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CAPÍTULO III – O TRABALHO DO PROFESSOR NA PERSPECTIVA DA

3.2. Trabalho docente e as contribuições da psicodinâmica do trabalho

O sofrimento oriundo das situações de trabalho traz como necessidade o entendimento das definições de trabalho, bem como o entendimento do mesmo na prática docente. Para tanto, buscou-se por meio da Psicodinâmica do Trabalho e, ainda pelo seu teórico criador Christophe Dejours a significação deste termo “trabalho”.

Desse modo, Dejours (1997) aponta que existem duas definições de trabalho: a primeira delas diz que o trabalho é uma “uma atividade útil coordenada” mostrando a sua dimensão operacional. Já a segunda, ele amplia a definição dizendo que o trabalho “é a atividade coordenada desenvolvida por homens e mulheres para enfrentar aquilo que, em uma tarefa utilitária, não pode ser obtido pela execução estrita da organização prescrita”.

Contribuíram com essa discussão, Jardim e Lancman, que apoiadas na psicodinâmica, constroem uma definição para trabalho.

... é mais do que o ato de trabalhar, vender força de trabalho em troca de remuneração. O trabalho assume papel central na constituição identitária e possui implicação direta nas diversas formas de inserção social dos indivíduos. O trabalho pode ser visto como fundamental na constituição de redes de relações sociais, pertinência a grupos, e trocas afetivas e econômicas, bases da vida cotidiana; e também possui função psíquica, por ser um dos alicerces da constituição do sujeito e sua rede de significados (JARDIM; LANCMAN, 2009, p.125).

As autoras apontam que a construção da identidade é um processo que se desenvolve ao longo da vida do sujeito e que está ligada à noção de alteridade. Sendo assim, o trabalho aparece como elemento fundamental na construção do próprio sujeito, e, portanto contribui para estabilização de sua identidade, revelando-se como mediador entre o inconsciente e o campo social, o particular e o coletivo, constituindo um teatro aberto aos investimentos subjetivos, de construção de sentido, de conquista da identidade e historização do sujeito.

Atenta a centralidade do trabalho na vida dos sujeitos, a psicodinâmica chama a atenção para o fato de que trabalhar é confrontar-se com o mundo. E nesse confronto os trabalhadores não ‘aplicam’ os saberes adquiridos (não são ‘executores’), mas, afetados pela

situação de trabalho, mobilizam-se, operando com o patrimônio de saberes adquiridos, produzindo a compreensão das relações sofrimento-prazer no trabalho, e estratégias individuais e coletivas frente ao sofrimento vivenciado no trabalho (DEJOURS, 1992, 2004).

Para Dejours (2004), o trabalho é aquilo que implica do ponto de vista humano, o fato de trabalhar: gestos, saber-fazer, um engajamento do corpo, a mobilização da inteligência, a capacidade de refletir, de interpretar e de reagir às situações; é o poder de sentir, de pensar e de inventar, etc.

O autor enfatiza que em termos gerais:

O trabalho não é em primeira instância a relação salarial ou emprego; é o <<trabalhar>>, isto é, um certo modo de engajamento da personalidade para responder a tarefa delimitada por pressões (materiais e sociais), Ou ainda aparece para o clínico como a característica maior do <<trabalhar>>, é que, mesmo que o trabalho seja concebido, a organização do trabalho seja rigorosa, as instruções e os procedimentos sejam claros, é impossível atingir a qualidade se as prescrições forem respeitadas escrupulosamente (DEJOURS, 2004, p. 28).

Contudo mesmo que as instruções sejam claras, trabalhar é fracassar, pois o real do trabalho resiste, assim, trabalhar é lidar com acontecimentos inesperados, panes, incidentes, anomalias de funcionamento, incoerência organizacional, imprevistos provenientes tanto da matéria, das ferramentas e das máquinas, quanto dos outros trabalhadores, colegas, chefes, subordinados, equipe, hierarquia, clientes, entre outros (DEJOURS, 2004).

Nesse sentido, Dejours (2004) cita que existe sempre uma discrepância entre o prescrito e a realidade concreta da situação. Esta discrepância entre o prescrito e o real se encontra em todos os níveis de análise entre tarefa e atividade ou ainda entre a organização formal e organização informal do trabalho.

Desse modo, existe uma enorme distância entre o trabalho prescrito na situação da educação que pode ser explicitado por Sampaio e Marin:

O atual currículo prescrito, portanto, explica-se no conjunto das medidas consideradas necessárias ao alinhamento do país às prioridades acordadas no âmbito internacional. Sua importância não pode ser superestimada, mas está claramente afirmada na forma como se impõem os parâmetros curriculares, articuladamente às avaliações externas, que classificam as escolas e as obrigam a redirecionar seu trabalho pedagógico (SAMPAIO; MARIN, 2004, p. 1205).

Nesse sentido, compreender as práticas curriculares na perspectiva da prescrição do trabalho, atravessadas pelas exigências da nova ordem econômica e política, torna-se necessário, ainda que difícil. Exige conhecer e analisar o currículo prescrito e, sobretudo, investigar o currículo real que foi definido pelas mesmas autoras acima, como sendo:

... aquele que se desdobra em práticas no interior da escola, cuja determinação não se origina apenas das prescrições oficiais, mas de muitos fatores que interferem no desenvolvimento do trabalho escolar. Seus determinantes expressam tanto as marcas das políticas quanto as condições e os problemas sociais e econômicos que atingem a vida de seus usuários (SAMPAIO; MARIN, 2004, p. 1205).

Diante do exposto, pensar algumas práticas necessita situá-las na relação com alguns outros elementos mais amplos, como os que cercam o trabalho dos professores, tais como: as condições de trabalho docente – carga horária de trabalho/ensino, o tamanho das turmas, a indisciplina dos alunos, a relação professor-aluno, a relação entre pares entre outros.

O caso brasiliense é sui generis, visto que a construção de Brasília é idealizada e de vanguarda, em oposição aos caos das urbes brasileiras e agrárias existentes à época da sua construção. Nesse sentido, essa idealização da cidade é transposta para o discurso das atividades pedagógicas da Nova Capital.

O exercício pedagógico transformou-se do discurso idealizado de modernidade e democracia, dos primeiros tempos, para a desestruturação da organização e das relações do trabalho pedagógico, que influencia o processo de formação dos docentes durante últimos trinta anos, e desafia o cotidiano da escola e da sala de aula frente ao processo de ensino- aprendizagem, a violência intraescolar, as relações professor-aluno, aluno-aluno, professor- professor, professor-direção e outras, na atualidade.

Nas situações de trabalho é impossível que os sujeitos se detenham ao que lhes é prescrito. O trabalho, como manifestação da vida, escapa a qualquer tentativa de antecipação rígida, e por si só não se consegue prescrever as formas subjetivas, pois o indivíduo não se detém na atividade que lhe é prescrita, operando de forma a chegar o mais próximo possível dos objetivos fixados por ela, mas afirmando do caráter plástico dos humanos (DEJOURS, 1992, 2004).

Dessa forma, no trabalho docente o prescrito é representado pelas atribuições da profissão estabelecidas já na formação docente, porém, este professor nem sempre é preparado para enfrentar o imprevisto que foge muitas vezes da idealização que está presente na sua formação.

O trecho a seguir se refere ao imprevisto e as modificações no trabalho docente: ... a degradação progressiva e acentuada das condições de trabalho (número excessivo de alunos em sala, falta de instalações adequadas), aumento efetivo do número de vagas no ensino fundamental e médio, fragmentação e esvaziamento da formação dos professores, diminuição drástica dos salários dos professores, queda do status social do professor, aumentos dos problemas de disciplinas e a tendência de ter o professor como o grande responsável pelos males da educação (VASCONCELLOS, 2001).

Portanto, parece haver na educação um desacordo entre o trabalho prescrito e o trabalho real. Formado a partir do prescrito, o professor se depara com o real, que como citado foi por Vasconcellos (2001) se relaciona com as situaçõesexpressas pelas práticas no interior da escola apontado por Sampaio e Santini (2004).

Diante do exposto, o trabalho do professor pode ser compreendido por meio da abordagem da psicodinâmica, que revela um descompasso entre o prescrito e o real ao agregar dificuldades ao trabalho “reduz a margem de manobra para responder satisfatoriamente às exigências presentes nas situações, gerando uma sobrecarga de trabalho e aumento do custo humano da atividade” (FERREIRA; BARROS, 2003). Ou seja, o descompasso entre o trabalho prescrito (tarefa) e o trabalho realizado (atividade) pode intervir positiva ou negativamente nas vivências de prazer e/ou sofrimento do professor.

Acrescenta-se a esses autores Dejours (2004) ao apontar que o real do trabalho “se dá a conhecer, essencialmente, pela defasagem irredutível entre a organização prescrita e a organização real do trabalho”. Então, o real é tido como aquilo que se faz conhecer por sua resistência à descrição e somente é apreendido pelo fracasso, sob a forma de experiência vivida, que desencadeia reações e sentimentos.

Segundo Silva e Helioani (2009), trabalho real surge como resistência aos ditames: são situações inéditas, desconhecidas e imprevistas que desafiam as indicações. Dada a pressão organizacional, o trabalhador se vê num dilema: para trabalhar deve transgredir, caso contrário fica paralisado, o que também não pode ocorrer. Invariavelmente o indivíduo lança mão de “trapaças”, “jeitinhos” ou “gambiarras”. A transgressão é consciente e o indivíduo não tem certeza da justeza de sua solução. Para superar esta angústia vai se submeter ao julgamento do outro, a fim de poder avaliar a solução dada a um problema.

Dejours (1992) aponta que existem dois tipos de julgamento:

Julgamento de utilidade: [...] é um julgamento que diz respeito à utilidade social, econômica ou técnica do trabalho feito pelo sujeito sobre o campo de atividade. Este julgamento, essencial e incontornável, é antes de tudo formulado pelos superiores hierárquicos e pela chefia, que são as pessoas melhor situadas para apreciarem a utilidade do trabalho efetuado, e, eventualmente, pelos clientes, ou seja, segundo as relações no sentido vertical (DEJOURS, 1992, p.148).

Julgamento estético: [...] o julgamento de beleza se decompõe em dois desdobramentos: o julgamento em virtude do qual o trabalho é reconhecido como apresentando todas as qualidades que implicam o respeito às regras de trabalho ou às regras de arte [...]. Em outros termos, o julgamento de beleza é formulado [...] pelos pares. É um julgamento muito mais severo, muito mais exigente. [...] Este julgamento de beleza, socialmente formulado, não é, pois evidente em si mesmo [...]

É preciso que cada um obtenha de seus pares esse julgamento. Em outras palavras, a sublimação só é cumprida quando o julgamento for obtido pelo impetrante [...] Quando este julgamento é proferido pelos pares, ele dá, em contrapartida da contribuição do sujeito à obra comum, uma retribuição em termos de identidade. Com este primeiro julgamento de beleza, o sujeito é reconhecido como possuidor de todas as qualidades e das habilidades daqueles que formam o coletivo do trabalho, a equipe, ou, na falta dela, a comunidade a que pertence [...]. Esse primeiro desdobramento do julgamento de beleza é necessário para que se tenha sucesso no segundo desdobramento: trata-se, desta vez, além das qualidades comuns, de reconhecer o que faz essencialmente a diferença em relação aos outros. Desta vez, é a originalidade que é reconhecida, mas com a condição de que de início sejam respeitadas as regras comuns.. Este julgamento é, para nos exprimirmos com precisão, aquele pelo qual é reconhecida a identidade, isto é, aquele pelo qual esse sujeito não existe em nenhum outro semelhante a ele (DEJOURS, 1992, p.148- 149). O desajuste entre o prescrito e o real expõe uma das faces mais obscuras da situação do trabalhador, ou seja, quanto maior for o distanciamento entre o prescrito e o real do trabalho, maior será o custo humano deste trabalho. Sendo assim, essa situação desajuste pode ser identificada pelos sofrimentos inerentes às dificuldades do professor em preencher esta lacuna entre o prescrito que é determinado pelas leis, pela formação profissional e um conjunto de medidas necessárias ao alinhamento do país acordadas no âmbito internacional afirmadas pelos parâmetros curriculares nacionais, que classificam as escolas e redirecionam o trabalho do professor; e o real que pode ser descrito como práticas no interior da escola: as atividades em sala de aula, avaliações dos alunos, entre outros.

Contudo, quanto menor for o descompasso entre o prescrito e o real, menor será o custo humano, o que certamente potencializa as vivências de prazer, garantindo uma sensação de bem estar, motivação e satisfação no trabalho (FERREIRA; MENDES, 2001).

Desse modo, ao analisar a prática profissional do professor é necessário não somente olhar o modo como ele maneja, mas também, o que o preocupa e buscar compreender a distorção entre o que é desejado e o que é feito. Assim, como também o uso de determinadas estratégias de mediação utilizadas pelos professores, a fim de realizar as “manobras” necessárias como resposta ao trabalho prescrito imposto por cumprimento de metas, prazos e obediência às normas e regras.

Desse modo, esse estudo foi guiado pelos pressupostos teóricos da psicodinâmica do trabalho desenvolvido por Dejours (1992, 2004), que nos anos 80 construiu uma teorização denominada psicodinâmica do trabalho que se constituiu como estudo cujo objeto é o sofrimento no trabalho representado por um estado compatível com a normalidade, mas que implica numa série de mecanismos de regulação.

A psicodinâmica do trabalho é uma abordagem científica que investiga as relações entre prazer e sofrimento no trabalho. Ela privilegia como categoria central de análise a inter-

relação entre o sofrimento psíquico – decorrente das contradições entre o sujeito e a realidade de trabalho – e as estratégias de mediação utilizadas pelos trabalhadores para superar esse sofrimento e transformar o trabalho em uma fonte de prazer (FERREIRA; BARROS, 2003).

Portanto, trabalhar é preencher a lacuna entre o prescrito e o real, sendo que o preenchimento dessa lacuna não tem como ser previsto antecipadamente. O caminho a ser percorrido entre o prescrito e real deverá ser inventado ou descoberto pelo sujeito que trabalha, e esta descoberta passa pelo fracasso, pois o trabalhador quando pretende cumprir o prescrito e este resiste ao real, o trabalhador se confronta com o fracasso (DEJOURS, 2004).

Desse modo, para o clínico a definição de trabalho é: “aquilo que o sujeito deve acrescentar às prescrições para poder atingir os objetivos que lhe são designados; ou ainda aquilo que ele deve acrescentar de si mesmo para enfrentar o que não funciona quando ele se atém escrupulosamente à execução das prescrições” (DEJOURS, 2004).

Dejours (1992) privilegiou o debate acerca da saúde mental dos trabalhadores e trabalhadoras vinculados à situação de trabalho. Além de uma concepção teórica, a psicodinâmica possui uma proposta metodológica que preconiza um espaço de escuta a partir de grupos de reflexão e da criação de espaço público de discussão denominado clínica do trabalho, onde por meio da escuta coletiva dos trabalhadores buscar-se-á esclarecer os aspectos menos visíveis do trabalho e, ainda, favorecer a reapropriação, por parte dos trabalhadores, da engenhosidade e inteligências desenvolvidas para fazer o trabalho acontecer a despeito dos constrangimentos vivenciados (JARDIM; LANCMAN, 2009). As autoras descreveram as etapas constitutivas desta intervenção metodologia:

As etapas constitutivas do método da PDT são: pré-pesquisa; reconfiguração da demanda; apresentação do projeto aos trabalhadores e identificação de voluntários; grupos de reflexão; restituição e validação do relatório preliminar redigido pelos pesquisadores. Sequencialmente, o relatório final, segundo acordo prévio, torna-se material público (JARDIM; LANCMAN, 2009, p.127).

Diante do exposto, a Psicodinâmica do Trabalho busca modificar as vivências do sentimento do sofrimento, por meio da sua transformação. Quando o sofrimento pode ser ressignificado, transformado em criatividade, torna-se benéfico para a identidade do homem, uma vez que lhe proporciona o aumento da defesa aos perigos de desestabilização física e psíquica. Dessa maneira, o trabalho torna-se equilibrante para a saúde, mas o oposto pode funcionar como mediador da fragilização dessa saúde, ou seja, transforma-se em sofrimento patogênico. Isso ocorre quando não há mais espaço para a liberdade, para a flexibilização na

organização do trabalho, para as mudanças, bem como espaço para ouvir os trabalhadores (DEJOURS, 2004).

O capítulo a seguir abordará o método que se constitui num estudo histórico e qualitativo com uma investigação por meio de documentos da Secretaria de Educação do Distrito Federal e entrevista semi-estruturada com treze professores de escolas públicas pertencentes a esta secretaria.

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