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3 DOCUMENTOS PARA UMA BIOGRAFIA NÃO

3.2 MATILDE, MARIA E POMPEU: REESCRITA(S) DE VIDA(S)

3.2.3 Tomás Pompeu de Acioli Borges

Tomás Pompeu Acioli Borges é o remetente mais assíduo de Jorge Amado. Ao total, são 13 cartas manuscritas em tinta preta, das quais 23 páginas são em formato A4 e outras seis páginas são de escritos frente e verso em três cartões de visita. Sua correspondência inteira é de 1942, o que se torna mais um dado para confirmar que em 1941 Jorge Amado morou em Buenos Aires, já que esse era o local de residência de Pompeu, tradutor simultâneo para o espanhol de Vida de Luís Carlos Prestes, el Caballero de la Esperanza. Ou seja, no tempo de escrita da biografia os dois moravam na mesma cidade, após Jorge mudar-se para o Uruguai, Pompeu manteve-se na capital Argentina.

A primeira carta do Acervo de Pompeu para Jorge Amado data de 17.04.42 e a última de 21.08.42. Foi a assiduidade de envios desse remetente que me permitiu notar que a correspondência entre Montevidéu e Buenos Aires, da postagem à entrega, poderia chegar em apenas dois dias a seu destino, considerando-se, por exemplo, as cartas de 18/05 e 20/05, que demonstram claramente se tratarem de um diálogo contínuo, quero dizer, 20/05 não é um “adendo”, mas uma resposta à correspondência de Jorge Amado, provavelmente enviada no mesmo dia de recebimento das anotações de 18/05.

“Pompeu”, “Pom” “Campeão”, “P”, “C” é uma das menções mais recorrentes no arquivo, ele é citado por diversas vezes e por distintos companheiros nas cartas do Acervo. Além de Amado, foi quem mais esteve inteirado do conteúdo da biografia laudatória, parte a parte, capítulo a capítulo, pois foi oficialmente responsável por traduzí-la. Pompeu assinou contrato com a Editora Claridad como tradutor e, inclusive, conversou com Jorge Amado sobre diversas questões de ordem prática dessa obra, como os honorários, edição e comercialização. Ou seja, esteve intimamente ligado a Jorge Amado nesses anos de 1941 e 1942, mas, contudo, quando procurei-o em menções no livro memorialístico de Jorge Amado não o encontrei, “Tomás Pompeu de Acioli Borges” não foi mencionado uma única vez em Navegação de

Cabotagem, uma sequer. “O que nesse caminho se perdeu?” questionei a mim mesma.

Cogitei “afastamento do período do primeiro exílio” por parte de Jorge Amado, não procedeu, pois Ivan Pedro Martins foi citado três vezes ao longo de Navegações, por exemplo. Cogitei “rompimento pós Maria”, não procedeu, pois nove correspondência se sucederam depois que Pompeu informou a Jorge Amado sobre o seu relacionamento com ela. Cogitei “insegurança de Pompeu, e tentativa de afastamento, devido a uma ‘preservação’ de sua união com Maria”, não procedeu porque Pompeu insistiu inúmeras vezes que esse episódio não interferisse na relação entre os dois. Cogitei “morte prematura de Pompeu, que abalou Jorge Amado a ponto de fazê-lo querer se esquecer do amigo”, não procedeu porque Tomás morreu somente em 1986, no Brasil, ainda marido de “Maria Cruz Borges”.

Até que me dei conta: “foi pr’o cemitério pessoal, coitado!”: Tenho horror a hospitais, os frios corredores, as salas de espera, antessalas da morte, mais ainda a cemitérios onde as flores perdem o viço, não há flor bonita em campo-santo. Possuo, no entanto, um cemitério meu, pessoal, eu o construí e inaugurei há alguns anos quando a vida me amadureceu o sentimento. Nele enterro aqueles que matei, ou seja, aqueles que para mim deixaram de existir, morreram: os que um dia tiveram minha estima e a perderam.

Quando um tipo vai além de todas as medidas e de fato me ofende, já com ele não me aborreço, não fico enojado ou furioso, não brigo, não corto relações, não lhe nego o cumprimento. Enterro-o

na vala comum de meu cemitério – nele não existem jazigos de família, túmulos individuais, os mortos jazem em cova rasa, na promiscuidade da salafrarice, do mau-caráter. Para mim o fulano morreu, foi enterrado, faça o que faça já não pode me magoar.

Raros enterros – ainda bem! – de um pérfido, de um perjuro, de um desleal, de alguém que faltou à

amizade, traiu o amor, foi por demais interesseiro,

falso, hipócrita, arrogante – a impostura e a presunção me ofendem fácil. No pequeno e feio cemitério, sem flores, sem lágrimas, sem um pingo de saudade, apodrecem uns tantos sujeitos, umas

poucas mulheres, uns e outras varri da memória, retirei da vida.

Encontro na rua um desses fantasmas, paro a conversar, escuto, correspondo às frases, às saudações, aos elogios, aceito o abraço, o beijo fraterno de Judas. Sigo adiante, o tipo pensa que mais uma vez me enganou, mal sabe ele que está morto e enterrado. (AMADO, 2006, p. 15, grifos meus).

É essa, enfim, a única justificativa que encontro para explicar o motivo da ausência de Pompeu na narrativa de vida de Jorge Amado e, mais do que isso, na narrativa que o próprio escritor empreendeu em Navegação de Cabotagem. Não consigo, a partir de sua presença no Acervo, propor outra explicação além do fato de ele ter ido para a “vala comum” do cemitério de Amado, porque foi “além de todas as medidas”. Essa morte tem início, a meu juízo, pouco tempo antes de 18 de maio de 1942, data em que Pompeu conta para Jorge sobre o seu casamento com Maria:

Figura 42 - Excerto de correspondência de Pompeu Borges para Jorge Amado 1

Fonte: Acervo Mala de Jorge Amado.

“Vou fazer-lhe uma revelação, que muito o surpreenderá” inicia, como visto, a correspondência que pretende cumprir com os “deveres de companheiro e amigo franco e leal.” Esse é o “tom” de Acioli Borges ao longo de suas cartas, isto é, continuamente, procura reafirmar seu compromisso de amizade e honradez, não somente em relação ao

envolvimento “honesto” com Maria, mas, de modo geral, com todas as questões que os cercam.

Acima mencionei que essa “morte” teve início pouco antes de 18/05 e digo isso devido a uma carta posterior de Pompeu, que dá a entender que a resposta de Jorge Amado à mensagem da “revelação” foi a de que ele já soubesse dos fatos poucos dias antes da carta. “Meu propósito era justamente evitar que você viesse a saber por terceiros, nem sempre muito honestos na interpretação de nossas intenções”, respondeu Pompeu na correspondência do dia 20/05/42. Ocorre, ainda, que apenas duas pessoas sabiam desse relacionamento, segundo o próprio Tomás informa a Jorge Amado: Pedro Mota Lima e Carmem Ghioldi. Em vista disso, ou algum desses amigos contou ao escritor sobre o envolvimento de Maria e Pompeu ou, em uma situação muito típica da sociedade patriarcal, ao ler a carta de Pompeu, Amado começou a fabular a existência desse relacionamento antes mesmo de ocorrer. Assim, ao estilo Bentinho, condenou Capitu, matou Escobar e virou Casmurro.

E, nesse contexto, é pertinente dizer, foi Jorge Amado quem rompeu o relacionamento com Maria (informação que depreendo das correspondências), mas, mesmo assim, Pompeu sempre esteve à espera da aprovação do amigo. Em uma carta de resposta, em que Amado, a princípio, coloca-se favorável à união do casal, Tomás lhe escreve: “[...] amo a Maria muito mais do que ela me pode querer e mesmo do que venha algum dia a querer-me. Me contentaria com que ela gostasse de mim, como gostou de você. E isso, de qualquer modo, lhe deve ser agradável de ouvir de meus lábios”:

Figura 43 - Excerto de correspondência de Pompeu Borges para Jorge Amado 2

Fonte: Acervo Mala de Jorge Amado.

Fica evidente a discrepância entre o discurso de Pompeu e o de Maria, visto na seção anterior. Se Maria se mostrou uma personagem autêntica, determinada e insubordinada, Tomás Pompeu, por outro lado, incorpora o papel de subserviente, submisso e com baixa autoestima. E, ainda sobre a “aprovação” de Jorge Amado (2006, p. 15) vale a lembrança: “Quando um tipo vai além de todas as medidas e de fato me ofende, já com ele não me aborreço, não fico enojado ou furioso, não brigo, não corto relações, não lhe nego o cumprimento”.

Especulando sobre a sua personalidade, particularmente, chamou minha atenção os inícios e os términos de suas cartas. Sob essa ótica, leio Accioli Borges como um personagem fraterno e gentil, que procurava preservar seus relacionamentos. Ilustro: i) 17/04/42: “Meu caro Jorge [...] um grande abraço do Pompeu”; ii) 27/04/42: “Prezado Jorge [...] Um abraço do Pompeu”; iii) 06/05/42: “Meu caro Jorge [...] Um grande abraço do Pompeu”; iv) 18/05/42: “Caro Jorge [...] receba um grande abraço do Pompeu”; v) 20/05/42: “Caro Jorge [...] receba um grande abraço do Pompeu”; vi) 22/05/42: “Meu caro Jorge [...] um grande abraço do seu amigo Pompeu”; vii) 26/05/42: “Meu caro Jorge [...] Abrace os

amigos e receba outro do amigo Pompeu”; viii) 1º/06/42: “Meu caro Jorge [...] um grande abraço do Pompeu”; ix) 08/06/42: “Caro Jorge [...] um abraço do Pompeu”; x) 30/06/42: “Meu caro Jorge [...] um abraço do amigo Pompeu”; xi) 07/07/42: “Meu caro Jorge [...] receba um grande abraço do amigo Pompeu”; xii) 24/07/42: “Meu caro Jorge [...] Aceite um afetuoso abraço do amigo velho Pompeu”; xiii) 21/08/42: “Meu caro Jorge [...] um grande abraço para você do Pompeu”.

É nesse contexto genuíno de manutenção de laços e relações, que interpreto os compartilhamentos desse que foi o tradutor da biografia de Prestes. Assim, leio suas cartas como materializações de uma conversa entre compadres (pelo menos, da parte dele), contando novidades e informações das mais variadas natureza. Uma delas, em especial, é a do dia 07/07/42, na qual Pompeu se compadece pela situação financeira de Jorge Amado, comenta questões concernentes à biografia e discorre acerca das “Novidades do Brasil”, segundo ele “A notícia mais sensacional destes últimos meses”. O episódio em questão se refere ao dia em que Filinto Müller tentou proibir uma manifestação pró-Aliados, sob organização da União Nacional dos Estudantes:

Figura 44 - Excerto de correspondência de Pompeu Borges para Jorge Amado 3

Fonte: Acervo Mala de Jorge Amado.

Como visto, Pompeu descreve40 a queda de Müller, a qual

festejavam “bebendo muito vinho e gritando em coro: E para o Filinto

40 “No dia 20 do mês [??] os estudantes quiseram realizar a passeata [???????] no dia 4 deste. O Felinto proibiu. Aqueles novamente se moveram para que a mesma se realizasse no dia 27. O Felinto, pela segunda vez, se opôs. A rádio Berlin, então decidiu que o Brasil seria passível de graves represálias se continuassem a insultar a Alemanha, acrescentando que felizmente o chefe da polícia proibira o desfile estudantil. O Amaral**, indignado, vai ao Getúlio e insiste pela permissão para os estudantes saírem à rua. O Getúlio dá a ordem. O Felinto, que ficou com a “bezoura” teve, a propósito, uma tremenda discussão com o atual Ministro da

nada? Nada!”. Müller foi quem executou a ordem de deportação de Olga Benário para a Alemanha nazista, onde foi morta num campo de concentração de Bernburg, na câmara de gás; também esteve sob sua responsabilidade a prisão de Luís Carlos Prestes, em 1936, no Rio de Janeiro.

Por fim, compartilho um excerto da última correspondência encontrada desse remetente no Acervo com intuito de abrir o próximo, e último, tópico de discussão deste capítulo: o processo criativo do romance Terras do Sem Fim:

Figura 45 - Excerto de correspondência de Pompeu Borges para Jorge Amado 4

Fonte: Acervo Mala de Jorge Amado.

Como se vê, Jorge Amado compartilhava com seu entorno informações acerca de sua produção literária, mas mais do que isso, essa passagem oferece um pertinente dado a respeito da elaboração do romance, ele foi concluído no Uruguai: “Parabéns por tê-lo terminado”, escreveu o morto, e leal amigo, Tomás Pompeu Acioli Borges.

Justiça Negrão de Lima***, chegando a insultá-lo gravemente. O Negrão dá-lhe ordem de prisão. Posteriormente, o Getúlio demite o Felinto, que continua preso (!!!). Isso ocorreu nos dias 3 e 4 deste. A notícia veio de três fontes distintas, todas dignas de crédito.” (grifos dele).