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Parte II características de software:

CAPÍTULO 2 – BREVE HISTÓRICO DAS TIC NO CONTEXTO EDUCACIONAL

2.2 O restrito uso educacional das TIC nas escolas

2.2.1 TIC e a desvalorização docente

Ainda em torno do processo de recontextualização tecnológica quando da inserção das tecnologias digitais nas escolas da rede pública do País via políticas e programas de Governo, autores como Alonso (2008), Barreto (2012), Barreto e Magalhães (2011), Cordeiro (2014), Leher e Magalhães (2012), dentre outros, criticam a perspectiva da desvalorização do trabalho docente geralmente associada a essa recontextualização, fato que compreende, inclusive, a disseminação de estratégias, vindas de esferas superiores, para a substituição do professor, seja parcial ou total, privilegiando os materiais educacionais e a lógica conteudista em detrimento de melhores condições de trabalho, incluindo formação, salários adequados, sólidos planos de carreira, entre outros.

Dentre as estratégias de substituição determinadas, Leher e Magalhães (2012) apontam a aposta na capacitação através da EAD quando da formulação das políticas educacionais no País – de acordo com prescrições eficientistas e produtivistas feitas por agências internacionais para a inserção das TIC na educação dos países considerados periféricos (BARRETO (2001, 2003); BARRETO e MAGALHÃES (2011)) – como plano para a substituição total do trabalho docente, enquanto que a substituição parcial estaria baseada em recomendações para os usos das tecnologias em sala de aula como veiculadoras de materiais instrucionais. Neste contexto, as TIC são então postas como elementos centrais dos processos de ensino e aprendizagem, com o claro objetivo de desqualificar o papel do professor e não com o intuito de promover mudanças necessárias nas práticas educacionais, pois, como observam as autoras:

Este modelo de substituição tecnológica, fundado na racionalidade instrumental, enfatiza uma abordagem tecnocrática para a preparação dos professores, e destes na sua prática docente. A ênfase nos fatores instrumentais e pragmáticos da vida escolar evidencia: a separação entre “o pensar” a educação e a sua execução; a desvalorização do trabalho do professor pela primazia da prática e a padronização do conhecimento escolar 47 Afora as péssimas condições de trabalho reservadas a grande parte da categoria, os professores ainda convivem

com os baixos salários, principalmente quando comparados aos proventos de outras carreiras com igual nível de escolaridade, chegando a receber entre 18% e 39% menos do que a média desses profissionais. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2016/11/1832095-professor-recebe-ate-39-menos-que-profissional- com-igual-escolaridade.shtml>. Acesso em: 22 dez. 2016.

através do controle e do gerenciamento do processo de escolarização. Nestes termos, importa o aumento da produtividade dos sistemas educacionais e o uso intensivo das tecnologias. O que parece não importar é a construção de possibilidades para que os professores se apropriem destas tecnologias para redimensionar as condições concretas da sua produção. (LEHER; MAGALHÃES, 2012, p. 84-85).

Táticas para a desvalorização docente nas políticas públicas de inserção das TIC na Educação também são observadas e criticadas por Cordeiro (2014). A autora afirma que essas políticas são criadas e amparadas prioritariamente face a dados quantitativos, isto é, o governo brasileiro, em consonância com as políticas internacionais, destaca a importância das suas ações com a divulgação do número de equipamentos enviados às escolas48, fazendo parecer

que somente essa distribuição (embora importante) seja suficiente para viabilizar a ascensão e vivência no contexto digital. Por outro lado, busca culpar os professores pela falta de formação, acusando-os de serem sempre resistentes e de rejeitarem às inovações que chegam à escola. Entretanto, a autora desconstrói essa alegação utilizando como exemplo a sua própria pesquisa de doutorado – que investigou as práticas realizadas com as tecnologias digitais móveis em escolas públicas dos estados da Bahia e de Sergipe, que também receberam os laptops educacionais oriundo do PROUCA e da fase piloto do Projeto UCA –, afirmando que os docentes aderiram prontamente às propostas de formação tecnológica, mesmo com as adversidades encontradas, como os problemas de deslocamento para os locais em que os cursos foram ministrados, dentre outras.

Este cenário de culpabilização dos professores pelas mazelas da Educação vem de longa data, conforme crítica feita por Nelson Pretto (2002), referindo-se a sua pesquisa a respeito da questão dos livros didáticos utilizados nas escolas (PRETTO, 1985), afirmando que na época: “Os editores diziam que faziam livros ruins, e o MEC os comprava e distribuía às escolas porque, conforme os editores, “essa era a demanda dos professores”. Essa era a desculpa para termos – como ainda hoje – livros e aulas de tão baixa qualidade.” (PRETTO, 2002, p. 125). O autor (2002), ao analisar questões relativas à formação docente nas políticas de inserção das tecnologias digitais na escola, afirma ser recorrente o discurso de culpar os docentes, que são responsabilizados pelo desânimo, pela falta de interesse em fazer uso dos recursos tecnológicos que chegam às escolas, acusados, inclusive, de manter os computadores guardados com receio que fossem roubados; ações justificáveis em virtude das deficiências (ou mesmo da falta) de formação para trabalhar com as tecnologias, além do temor de 48Como exemplo, apontamos a pesquisa feita por Cysneiros (2001), que destaca que o quantitativo inicial de 100

mil computadores foi o aspecto mais divulgado quando da implementação do Proinfo, tanto pelo Governo Federal quanto pela imprensa.

também serem responsabilizados por eventuais falhas, danos ou mesmo pelo extravio dos equipamentos.

Ainda com relação a perspectiva da substituição docente, Barreto e Magalhães (2011) destacam, além dos mesmos planos de fortalecimento da EAD como modelo para a substituição total do professor, a distribuição dos laptops educacionais como estratégia para a troca parcial, tal como ocorrido nos programas mais recentes de inserção dos dispositivos móveis nas escolas, como o PROUCA. As autoras também apontam a centralidade dada ao acesso às TIC nos planos formulados pelo MEC, prevalência resumida em propostas verticalizadas, que definem o envio de pacotes educacionais prontos às escolas com o objetivo de formatar o ensino de acordo com interesses mercadológicos, usando o discurso reducionista de que basta a inserção das TIC nos processos educacionais, sendo o professor reduzido a mero cumpridor de tarefas, para se elevar a qualidade da educação:

Ao atribuir às TIC a responsabilidade pelo fazer pedagógico, destituindo o professor do seu trabalho, agora ressignificado como tarefas e atividades, a escola deixa de exercer a sua função primordial na formação do cidadão, passando a se constituir em um local de preparação para o mundo do trabalho, em que os professores deixam de ser os responsáveis pelas práticas pedagógicas que desenvolvem. Nesse movimento, são obliteradas possibilidades concretas de ensino-aprendizagem como construções a serem objetivadas. (BARRETO; MAGALHÃES, 2011, p. 16)

Sob esta ótica de substituição do sujeito (o professor) pelos materiais ditos “educacionais”, deixa-se de focar na formação docente, em razão da eficiência exigida pelo cenário econômico globalizado, seguindo normas impostas por organismos internacionais quando da criação de projetos voltados à Educação. Assim, com a incumbência de capacitar estudantes com as habilidades exigidas pelo modo de produção, a qualificação docente perde a importância em prol das imposições dessas agências, que definem “[...] um modelo de formação de professores centrado no treinamento para o uso adequado do material didático, ou seja, são as habilidades técnicas que devem ser desenvolvidas.” (DURLI, 2008, p. 37). Uma vez estabelecido esse modelo de Educação com ênfase no uso do “material didático” – designando-lhe a centralidade nas práticas pedagógicas –, a formação docente passa a atender prioritariamente o desenvolvimento de habilidades específicas, sendo realizada através de cursos mais rápidos, a um custo mais baixo, que têm como objetivo primordial estabelecer o uso prático, racional e eficiente das tecnologias no ambiente escolar, substituindo a formação sólida e crítica. Não só a formação em tecnologia, mas em um sentido pleno. Que proporcione

ao professor condições para uma leitura crítica do mundo. Um professor reflexivo, criativo, curioso, participativo e que tenha plenas condições, inclusive, para contestar aquilo que lhe é imposto, e não somente consumir modelos e conteúdos pré-determinados.

Portanto, com essa perspectiva de centralidade voltada aos dispositivos móveis educacionais, as práticas na escola continuam mantendo o mesmo paradigma baseado na difusão unilateral e homogênea e também no consumo de informação, só que desvia-se o foco, essencialmente centralizado no professor, para os “pacotes prontos” de tecnologias digitais.

Os efeitos nocivos da desvalorização docente em virtude da centralidade atribuída às tecnologias somam-se à difícil realidade vivida por este profissional. Além de lidar com a crescente depreciação da carreira, incluindo os baixos salários, a elevada carga de trabalho (não só em sala de aula, como também com correção de avaliações, exercícios, preenchimento de cadernetas e planos de aula, em geral tudo feito em casa mesmo) de quem geralmente labuta em várias instituições, muitos professores sofrem com o constante assédio moral, o desrespeito, intimidações verbais e às vezes até agressões físicas, seja por parte da gestão escolar, dos alunos, dos responsáveis por estes ou até mesmo dos próprios colegas. São conhecidos inúmeros casos de violência contra docentes, em geral mais concentrados nos grandes centros urbanos e nas escolas públicas localizadas em bairros pouco seguros. Várias dessas instituições de ensino com instalações precárias, sofrendo com a falta de profissionais, de segurança, de higiene e até mesmo de material básico de trabalho; com salas de aula lotadas de estudantes, mal iluminadas, cercadas por grades e trancas, que muitas vezes parecem verdadeiros campos de batalha ou mesmo prisões, reflexos de uma sociedade adoecida da qual essa mesma escola faz parte.

Neste cenário desfavorável, diversos professores sucubem à frustração, ao cansaço, à depressão, e desanimam em continuar; e, sem a expectativa de uma melhora significativa em suas condições de trabalho, abandonam a profissão. Outros tantos não desistem, lutam pela esperança de melhores dias, mesmo quando são injustamente apontados como os culpados pelos fracassos da Educação no País.

A chegada das tecnologias digitais, principalmente as móveis, que exigem uma nova dinâmica da escola, causa instabilidades e abala as bases de um ambiente tradicionalmente rígido e controlado, que não tem conseguido estabelecer um diálogo conciso com a complexidade e as velozes mudanças provocadas por essas tecnologias, cada vez mais presentes na sociedade contemporânea e mais intensamente no cotidiano dos estudantes, que criam um universo complexo de possibilidades e sem padrões definidos de usos.

E no centro deste processo está o professor, que precisa desenvolver um olhar mais apurado para tentar compreender como essa nova geração, que já nasce imersa na cibercultura, se relaciona com os ambientes digitais. Esse professor que, em geral, mesmo quando incorpora com desenvoltura as dinâmicas do contexto digital, o faz em uma intensidade bem diferente da maioria dos mais jovens, e, em muitos casos, como advertem Bonilla e Pretto (2015), não associam essas dinâmicas às suas práticas pedagógicas por não conseguirem relacionar os usos sociais das tecnologias com as atividades escolares. Em especial, o professor oriundo de uma geração em que prevaleciam os dispositivos analógicos.

Diante desse contexto, sem reais condições para compreender e se envolver nessa nova dinâmica, as escolas e os professores, em geral, vêm se mantendo fiéis ao tradicional modelo rígido, linear e verticalizado, marcado pelo controle do fluxo da comunicação e pelas mesmas práticas de transmissão de informações padronizadas, o que não raramente produz momentos de tensão nas instituições de ensino, envolvendo, inclusive, bloqueios do acesso à internet (total ou de sites mais específicos, como as redes sociais, por exemplo, inviabilizando a criação de potenciais momentos de aprendizagem através da pesquisa, do diálogo e do compartilhamento de saberes), proibições de uso e até mesmo o confisco dos dispositivos móveis particulares nos ambientes de aula. Dentre as consequências, a autoridade e autonomia do professor são ainda mais fragilizadas, pois, uma vez impedido de “refletir a educação”, ele se torna um mero executor de programas e políticas vindas de fora, usuário de materiais e modelos que já chegam em pacotes completos e finalizados às escolas. Situação que o transforma, de acordo com as “ideologias de mercado”, em mão-de-obra mais facilmente adaptável ou mesmo substituível.

O professor precisa resgatar a sua autoridade (que não deve ser confundida, como nos lembra Pretto (2013d), com autoritarismo). Precisa ter condições para pensar, criticar, criar soluções e metodologias, construir novos conhecimentos e desenvolver seus próprios materiais, mas também estar aberto às diversas fontes de informação, e adaptá-las a sua realidade e a dos estudantes. Ser autor, e não somente implementar modelos educacionais geridos em contextos outros, que impõem a utilização de recursos didáticos fechados e uniformes, desenvolvidos sem levar em conta as condições e especificidades escolares. Só assim terá como lidar com a abudância do ciberespaço, com as novas linguagens e as múltiplas necessidades dos estudantes e do País.

Portanto, necessita recuperar o seu protagonismo. Mas não como fonte única do saber, muito menos como reprodutor de conteúdos para a memorização dos alunos. Precisa se constituir como um dos principais protagonistas da Educação, para também ter poder de decisão quando

da formulação das políticas públicas e programas educacionais. E para que isso aconteça, são necessárias melhores condições de trabalho e formação – inicial, continuada e permanente. Uma formação que possibilite compreender as potencialidades estruturantes das tecnologias digitais e incorporá-las as suas práticas pedagógicas, articulando essas práticas, também, às variadas dinâmicas pessoais e socioculturais tecidas no contexto contemporâneo. Uma formação sólida e aliada a pesquisa, que valorize os professores e possibilite que tenham plenas condições de tomar decisões (que não precisem receber “tudo pronto”), de superar a dimensão meramente técnica e operativa de determinado dispositivo ou software, favorecendo a apropriação de qualquer tipo de tecnologia (digital ou não) em suas experiências, tanto pessoais quanto profissionais, permitindo-lhes “[...] que se tornem autores de proposições, projetos e ações, sujeitos atuantes em sua comunidade, cidadãos que transformam a sua realidade social.” (BONILLA, 2012, p. 278).

De forma usual, muitas das tecnologias quando inseridas na escola são acompanhadas pelos termos “didático”, “pedagógico” ou “educacional” (livro didático, computador educacional, software pedagógico ou educacional, seriam alguns exemplos), como se essa designação fosse determinante para que essas tecnologias, incluindo as digitais móveis, tenham acesso ao ambiente escolar de modo legitimado, fazendo parecer que é necessário “organizá-las” de uma forma específica para atingir objetivos definidos (como em roteiros ou receitas prontas); como se fosse necessário “pedagogizar” essas tecnologias, embarcando as bases teóricas e conceitos nos equipamentos, para que elas alcancem uma diferente qualidade educacional. Neste caso, é obvio que programas de Governo voltados para a Educação nomeiem esses dispositivos, indicando a intencionalidade para o uso nas práticas educacionais. Entretanto, em uma perspectiva de Educação que valorize a criatividade, a participação e a autonomia, questionamos a utilização instrumental dos recursos computacionais, afirmando que a educação pode se dar em diversos contextos, utilizando diferentes tipos de práticas, valorizando os processos, estes sim verdadeiramente educativos e pedagógicos.

Com isso não estamos propondo a exclusão dos materiais didáticos/pedagógicos nas escolas (sejam softwares, livros, laptops). Eles são importantes e precisam também estar relacionados às práticas educativas. A questão não se resume a ser “educacional” ou “pedagógico”. O importante é perceber qual o tipo de educação pretendida com esses materiais e qual a qualidade deles. Neste caso, o risco seria incorrer em reducionismos, ficar “presos” a recursos que não atendem todas as realidades e especificidades, principalmente na contemporaneidade em que as diferenças são (ou deveriam ser) valorizadas e não uniformizadas.

Por essas razões é que reforçamos a defesa de que as tecnologias digitais devam manter sua natureza proposicional ao serem encaminhadas às escolas. Sobretudo, entendemos que esses dispositivos devam ter capacidade para atender à diversidade de práticas, inclusive pedagógicas, contemplando as necessidades individuais, a criatividade e os diferentes contextos escolares em que serão utilizados, e que dêem plenas condições para que alunos e professores sejam também autores e produtores de conhecimento, e não se limitem apenas a consumir recursos, sejam didáticos e/ou educacionais, produzidos em realidades outras. Por isso, de acordo com o exposto, e, em concordância com Pretto, compreendemos que “[...] todos os produtos científicos e culturais disponíveis na humanidade passam a ser didáticos no momento em que professores qualificados os utilizem nos processos formativos” (PRETTO, 2012, p. 97-98).