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3.3 A multiplicação do olhar em O segredo de seus olhos: a escrita metaficcional como a-

3.3.3 Eu te vi todo em tua carta

Fique tranquila, minha velha, agora sou como Manfredini, e não como Babastro, diz Gómez. As cartas que Isidoro Gómez escrevera a sua mãe – e que foram ―roubadas‖ por San- doval quando ele e Benjamín investigavam o assassino de Liliana Colotto – a princípio, pare- ceram o enigma da esfinge para o Perry Mason portenho, uma vez que não havia endereço nem envelopes; ademais, quem, afinal, eram Manfredini e Babastro: ―Gente de Chivilcoy?‖, pergunta Benjamín a Sandoval, supondo que era como se Gómez soubesse que eles iriam ler as cartas dele.

De acordo com Jakobson (1995, p. 127), ―Sempre que o remetente e/ou destinatário têm necessidade de verificar se estão usando o mesmo código, o discurso focaliza o CÓDI- GO; desempenha uma função METALINGÜÍSTICA (isto é, de glosa) ―Não o estou compre- endendo – que quer dizer?‖

A indagação de Benjamín leva Sandoval a analisar o que as cartas querem dizer, co- meçando por eleger os elementos que constituem essas missivas:

[d]oze cartas, trinta e uma folhas em papel fino, mencionam cinco empregos: dois como operários, um como vendedor de verduras e dois sem detalhes. Três localidades fora de Buenos Aires: Monte Grande, San Justo e Avella- neda. Seis nomes próprios: Anido, Mesías, Oleniak, Manfredini, Babastro e Sánchez. Somente uma referência a uma mulher, uma tal de Rosa, que tudo indica ser uma tia, e nada mais. Você não tem nada mais.

De acordo com Bosi (2003, p. 462), ―interpretar é eleger (ex-legere: escolher), na messe das possibilidades semânticas, apenas aquelas que se movem no encalço da questão crucial: o que o texto quer dizer?‖ A resposta a essa indagação, no contexto do filme, está nas próprias cartas de Isidoro cujo discurso, ―como estratégia narrativa, revela o que há de mais íntimo, o espaço privado é exposto, desvendando os segredos de um eu singular.‖ (VALEN-

TIM, p. 28). Como que desafiado pela Esfinge de Tebas, Sandoval começa a entender por que não conseguem decifrar as cartas.

Sabe por que não conseguimos encontrá-lo (Gómez), Benjamín? Porque so- mos dois idiotas! [...] Então me perguntei: ―Como é possível não encontrar esse cara? Ele desapareceu, mas onde está? Então comecei a pensar nas pes- soas, mas em todas as pessoas. Não só nessa em especial. Então pensei em como é esse cara. As pessoas fazem qualquer coisa para ser diferentes. Mas há uma coisa que não podem mudar nem ele, ou eu, ou você... ninguém. O- lhe para mim... sou um cara jovem! Tenho um bom trabalho, uma mulher que gosta de mim e, como diz você... continuo estragando minha vida em lu- gares como este165. Uma vez você me perguntou: ―O que fazes aqui, Pablo?‖

Você sabe por quê, Benjamín? Porque é uma paixão minha. Eu gosto de vir aqui, ficar bêbado... brigar com alguém que me incomode... eu gosto disso! Com você é a mesma coisa, Benjamín. Você não consegue tirar Irene da ca- beça. Mas ela realmente tem vontade de casar... provavelmente tem mais de trinta e sete revistas de vestidos de noiva na sua mesa. Ela ficou noiva, com festa e tudo mais. Mas você... você ainda está esperando um milagre, Ben- jamín. Por quê? Venha.

Dito isto, Sandoval leva Benjamín até o balcão do bar em que estavam, apresenta-lhe o Tabelião Andretta, a quem ele chama de assessor técnico. Em seguida, diz que irão ver a carta do ―nosso amigo‖ Gómez, provavelmente uma estratégia para não revelar aos ―compa- nheiros de copo‖ a investigação que faziam. À medida que vai lendo os fragmentos da escrita epistolográfica, o ―assessor técnico‖ age como um intérprete, um mediador cuja ―linguagem lembra a do tradutor de uma língua para outra, ou, melhor ainda, a de um músico que domine a arte sutil de transpor melodias de um instrumento para outro‖ (BOSI, p. 477). Vejamos as melodias/cartas e a transposição/interpretação delas:

[j]uro que com tanta chuva acabei pior do que Oleniak, naquela vez – Tabe-

lião, por favor – diz Sandoval.

―Juan Carlos Oleniak, começou a jogar no Racing nos anos 60. Em 62, pas- sou para o Argentinos Juniors, em 63 voltou ao Racing. Num clássico com o San Lorenzo lhe deram um empurrão, e caiu de cabeça no fosso. Saiu todo molhado!‖

Uma coisa séria: aqui o chamamos de Platão porque vive na Academia166

diz Sandoval fazendo piada; em seguida, continua com a leitura das cartas:

Eu quero lhe trazer, mamãe. Vamos fazer uma bela dupla, como Anido com Mesías. – Doutor, fala Sandoval, esperando a ―tradução‖.

165 Sandoval estava num bar próximo ao local de trabalho, no horário do expediente, tomando um uísque e deci-

frando as cartas.

166 Racing Club de Avellaneda, um dos cinco grandes clubes da Argentina, também apelidado de La Academia.

Disponível em: http://www.guardian.co.uk/football/blog/2010/mar/23/secret-of-their-eyes-oscar-argentina. A- cesso em: 27 jan 2013.

―Anido e Mesías, defensores do Racing, campeão de 61. Depois Blanco, Pe- ano e Sacchi, Corbata, Pizzutti. Mansilla, Sosa e Belén.‖

Fique tranquila, mamãe. Nisto, sou como Manfredini e não como Babastro. –Tabelião?, diz Sandoval.

―Pedro Valdemar Manfredini. Foi comprado do Mendoza por 2 pesos e de- pois acabou sendo um jogador extraordinário para sua época... incrível! Ba- bastro, ponta-direta. Começou a jogar entre 62 e 63 sem fazer nenhum gol.‖

Não quero terminar como Sánchez. – A que se refere, doutor?

―Com certeza se refere ao goleiro Ataulfo Sánchez... eterno reserva do gran- de Negri. Ele jogou somente dezessete partidas entre 57 e 61.‖

Tabelião, o que é o Racing para o senhor? ―É uma paixão, meu amigo.‖

Mesmo que não vença há nove anos?, questiona Sandoval. ―Uma paixão é uma paixão‖ – sentencia o tradutor.

Sandoval, como se desse o tiro de misericórdia, olha para Benjamín e diz: ―Enten- deu? As pessoas podem mudar de tudo: de casa, de cara, de família... namorada, religião, de Deus. Mas tem uma coisa que não se pode mudar, Benjamín. Não se pode trocar de paixão.‖

A inserção desse intertexto em O segredo de seus olhos mostra-nos que as cartas de Isidoro se espelham ―no desejo de estar junto [Eu quero lhe trazer, mamãe. Vamos fazer uma bela dupla, como Anido com Mesías.] (...), na constante troca de opinião, nas sugestões con- testadas ou aceitas. [Fique tranquila, mamãe. Nisto, sou como Manfredini e não como Babas- tro]. O ‗outro‘, no diálogo epistolar, concorre muitas vezes para a realização artística, funcio- nando como termômetro da criação.‖ (MORAES apud VALENTIM, p. 56).

E, mais do que uma tentativa de despistar a polícia, as cartas cifradas de Isidoro ―‗precisam a circunstância‘ da criação‖ – afinal, ele temia ser preso pelo assassinato de Lilia- na –, além disso, essa escrita cifrada possibilitou ―a experimentação lingüística e o desvenda- mento confessional‖ (MORAES apud VALENTIM, p. 56), de um personagem que, tal como Benjamín, também é ―escritor‖.

Como experimentação linguística e desvendamento confessional, o signatário das cartas constrói um texto em que ele próprio parece se colocar como o décimo segundo joga- dor/defensor do time pelo qual é apaixonado, além de massagear o próprio ego comparando- se a Manfredini que, embora comprado ―por pouco mais ou nada‖, tornou-se um jogador ex- traordinário: ―Fique tranquila, mamãe. Nisto, sou como Manfredini e não como Babastro‖.

Ambicioso e não querendo ‗terminar como Sánchez‖, Isidoro parece pré-ver o próprio futuro: de vendedor de verduras a segurança da presidente María Estela Martínez de Perón!

De acordo com Valentim (p. 54, grifos da autora), a troca epistolar ―configura-se como um ver por dentro, pois a escrita num gênero confessional contribui para a construção de uma personalidade ou até mesmo uma identidade.‖ Essa construção revela-nos como o sujeito-signatário, no caso Isidoro, deseja ser visto, quer seja por sua leitora-destinatária (mãe), quer seja por outros leitores (investigadores, leia-se Benjamín e Sandoval) da recolha epistolográfica (VALENTIM, p. 55). A aparência exígua, de ―pigmeu, micróbio‖ – adjetivos a que Irene associa Isidoro, por ocasião do interrogatório, a fim de provocá-lo e fazer-lhe con- fessar o crime – não condiz com a personalidade esperta e violenta do algoz de Liliana Colot- to.

A perspectiva em abismo de que falamos anteriormente, de um texto dentro de outro, ou seja, das cartas de Isidoro dentro do romance/filme de Benjamín/Campanella dá coesão à narrativa, pois a coerência do romance depende desse recurso epistolar; afinal, como seria possível traçar o perfil do criminoso e capturá-lo? Grosso modo, e parodiando Dällenbach (p. 75), ―Aqui, ―a obra dentro da obra‖ convida a interpretar o destino do protagonista‖; no caso das cartas, o destino do antagonista. Quanto ao destino do protagonista, leia-se Benjamín Es- pósito, ele se constrói à medida que o personagem-escritor vai revelando o seu fazer literário e (per)seguindo a resposta a ―Como se faz para viver uma vida cheia de nada?‖.

Em O segredo de seus olhos, tudo parece concertado para dar à vida de Benjamín Espósito a dimensão de sentido que ele, até então, ignorava. Nessa empreitada, Campanella dá visibilidade a um aposentado, aos seus desejos, permite-lhe ―despejar impressões e vivências excessivamente pessoais‖ (SACHERI, p. 15); permite-lhe fabular ―que faço com as partes da história das quais não fui testemunha direta, aquelas partes que intuo, mas não conheço os detalhes? Conto-as do mesmo jeito? Invento-as de cabo a rabo? Ignoro-as?‖ (SACHERI, p. 15).

Através do recurso poético da narrativa metaficcional, a narrativa possibilita ao homem comum sair da zona de conforto, do lugar das certezas de uma condição limitadora, a de sujeito aposentado, ―improdutivo‖. Benjamín adentra em outro território: o da fabulação, e inventa uma realidade que o ajuda a viver e a sentir quem ele é (BAUDELAIRE, 1937). Dar visibilidade ao cotidiano de um aposentado é o modo de ser de O segredo de seus olhos é. É nisso que reside a ação política do filme.