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4.1 TRADUZIR & ESTRANGEIRIZAR

4.1.4 O tipo de letra: como traduzir?

A seguir nos detemos em um aspecto estético da antipoesia, o tipo de letra. Como traduzir o tipo de letra? Traduzir os aspectos tipográficos está atrelado à poesia visual. Nos capítulos introdutórios comentamos algumas das obras de Nicanor Parra que estão entrelaçadas com uma apresentação da poesia que explora a imagem. Nesse capítulo vamos comentar alguns elementos estéticos da obra Sermones que exigem nossa reflexão ao momento de realizar sua tradução. Na antipoesia, o tipo de letra, seu tamanho e alguns símbolos são utilizados como elemento estético, e em algumas obras percebemos interferência da visualidade da publicidade e marketing. Em muitos títulos das obras de Nicanor Parra aparecem signos que não estão no alfabeto poético comum, podemos citar um um exemplo simples, o símbolo “&” em lugar do “y” que se utiliza em suas Obras Completas, somado a um “+” que se assemelha a uma cruz. Esse seria um exemplo ilustrativo do que acontece ao longo de décadas na antipoesia. Também em alguns antipoemas ocorre a utilização de caixa alta e letras maiúsculas, a disposição dos versos remete à poesia visual. Como vimos anteriormente, na apresentação da obra Sermones, a letra marca o tom de real apresentação de Cristo de Elqui. O texto está em itálico e marca a diferença com relação aos outros antipoemas, quando a voz poética já se pronuncia incorporando o personagem. Também os títulos da obra chamam a atenção, todos são números romanos, a única exceção é a apresentação que, como já dito, está em itálico. A tradução do tipo de letra, repercute na tradução da palavra e do antipoema como um todo. Abaixo um exemplo em Sermones:

XVI

9 ceremonias diabólicas nó cerimônias diabólicas nô

Nesse verso lemos a indicação do acento agudo na palavra “no” que não é acentuada em espanhol, com ênfase na negação. Na tradução colocamos o “no” com acento circunflexo, pois nesse verso vemos a intertextualidade com o teatro japonês Nô, que se caracteriza pelo uso de máscaras. A função do acento agudo no espanhol poderia ser vista como uma força prosódica, e uma vez colocado na vogal se indica uma força maior em sua pronúncia. Não optamos por traduzir agregando um signo de exclamação, uma vez que é um signo semelhante no português e no

espanhol, e que foi descartado pelo autor. O que acontece ao acentuar o “no”, é algo que escapa do padrão. Parra não finalizou o verso com exclamação. Por tanto, em nossa tradução, fazemos algo que também foge da norma, alteramos apenas a palavra com o acento “nô”, a relação com a intertextualidade com o teatro japonês ficará a cargo do leitor. O crítico Leonidas Morales, em seu artigo “Subversión y espectáculo: La antipoesía de Nicanor Parra”, comenta:

No que se refere aos signos, assistimos a renovada apelação ao recurso de intervir no código da língua com signos que pertencem a outro código. Ao código das matemáticas pertencem os signos “+”, “x” “-”, “%”: O importante é a canção / ou seja a causa /amigo valente / o de + é o de -.87

(MORALES, 2015, p. 36-50)

Em certa maneira, esse verso é composto também de imagem. Vimos nos capítulos anteriores a relação da antipoesia com a poesia visual. Na obra Sermones temos versos que se nutrem dessa característica da escrita antipoética para ir além da palavra, ao utilizar signos construídos para dar força à performatividade dessa obra. Se aqui, temos um texto escrito, ele está composto de elementos que marcam sua oralidade. Assim, esses elementos extra poéticos dão forma à leitura do verso e indicam o tom da fala, de sua leitura e, por conseguinte, sua tradução. Como assinala Artaud, a imagem incide fortemente na leitura:

A figura, o que consegue, é jogar um papel influente sobre o texto; isso acontece assim porque a leitura se desenvolve ao mesmo tempo que os olhos recebem estímulo informativo do seu desenho, que pode confirmar, ampliar, desviar inclusive, contradizer a mensagem.88 (ARTAUD,

1982, p. VI-VII)

87A nivel de los signos, asistimos a la renovada apelación al recurso de intervenir

el código de la lengua con signos que pertenecen a otro código. Al código de las matemáticas pertenecen los signos “+”, “x”, “-”, “%”: “Lo importante es la canción / o sea la causa / amigo valiente/ lo de + es lo de -. (MORALES, 2015, p. 36-50).

88 La figura, lo que consigue, es jugar un papel influyente sobre el texto; ello

sucede así porque la lectura se desarrolla al mismo tiempo que los ojos reciben el estímulo informativo de su dibujo, que puede confirmar, ampliar, desviar incluso contradecir el mensaje. (ARTAUD, 1982, p. VI-VII).

Nas Obras Completas & algo + (2011), no capítulo destinado ao livro Discursos de sobremesa, Parra transcreve textualmente os primeiros versos do poema “Todas as cartas de amor são ridículas” de Fernando Pessoa, segue abaixo a forma de apresentação parriana:

XXXVIII

RIDÍCULO VERDAD? Todas as cartas de amor são Ridículas

Não seriam cartas de amor se não fossem Ridículas

As cartas de amor, se há amor T m de ser

Ridículas

(PARRA, 2011, p. 802)

Como vemos, o til está acima da letra “e”, nas notas não se comenta este fato, não temos como saber com exatidão se esse foi um erro tipográfico, mas, considerando que está nas Obras Completas, e que essas foram revisadas pelos editores e pelo antipoeta, supomos que essa escolha foi intencional, assim como foi a acentuação na palavra nó em Sermones. Porém encontramos em uma tradução ao inglês de Dave Oliphant no livro After -Dinner Declarations (2009) que apresenta esse poema com o acento circunflexo, e não com o til. Resta saber, qual das edições cometeu o erro tipográfico, a da tradução, ou a mais recente, nas obras completas. Como disse anteriormente minha hipótese é de que o til foi intencional.

Marlene Gottlieb em seu artigo “La relación simbiótica autor/lector en la antipoesía de Nicanor Parra” comenta o poema de Fernando Pessoa transcrito pelo antipoeta, e aclara a estratégia antipoética:

Tem uma série de poemas nos quais o poeta ri do leitor, o engana ao estilo borgeano. Esse é o mecanismo de “Yo me sé tres poemas de memoria” e o “Poema XXI”. Os poemas apresentados por Parra baixo o título “Yo me sé tres poemas de memoria” não são poemas seus. São poemas de

poetas chilenos do princípio do século XX, que Parra reproduz textualmente, mas como o leitor os encontra em um livro de Parra, não presta atenção na declaração do título de que esses são poemas aprendidos de memória, e lê literalmente como se fossem antipoemas, com todas as características que espera do antipoema. Portanto, interpreta e reage perante esses poemas “antipoéticamente”.89

(GOTTLIEB, 1984, s.p.)

Como se pode visualizar nos comentários, a antipoesia convida a uma leitura que incita o leitor, e, uma vez que é antipoesia se autoriza a jogar com outros textos, os insere, faz paródias e pastiches, mecanismo que estabelece na leitura de seus versos a possível leitura e aproximação com outros poemas e autores. A tradução da antipoesia, portanto, vai exigir do tradutor uma leitura atenta e possivelmente a consulta a crítica e a mesma literatura.

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