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TORPOR E IMPOTÊNCIA: MEMÓRIA DO QUE RESTOU NÃO SENDO

19 Agamben, op.cit., p 128.

C) TORPOR E IMPOTÊNCIA: MEMÓRIA DO QUE RESTOU NÃO SENDO

“Medianoche en el mundo” Antonio Berni, 1937

O entorpecimento animal com que o cronista esgunfiado recolhe e contempla sua coleção de resíduos e de escombros na paisagem exprime sua impotência diante do mundo. Expressa não apenas o assombro de estar exposto à insensatez do mundo, mas também a estupefação de estar acorrentado a ele. Ao ruminar seu torpor, o narrador transmuta o sarcasmo em melancolia e à medida que arrasta sua modorra, esvazia seu corpo e se expõe cada vez mais expropriado de sua capacidade de agir.

Ao falar das gravuras de Goya, Arlt remarca o hábito melancólico do artista que caminhava com os olhos voltados para o chão, arrastando o olhar sobre o solo e farejando as histórias de uma “Espanha negra” que viria a registrar. A melancolia desse gesto se manifesta pela lembrança da reflexão de Benjamin a respeito do “saturnino”, aquele que é governado pelo planeta Saturno e convocado por ele à vida interior, a uma imersão perigosa que pode levar ao abismo e à loucura: “o olhar voltado para o chão caracteriza o saturnino, que perfura o solo com seus olhos”.1

O pintor teria sucumbido à circunspecção destrutiva e seu faro suíno o teria conduzido ao delírio e à loucura, culminando com a fúria da série de “pinturas negras” com que decorou a Quinta del sordo entre 1820-24, e na qual se destacam a impiedosa cena de Saturno devorando seu filho e a desoladora imagem do cão encoberto até o pescoço, com os olhos suplicantes em uma paisagem absolutamente esvaziada.2

O cronista, por sua vez, tampouco conseguiria reunir à concentração melancólica o “aspecto positivo” que a tornaria motivo de “elevação espiritual” e não mais de delírio e loucura.3

Mas sua

1 W. Benjamin, A origem do drama barroco alemão, 1984, p. 175.

2 “Saturno devorando su hijo” (pintura a óleo sobre reboco); e “Perro semihundido” (pintura a

óleo sobre reboco). Segundo Robert Hughes, “o anseio aterrorizado daquele cachorro por segurança e por seu dono ausente é a miséria do homem num mundo sem consolo, do qual Deus se retirou.” (R. Hughes, op.cit., p. 445).

3 Segundo o estudo de Benjamin, as teorias sobre o melancólico-saturnino diziam que,

combinada com a influência de Júpiter, a concentração melancólica poderia se tornar benéfica, permitindo ao saturnino uma elevação espiritual. A gravura de Albert Dürer, Melencolia (1514), simbolizaria esses dois aspectos da contemplação na figura do cão que ocupa o primeiro plano da imagem: como um animal dominado pelo órgão que produz a bílis negra, o

melancolia não encerra uma perda pessoal e interior dos sentidos, um desajuste emocional que o desconecta do mundo ordenado e razoável. Sua contemplação melancólica se apresenta como uma abertura para a percepção sensível, pasmosa, do sem sentido, como um furo que faz vazar lentamente o ar enquanto alguém tenta, inutilmente, preencher o vazio de um balão. Não há aonde chegar, não há fim a alcançar. O dono do sopro restará, cedo ou tarde, exaurido e o balão se abandonará seco. O cronista contempla cansado, esgotado, os infrutíferos intentos de encher o vazio da História como progressão linear e repleta de sentido. Coleciona as sobras que restam para fora dessa linha e que a desalinham.

Analisando o drama barroco alemão, Walter Benjamin diz que as ruínas são a alegoria da história como processo de inevitável declínio, devido à sua sujeição às forças indômitas da natureza, que sempre esteve, por sua vez, sujeita à morte:

Quando, com o drama barroco, a história penetra no palco, ela o faz enquanto escrita. A palavra história está gravada, com os caracteres da transitoriedade, no rosto da natureza. A fisionomia alegórica da natureza-história, posta no palco pelo drama, só está verdadeiramente presente como ruína. Como ruína, a história se fundiu sensorialmente com o cenário. Sob essa forma, a história não constitui um processo de vida eterna, mas de inevitável declínio. Com isso, a alegoria reconhece estar além do belo. As alegorias são no reino dos pensamentos o que são as ruínas no reino das coisas. Daí o culto barroco das ruínas.4

Eugenio d‟Ors também destaca as ruínas como cenários privilegiados pela arte barroca; segundo o crítico, “as terras prediletas do barroquismo são ricas em ruínas”, mas ele ressalta: não as ruínas em seu sentido nobre, aquele conferido pela ação de séculos sobre ilustres e antigas construções, mas no sentido de coisas não terminadas e não destruídas, por indiferença ou preguiça. D‟Ors faz, então, um ajuste:

cão termina sucumbindo à raiva, com o qual se aproxima do saturnino e “simboliza o aspecto sombrio da complexão melancólica” (no século XII, o humor melancólico se atribuía ao excesso de bílis negra no sangue (cf. Benjamin, op.cit., p. 168). Mas, “por outro lado, o faro e a tenacidade do animal permitiam construir a imagem do investigador incansável e pensador” (W. Benjamin, op.cit., p. 174).

talvez fosse melhor dizer “restos” e não “ruínas”,5

pois o mais importante não seria a ação do tempo sobre a matéria perecível, mas o inacabamento das obras por conta da indecisão, dos desejos multipolares que não sabem o que querem e que abandonam os projetos inconclusos.6 Para d‟Ors, a indecidibilidade é a característica por excelência da natureza, que não sabe aquilo que quer. Diz ele: “La natura, per impiegare un‟espressione volgare, non sa quello che vuole... Piú esattamente: voltata la schiena al principio di contraddizione, vuole due contrari alla volta.”7

E o barroquismo, “fiel discípulo da natureza”, introduz essa mesma dinâmica em suas obras: não se decide a dizer uma coisa só, se movimenta na excentricidade da elipse, oscilando entre pontos com forças dinâmicas opostas, sem um único centro. A indecisão seria aquilo que a natureza porta ao barroco, e não a morte, como o seria para Benjamin; a indecisão que caracteriza as forças naturais seria o elemento que desestabiliza as estruturas clássicas, que desordena a cultura européia anterior às viagens de conquista e ao fortalecimento da natureza como força mitológica, como o indômito e desconhecido que desordena as composições lógicas e racionais.

Como pensar, então, os resíduos e escombros nos cenários das águas-fortes de Arlt? A despeito do tom de alegoria barroca a que possam remeter, há uma diferença fundamental quanto ao conceito de história, que não se entende como história-natureza e que não se percebe como subjugada à natureza, mas como aquilo que deve se impor sobre ela. Como procurei demonstrar nas notas de viagem do cronista, há um ranço evolucionista que apregoa o devir História da Geografia, o