E EDUCAÇÃO

Outra contribuição muito significativa para a perspectiva da educação sem dogmas, pertence ao norte-americano Thomas Kuhn (1922-1996). Em 1962, Kuhn publicou a “A Estrutura das Revoluções Científicas” (1962) que questiona, em parte, a lógica da ciência proposta por Popper, e estabelece um conjunto de referências marcantes para a área da filosofia e da sociologia do conhecimento científico. Segundo Kuhn, os cientistas, em geral,

não estão interessados em refutar as teorias, mas em salvá-las, contrariando a convenção proposta por Popper, tentando a todo custo preservar um padrão (ou cultura) estabelecido da ciência, o que seria, em última análise, uma tentativa de preservar alguma notabilidade e hierarquia entre pares. À cultura científica estabelecida, com suas teorias, técnicas e métodos, Kuhn chamou de paradigma. Os paradigmas são conjuntos de hipóteses aceitos pela comunidade científica e que fornecem, ao longo da vigência do paradigma, problemas e soluções às questões levantadas pelos praticantes da ciência. Os paradigmas podem ser definidos como uma rede total de enunciação, que oferece o problema e a resposta sem a possibilidade de refutação, para lembrar a formulação de Popper. A comunidade de cientistas e pesquisadores que pensam, discutem e propõem hipóteses e teorias em função de um paradigma realizam o que Kuhn chamou de ciência normal. E em “ciência normal” o falseamento e as tentativas de refutação são evitadas sistematicamente. De fato, para Kuhn

(...) a ciência normal não têm como objetivo trazer à tona novas espécies de fenômeno; na verdade, aqueles que não se ajustam aos limites do paradigma freqüentemente nem são vistos (KUHN, 1997, p. 45).

A ciência avança, segundo o modelo de Kuhn, através de revoluções, quando um paradigma é quebrado. Ou seja, a ciência se transforma e desenvolve através de rupturas e limites, e não de forma progressiva, encadeada e gradual. Um paradigma é superado quando se acumula um número muito grande de anomalias e os argumentos correntes e próprios do paradigma não conseguem explicá-las. O interessante aqui é que só a percepção da anomalia permite a percepção do novo, logo, a capacidade de questionamento de um cientista diante de um paradigma é inversamente proporcional à sua competência vinculada ao próprio paradigma. Ou seja, durante todo o período em que há uma ciência normal existem problemas não resolvidos, eventos que contradizem as expectativas paradigmáticas. Porém, estes problemas não são considerados pelos cientistas como contra-exemplos, mas sim como

quebra-cabeças a serem resolvidos através das referências do próprio paradigma. Como ressalta Chalmers, o exercício da ciência normal “implica tentativas detalhadas de articular um paradigma com o objetivo de melhorar a correspondência entre ele e a natureza” (CHALMERS, 1993, p. 126). Ou seja,

Os cientistas normais devem pressupor que um paradigma lhes dê os meios para a solução dos problemas propostos em seu interior. Um fracasso em resolver u problema é visto como um fracasso do cientista e não como uma falta de adequação do paradigma. Problemas que resistem a uma solução são vistos mais como anomalias do que como falsificações de um paradigma (CHALMERS, 1993, p. 127).

Só há uma mudança no rumo da ciência normal quando um destes problemas, por diversos motivos, torna-se importante demais para ser deixado de lado. O quebra-cabeça, então, se transforma numa grave anomalia ou discrepância. Começa-se uma investigação na área onde houve esta anomalia para tentar transformá-la em um problema-padrão, uma “charada” que pode ser facilmente explicada no contexto conceitual do paradigma. De fato, para Kuhn, “resolver um problema em ciência normal equivale a resolver um quebra-cabeça, isto é, algo que serve mais para testar a habilidade do próprio cientista do que pôr em jogo a teorias congruentes do paradigma vigente” (EPSTEIN, 2002, p. 74).

Contudo, essas experiências que geram descobertas que não estão previstas provocam instabilidade na teoria vigente. De fato, quando as anomalias passam a desafiar a capacidade conceitual e semântica do paradigma, um período de “acentuada insegurança profissional começa” (KUHN apud CHALMERS, 1993, p. 130). Em realidade, no período de crise paradigmática não só as anomalias, mas as teorias e as hipóteses vinculadas ao paradigma que procuram explicar o fenômeno extraordinário também geram instabilidade, o que termina por caracterizar uma crise profunda em todo o modelo científico. Assim, o cientista que procura dar respostas às perguntas partindo das regras (conceitos, princípios matemáticos, instrumentos de pesquisa padrão) estabelecidas, perde espaço “epistemológico” e “cognitivo”

quando seus argumentos não explicam as discrepâncias. Assim, a “técnica normal” de análise é destituída. Este período é detectado como um período de crise que só será resolvido quando uma única visão for aceita e as demais refutadas. Desta fase, são exemplos contundentes o paradigma aristotélico que dividia o universo em duas regiões, uma sobrelunar, perfeita e imutável e, outra, sublunar, corruptível e mutável, argumento superado por paradigmas posteriores, que atribuíram ao universo uma unidade fenomenológica; a química anterior a Lavoisier é outro bom exemplo, que afirmava que o mundo continha uma substância chamada flogisto, expulsa da matérias quando queimada, e o novo paradigma de Lavoisier explica todos os fenômenos relacionados à combustão revendo o papel do oxigênio no processo e, por fim, a teoria eletromagnética de Maxwell, que previa a existência de um éter que ocupava todo o espaço, quando as novas formulações de Einstein eliminaram completamente a necessidade de se considerar uma substância como o éter para dar suporte físico ao deslocamento da radiação eletromagnética, entre elas a luz visível.

Se Popper descreveu a dinâmica do desenvolvimento da ciência a partir da refutação de hipóteses e teorias, Kuhn diagnosticou com perfeição a resistência à refutação. Kuhn revelou a dinâmica e a performance do pensamento dogmático em ciência de um ponto de vista privilegiado: de uma perspectiva histórica e sociológica. De fato, para muitas pessoas, antes das teses de Kuhn sobre o desenvolvimento da ciência, acreditavam que a ciência de desenvolvia gradualmente, progressivamente. Ou seja, cada nova teoria científica aperfeiçoa a anterior, aproximando a ciência da verdade a cada passo. Para quem acredita nesta concepção, um exemplo desse ideal de ciência é a transformação, no início do século XX, da teoria newtoniana da gravitação universal para a relatividade geral de Einstein. A primeira poderia, então, ser entendida como um caso especial da segunda, já que é possível derivar as equações de Newton a partir das equações de Einstein fazendo apenas algumas limitações como, por exemplo, admitindo velocidades muito menores que a velocidade da luz. Porém, existem,

segundo Kuhn, alguns problemas nessa derivação das leis de Newton a partir das leis de Einstein. Em primeiro lugar, para fazer essa derivação, é necessário restringir as leis de Newton. Em segundo lugar, e mais importante, os conceitos envolvidos nas duas teorias, apesar de representados pelo mesmo nome, têm significados completamente diferentes. O arcabouço semântico de ambas as teorias são completamente distintos e, mesmo, incompatíveis. Massa, por exemplo, é uma qualidade intrínseca da matéria para Newton, enquanto para Einstein depende do observador. Para Newton, a propriedade gravitacional da massa atrai os corpos, para Einstein, a massa produz uma curvatura no espaço, daí a trajetória elíptica de planetas, asteróides e cometas. Nesse sentido, as duas teorias não são apenas completamente diferentes, são incomensuráveis. É no sentido de incomensurabilidade que Kuhn rejeita a idéia de transformação linear em favor da idéia de "revolução científica". A escolha desse termo se deve a analogia com as revoluções políticas. Quando chega o momento de uma revolução política, os recursos para resolver os problemas em questão dentro do próprio sistema político se esgotam e, pela necessidade de transformar o sistema político em si, é necessário recorrer a meios externos à política. O sistema passa por uma radical re-significação de suas referências, valores e hipóteses. De forma semelhante, em ciência, quando se esgotam os recursos internos da ciência normal, é necessário transformar o próprio paradigma que guia as pesquisas, e isto só pode ser feito recorrendo a argumentos externos ao paradigma vigente. É a prática da ciência extraordinária. Assim, em momentos de competição entre dois paradigmas, se estabelece uma discussão de surdos em que cada cientista argumenta através do seu próprio paradigma. Não é possível demonstrar que um paradigma é melhor que outro, já que não existe uma base comum a partir da qual discutir.

Afirmamos, assim, que a ciência normal e a educação possuem programas incompatíveis, ainda que na referência de conteúdos ainda prevaleça a lógica da ciência normal. Obedecer à lógica de um paradigma também é ensinado e transmitido com a

resolução de problemas padrão, em uma rotina padrão de aprendizagem. A influência dogmática da ciência normal gera “professores normais” e, pior, “alunos normais”, incapazes de desenvolver uma relação dinâmica e crítica com o conhecimento. O grave é que à semelhança de um cientista normal típico, o “professor normal” e o “aluno normal” não estarão conscientes da natureza do paradigma em que estão imersos e só raramente serão capazes de articulá-lo para além de seus limites conceituais. De fato, inclusive para Popper,

A ciência ‘normal’, no sentido de Kuhn, existe. É a atividade do profissional não-revolucionário, ou melhor, não muito crítico: do estudioso da ciência que aceita o dogma dominante do dia; que não deseja contestá-lo; e que só aceita uma nova teoria revolucionária quando quase toda a gente está pronta para aceitá-la – quando ela passa a estar na moda, como uma candidatura antecipadamente vitoriosa a que todos, ou quase todos, aderem. Resistir a uma nova moda exige talvez tanta coragem quanto criar uma. Vocês talvez digam que, ao descrever desta maneira a ciência ‘normal’ de Kuhn, eu o estou criticando implícita e sub-repticiamente. Afiançarei,

portanto, mais uma vez o que Kuhn descreveu existe, e precisa ser levado em consideração pelos historiadores da ciência. O fato de

tratar-se de um fenômeno de que não gosto (porque o considero perigoso para a ciência), ao passo que Kuhn, aparentemente, não desgosta dele (porque o considera ‘normal’) é outro assunto; assunto, aliás, muitíssimo importante (POPPER apud BURSZTYN, 2001, p.65).

Como cientistas, professores e alunos “normais”, acostumados ao dogma e à aderência irrestrita ao paradigma dominante, são capazes de, durante a crise causada por uma série de anomalias, passar a exercer a crítica? Seriam realmente capazes? Tudo indica que não. Então como formar alunos que cultivam o pensamento crítico, como estabelecido na LDB? Ainda segundo Chalmers, neste ponto, os “cientistas normais começam a se empenhar em disputas metafísicas e filosóficas e tentam defender suas inovações - de status dúbio, do ponto de vista do novo paradigma – com argumentos filosóficos” (CHALMERS, 1993, p. 130). A aderência a um paradigma não é grave apenas por promover comportamentos e posturas dogmáticas, é grave, também, pois anula a possibilidade de outras configurações conceituais, nega uma capacidade de adaptação intelectual mais profunda e decisiva.