• Nenhum resultado encontrado

O momento do brincar terminou repentinamente com o anúncio da professora de que tinha chegado a hora de tomar café. Enquanto as demais crianças se organizavam na mesa, Anita continuou brincando com um bicho de pelúcia, revelando ainda estar imersa em uma situação de fantasia. O tempo cronológico, da rotina do relógio é diferente do tempo da fantasia, da criação, do imaginário, da imersão nesse mundo de (re)significações.

Nessa perspectiva é que as brincadeiras das crianças subvertem a ordem e se constituem como possibilidade de experiência, dialogando com os processos de subjetivação e dessubjetivação:

As crianças criam formas de brincar, reconfiguram as situações e as transportam para si. Como observado nas cenas apresentadas, elas usam os materiais e os brinquedos de outras formas, a exemplo dos livros que viraram tijolos; burlam a vigilância e escapam dos castigos que proibiam o brincar, indo para o escorregador; esquivam-se dos olhares vigilantes, adaptando-se para que a brincadeira aconteça; transtornam as filas, achando maneiras de produzir seu próprio universo lúdico nelas (PERPÉTUO, 2016, p. 78).

Após o lanche, a ida ao banheiro para se higienizarem revelou outros diálogos entre as crianças do grupo:

Temos duas questões interessante registradas nessa passagem do diário de campo, ou seja, uma pedagogia engendrada pela/na arquitetura escolar que educa para as sexualidades e os aspectos de gênero, bem como, o enfrentamento de Tarsila quando problematiza a fronteira menino/menina marcada no discurso da criança do maternal. A geografia do espaço As crianças se direcionam aos banheiros, que são classificados/divididos por sexo - de meninos e banheiro de meninas. No meio do caminho, uma criança da turma do maternal (que não faz parte do grupo pesquisados) abordou Tarsila e disse que sua touca era de menino porque tem um carrinho. A própria Tarsila prontamente respondeu: “minha tia é menina e ela também dirige carro, não é só menino não”.

44

institucional revela estratégias de dominação, de controle e de imposição de verdades, tal como afirma Fábio P. G. Reis (2016, p. 59):

A distribuição geográfica das salas, do pátio, da sala do/a diretor/a é estrategicamente pensado para garantir obediência das crianças e aperfeiçoar a utilização do tempo. Com isso, a instituição de Educação Infantil cria espaços funcionais e hierárquicos, visando organizar a multiplicidade, dominar as diversidades e arrebatar as diferenças. Assim, o corpo passa a ser separado, dividido, uniformizado, agenciado, investigado em cada singularidade.

De fato, a existência de banheiros separados por sexo (o que não é natural, pois essa separação foi historicamente construída) acaba reproduzindo o discurso normativo sobre as diferenças sexuais e o contato entre os diferentes. Isso, no contexto da Educação Infantil, implica em um olhar sexualizado do adulto sobre a criança, uma vez que o uso do mesmo espaço poderia “corromper” os valores sociais, instalando o pânico moral.

Laila Zorkot (2015) destaca que categorias como a sexual e a de gênero têm sido muito discutidas, visto que esbarram na demanda atual do discurso da heterogeneidade decorrente de lutas e indagações de vários sujeitos da sociedade, tais como: movimento negro, movimento das Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros (LGBT) e, principalmente, o movimento feminista. Salienta também que no âmbito educacional, o tema merece espaço, uma vez que instituições escolares se veem o “tempo todo em meio às diversidades. Na atualidade, as diversidades sexual, de gênero e etnia têm sido alvo de debates por estarem, com certa constância, nas discussões produzidas pela mídia” (ZORKOT, 2015, p. 84).

É preciso compreender a singularidade do universo infantil para que possamos pensar as ações pedagógicas, os espaços e tempos escolares na perspectiva das crianças. Para tanto, a Pedagogia das Infâncias começou a ganhar território científico a partir da oferta e do direito à educação de crianças de 0 a 5 anos de idade. Foi inevitável, por exemplo, maior atenção das universidades no que se refere ao currículo de formação dos/as professores/as para a Educação Infantil. Acerca disso, Ana Lúcia Goulart de Faria (apud GONÇALVES, 2014) elucida que:

[...] o ingresso das crianças de seis anos no Ensino Fundamental trouxe profundas transformações na escola e no sistema de ensino, implicando modificações, também, na formação docente. Para a autora, aspectos já discutidos acerca do trabalho pedagógico na Educação Infantil, como as questões de infraestrutura e da organização do espaço físico, que envolvem uma pedagogia da escuta, uma pedagogia das relações, uma pedagogia das diferenças, podem ser construídos (p. 529).

45

A Educação Infantil é um segmento da educação básica que possui suas especificidades, dimensões de uma atuação profissional especializada e alinhada à pedagogia das infâncias. Pedagogia essa compreendida na “sua construção em relação às infâncias de forma a revelar uma pedagogia diferente da pedagogia clássica, buscando desvendar as origens da desigualdade” (CHAUI apud FARIA e FINCO, 2011, p. 3).

Ao retomar a divisão física dos banheiros na instituição, afirma-se que os discursos naturalizados que estabelecem fronteira entre menino/menina estão presentes desde antes do nascimento da criança. Atualmente presenciamos os chás de revelação, isto é, uma festa para revelar o sexo do bebê e, junto disso, as expectativas da família a partir de tal descoberta. De um lado, decorações em tons de azul representando o sexo masculino, de outro, o rosa representando o nascimento do bebê do sexo feminino. Além disso, temos os brinquedos, as vestimentas, as profissões e outros diversos artefatos que endossam o argumento do enquadramento social.

Daniela Finco (apud SILVA, 2017, p. 74) aponta que é necessário descontruir a lógica “binária na apresentação do mundo para as crianças: enquanto os brinquedos e brincadeiras estiverem sendo associados a significados masculinos e femininos, que hierarquizam coisas e pessoas, estaremos apresentando a meninos e meninas significados excludentes”. A autora complementa que é muito frequente, ainda, que “meninos e meninas, ao demonstrarem comportamentos não apropriados para seu sexo, causem preocupação e sejam motivo de incômodo e dúvidas para profissionais da Educação Infantil” (idem, p. 75). Esse desconforto pode gerar, inclusive, o encaminhamento da criança ao psicólogo.

Determinados assuntos, ditos como tabu para grande parte das professoras que estão cotidianamente em contato com as crianças, podem ser facilmente identificados em eventos e nos diversos meios nos quais elas se inserem. Muitos discursos preconceituosos e opressores são enraizados e naturalizados por esses pequenos que não têm escuta para que suas dúvidas e curiosidades sejam respondidas. Na medida em que as crianças não seguem o que é pré- determinado para cada sexo, mostram que a instituição pode apresentar uma característica positiva quanto às formas dessas relações, sendo um espaço de possibilidades e de (des)construção dos sujeitos (SILVA, 2017). É importante que a docente que trabalha na Educação Infantil reconheça esse potencial, para, desse modo, repensar sua prática educativa.

De acordo com Maria Letícia Barros Pedroso Nascimento (2011, p. 41):

As crianças pertencem a diferentes classes sociais, ao gênero masculino e feminino, a um espaço geográfico onde residem, à cultura de origem e a uma etnia, em outras palavras, são crianças concretas e contextualizadas, são

46

membros da sociedade; atuam nas famílias, nas escolas, nas creches e em outros espaços, fazem parte do mundo, o incorporam e, ao mesmo tempo, o influenciam e criam significados para ele.

Como foi exposto, Nascimento (2011) também considera que nesses ambientes podem aparecer tensões e reflexões no que concernem as identidades e as diferenças, pois as crianças como construtoras da história e da cultura, (re)significam o mundo e os espaços que ocupam. Essa ocupação se dá em meio das relações de poder, ao passo que as expressões das crianças passam a ser inseridas em um campo político.

A fila utilizada pela professora para ir ao banheiro, ao refeitório e voltar à sala de atividades, por exemplo, é um exemplo dos vários mecanismos de controle dos corpos e comportamentos dos pequenos. É comum termos filas para tudo o que se vai fazer no interior da Educação Infantil, justamente porque essa prática compõe parte do processo de escolarização baseado em obediência, silêncio, apatia e opressão.

Perpétuo (2015) ressalta que pôr em fila permite escrutinar e tornar mais eficientes o tempo, o deslocamento e o controle sobre os corpos, acionando as técnicas para docilização da carne e da alma. Esse controle exercido nos espaços da instituição, e por ela, faz com que as crianças aprendam os lugares institucionalmente autorizados e os que não são. São constatações que fazem atribuir à fila uma imagem de “cerca”, criadora de limites imaginários que pretendem dividir os corpos.

Ao impedirem as crianças de serem o que são, Daniela Finco e Ana Lúcia Goulart de Faria (2011, p. 6) elucidam que:

A construção social das identidades infantis pode ser vista como um processo de negociação constante por aquilo que constitui o social e a maneira como as identidades são construídas dentro de uma cultura eminentemente em movimento e em confronto. Assim, rejeitar as narrativas tradicionais de certeza, controle e domínio significa rejeitar a arrogância da certeza teórica.

O poder disciplinar institucionalizado busca controlar os tempos pedagógicos de interação e brincadeiras, porém, essa questão vai além, como pode ser constatado na passagem abaixo:

47

No tempo em que as crianças ficaram à mesa após terminarem o lanche esperando até que a professora chegasse, buscaram (re)significar os objetos que estavam na posse delas para criarem brincadeiras e se movimentarem. Criança é movimento, é brincar, é criar e interagir.

Ao retornarem à sala se posicionaram em roda para cantar a música de “Bom Dia!”, conversando sobre o dia da semana e o do mês, desenvolvendo “brincadeiras” com finalidade de se apropriarem de conhecimentos numéricos. A roda, ao mesmo tempo que é uma posição em que todas as crianças podem se olhar, também pode servir de estratégia de gerenciamento corporal, haja vista que a professora consegue identificar tudo o que está acontecendo.

Figura 6 – Crianças na rodinha

Fonte: Do autor (2019).

É necessário frisar que não nos cabe valorar de maneira simplista sobre o que é certo ou errado, julgando a profissional da instituição. A abordagem problematizadora que adotamos visa ampliar olhares e trazer questões outras que permeiam o dito e o não-dito no cotidiano da Educação Infantil. Foi o que buscamos fazer intermediados pelos relatos em questão.

Do outro lado da mesa, Lasar e Anita direcionam-se ao filtro para beber água. A cantineira que passava por ali, depois de aproximadamente 3 minutos as surpreende ao dizer que as crianças “estavam fazendo hora”. Elas aproveitaram a presença da cantineira no refeitório para perguntar se teria pula-pula no evento do dia seguinte. Ela afirmou que não sabia e, mesmo assim, Anita sussurrou que iria “pular lá no alto”.

Às oito horas e quatorze minutos as crianças terminaram o lanche e permaneceram à mesa brincando com gorros e um cachecol, uma jogando para a outra. Oito horas e vinte minutos foi o horário que a professora chegou e logo Lasar exclamou: “Olha, a – nome da professora – chegou!”.

48