• Nenhum resultado encontrado

1 – Trabalho científico enquanto trabalho de transformação

CAPÍTULO IV – OPÇÕES METODOLÓGICAS E TÉCNICAS

IV. 1 – Trabalho científico enquanto trabalho de transformação

O trabalho científico corresponde a um trabalho de transformação. No caso das Ciências Sociais, são as várias concepções, informações e representações, que num determinado momento histórico possam existir sobre a realidade, servem de matéria- prima para o desenvolvimento dessa actividade de transformação132. Este trabalho, segundo Almeida e Pinto (1980, p. 61), é produzido, por um lado, em determinadas condições teóricas e, por outro lado, em determinadas condições sociais: as primeiras, envolvendo todo um instrumental teórico, metodológico e técnico a que é possível recorrer para fazer a abordagem dos problemas que a realidade suscita, revelam o estado de desenvolvimento da ciência; as segundas, designando “a pluralidade de estruturas e

práticas da formação social em que a actividade da investigação se exerce e que nela por múltiplas formas interfere”, poderão ser facilitadoras ou bloqueadoras do

desenvolvimento científico133.

Este trabalho de transformação das informações disponíveis sobre o real, de modo a obter conhecimento científico, não é senão uma tentativa continuada e sistemática de um permanente vai-e-vem de aproximação à realidade com o propósito de obter respostas para alguma coisa que, por ser intrigante, suscita dúvidas. Para Nunes (1981, pp. 7-8), o trabalho científico visa

132 Na fase exploratória da investigação, constituiu matéria-prima objecto de análise: a) discursos proferidos por vários dos porta-vozes da Animação Sociocultural, obtidos por via documental; b) discursos proferidos por vários dos Animadores Socioculturais, obtidos por via de entrevistas; c) actas de congressos, encontros, jornadas de Animação Sociocultural; d) os discursos proferidos por alguns professores dos cursos de licenciatura em Animação Sociocultural.

133 Dir-se-á, a este título, que o desenvolvimento científico não se compadece com situações político- sociais não democráticas, constituindo o caso português um exemplo ilustrativo do profundo bloqueio a que as ciências em geral e a Sociologia em particular estiveram submetidas durante uma boa parte do século XX.

“(…) o conhecimento dos ―objectos reais‖, isto é, dos objectos de que o mundo realmente se compõe, [mas o que o caracteriza] não é a apreensão e manipulação directas de tais objectos, mas a construção de ―objectos de conhecimento‖, formados por conceitos e relações entre conceitos, os quais servem como instrumentos (mediações) indispensáveis para, indirectamente, se alcançar uma certa forma de apropriação (aproximação) cognitiva do real.”

O trabalho de investigação, correspondendo a um processo racional de transformação, exige necessariamente uma estreita relação entre as várias fases que o compõem para, desse modo, tornar possível, de uma maneira ordenada e circunspecta, a construção do conhecimento. Na verdade, a realidade social, dada a sua complexidade, só poderá ser compreendida através de um aturado trabalho de investigação que passa, necessariamente, por um esforço de observação capaz, tal como atrás se diz, de restituir o sentido subjectivo que os actores atribuem à sua acção. Este trabalho requer uma atitude de permanente e apertada vigilância epistemológica, de modo a afastar a tentação de conferir credibilidade a certas leituras do social que tendem a interpretar o social em termos não sociais, constituindo-se, por isso, em obstáculos ao conhecimento científico: ora remetendo as explicações para as esferas do natural e do individual, ora baseando as explicações em concepções etnocêntricas, ora ainda recorrendo a evidências do senso comum para explicar fenómenos sociais que, sendo complexos, não poderão ser explicados de forma rápida e simples, uma vez que explicações rápidas e simples se revelam, normalmente, erradas. Encontrando-se o cientista do social na situação particular de ser simultaneamente sujeito e objecto de investigação, os obstáculos – com que porventura possa deparar ao longo do processo de investigação – não se situam noutro lugar que não seja na sua própria cabeça. Nessa medida, afastar

“(…) as ideias preconcebidas, interrogando as evidências, é uma atitude indispensável a qualquer tipo de pesquisa e o primeiro obstáculo epistemológico é, quase sempre, a familiaridade com o objecto de análise, pelo que o foco da curiosidade sociológica é sempre um objecto reconstruído.” (Guerra, 2006: 37).

Não se está a propor, porém, a via “explicativa” como sendo a via válida para a abordagem dos factos sociais, o que significaria tratá-los como “coisas” e, nessa medida, considerá-los como “exteriores aos indivíduos” (Durkheim, 1980). Com efeito, independentemente do tipo de relações consideradas – sejam pessoais, sejam

profissionais –, as maneiras de agir, de pensar e de sentir não têm apenas “uma

realidade exterior aos indivíduos que, em cada momento do tempo, a elas se conformam” (Durkheim, 1980, p. 23), elas são vividas pelos próprios indivíduos e, deste

modo, constituem as próprias relações. A sociedade deixa de ser tratada de ―uma forma

quase mística, como uma espécie de ―superentidade‖ perante a qual os membros individuais mostrariam, muito apropriadamente, uma atitude de reverência.” (Giddens,

2005, p. 9). Esta mesma perspectiva é partilhada por Lessard-Hébert, Goyette e Boutin (2008, p. 48) ao considerarem que, sendo o “mundo humano” o objecto da análise, então necessariamente

“Os factos sociais não são ‗coisas‘ e a sociedade não é um organismo natural, mas sim um artefacto humano. Do que se precisa é de compreender o significado dos símbolos sociais artefactuais e não explicar as realidades sociais ‗externas‘. O ponto de vista ‗objectivo‘ ou ‗neutro‘, recomendado pelo positivismo, é uma impossibilidade metodológica e uma ilusão ontológica: estudar o social é compreendê-lo (o que não se torna possível sem o reviver); o objecto social não é uma realidade exterior – é uma construção subjectivamente vivida.”

Também Berger e Luckman (1999, pp. 71-72, 98-101, 192-193), a propósito da relação entre o homem e o mundo social, parecem apontar no mesmo sentido, ao referirem que:

“É importante ter em mente que a objectividade do mundo institucional, por mais tangível que pareça ao indivíduo, é uma objectividade produzida e construída pelo homem. (…) apesar da objectividade que marca o mundo social na experiência humana, ele não adquire por isso um estatuto ontológico desligado da actividade humana que o produziu. O paradoxo, que consiste no facto do homem ser capaz de produzir um mundo que depois vivencia como algo não humano (…) é importante sublinhar que a relação entre o homem, o produtor, e o mundo social, o seu produto, é e permanece uma relação dialéctica, ou seja, o homem (claro que não isolado mas em colectividade) e o seu mundo social, interagem um com o outro. (…) O mundo reificado é por definição um mundo desumanizado. É sentido pelo homem como uma factualidade estranha, uma opus alienum sobre a qual não tem controlo, em vez de ser sentido como opus proprium da sua actividade produtora. (…) a nossa perspectiva é não positivista, se o positivismo for entendido como uma posição

filosófica que define o objecto das ciências sociais legislando de modo a iludir os seus mais importantes problemas.”

Tendo a opção teórica orientadora da presente investigação recaído numa perspectiva sociológica compreensiva que – dando atenção à diversidade de tipos de acção – considera toda a conduta humana dotada de um significado subjectivo dado por quem executa e orienta essa acção, atribuindo, nessa medida, importância ao pensamento reflexivo em termos de transformação social e, sendo assim, privilegiando a análise dos motivos e não tanto das causas que levam os indivíduos a agir, foram retiradas daí consequências ao nível das opções a tomar em matéria de dispositivos metodológicos, epistemológicos e técnicos, conferindo assim coerência ao todo que o processo de investigação constitui.

Em matéria metodológica, ao analisar os pressupostos, princípios e procedimentos que moldam a investigação, considerou-se, uma vez que o propósito era obter as justificações, os protestos, as denúncias, as reivindicações do maior número possível de Animadores Socioculturais de formação superior, a estratégia de pesquisa extensiva a mais ajustada ao objecto de estudo.

Em matéria epistemológica, procurou-se, através de uma atitude de vigilância, afastar falsas leituras e ideias preconcebidas acerca da Animação Sociocultural, promovendo, deste modo, a qualidade da prática científica.

Em matéria técnica, tendo em conta a estratégia de pesquisa adoptada, optou-se pela utilização de um inquérito por questionário que, para além de conter áreas de observação de carácter quantitativo, inclui uma área contendo cenários que encerram dilemas de ordem profissional e em relação aos quais os Animadores Socioculturais inquiridos assumem uma pluralidade de formas de fazer o comum na Animação Sociocultural, permitindo, desta maneira, uma análise quantitativa e, ao mesmo tempo, uma análise qualitativa.

Optou-se, ao mesmo tempo, como forma de conferir maior qualidade às informações fornecidas pelo inquérito por questionário, por uma entrevista semiestruturada, considerando-se que estes dois instrumentos, ao serem usados em

simultâneo, constituem um bom complemento um do outro e, sendo assim, ajustados à fase empírica da investigação.

O presente trabalho sociológico levantou, pois, questões teóricas, epistemológicas e, necessariamente, metodológicas, constituindo estas últimas, através de uma atitude de vigilância permanente, a envolvente de todo o trabalho de investigação, registando-se entre todas elas, conforme Bourdieu (1989, p. 24) faz questão de sublinhar, uma relação de grande interdependência:

“(…) a divisão ‗teoria‘/‗metodologia‘ constitui em oposição epistemológica uma oposição constitutiva da divisão social do trabalho científico num dado momento (…). Penso que se deve recusar completamente esta divisão (…). Com efeito, as opções técnicas mais empíricas são inseparáveis das opções mais ‗teóricas‘ de construção do objecto. É em função de uma certa construção do objecto que tal método de amostragem, tal técnica de recolha ou de análise dos dados, etc. se impõe.”

IV.1 – Em síntese:

Tendo a opção teórica orientadora da presente investigação recaído numa perspectiva sociológica compreensiva, foram retiradas daí consequências ao nível das opções a tomar em matéria de dispositivos metodológicos, epistemológicos e técnicos, conferindo assim coerência ao todo que o processo de investigação constitui. Em matéria metodológica, ao analisar os pressupostos, princípios e procedimentos que moldam a investigação, considerou-se a estratégia de pesquisa extensiva a mais ajustada ao objecto de estudo, uma vez que o propósito era obter as justificações, os protestos, as denúncias, as reivindicações do maior número possível de Animadores Socioculturais de formação superior. Em matéria epistemológica, procurou-se, através de uma atitude de vigilância, afastar falsas leituras e ideias preconcebidas acerca da Animação Sociocultural, promovendo, deste modo, a qualidade da prática científica. Em matéria técnica, tendo em conta a estratégia de pesquisa adoptada, optou-se pela utilização de um inquérito por questionário que, para além de conter áreas de observação de carácter quantitativo, inclui uma área contendo cenários que encerram dilemas de ordem profissional e em relação aos quais os Animadores Socioculturais

inquiridos assumem uma pluralidade de formas de fazer o comum na Animação Sociocultural, permitindo, desta maneira, uma análise quantitativa e, ao mesmo tempo, uma análise qualitativa. Optou-se, ao mesmo tempo, como forma de conferir maior qualidade às informações fornecidas pelo inquérito por questionário, por uma entrevista semiestruturada, considerando-se que estes dois instrumentos, ao serem usados em simultâneo, constituem um bom complemento um do outro e, sendo assim, ajustados à fase empírica da investigação.