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Para este item, propomos ampliar as discussões sobre as repercussões a respeito do trabalho dos formadores da classe-que-vive-do-trabalho, ou seja, os docentes, destacando as exigências impostas por discursos de suposta valorização da escola pública e da qualificação profissional, com o intuito de promover melhor compreensão acerca do contexto e das implicações deste sobre a formação de professores.

Nesse cenário pós-moderno de perspectivas neoliberais e de globalização, a escola e, consequentemente, o professor, um de seus mais evidentes representantes, ganham notoriedade e responsabilidades cada vez maiores. No contexto atual, espera-se do docente, muitas vezes, com condições mínimas de trabalho, que possa não somente dotar os alunos com as “competências e habilidades” que garantiriam a inserção destes no mercado de

trabalho, mas também contribuir para a construção de uma conduta cidadã, crítica e participativa (bem ao gosto do discurso proposto pelos ideais da acumulação flexível).

Dessa forma, mesmo com salários reconhecidamente inferiores a de outros profissionais com o mesmo nível e tempo de escolaridade14, trabalhando em escolas sem infraestrutura adequada, sem expectativas positivas de carreira, muitas vezes em condições físicas e mentais comprometidas, os professores devem, segundo essa lógica, contribuir para a inserção dos estudantes no mercado de trabalho. Por outro lado, há os que defendem que os espaços educacionais são importantes para a construção de uma perspectiva de transformação da realidade, sendo o professor um sujeito determinante nessa elaboração, engajado em um projeto que supere o imediatismo mercadológico.

Em qualquer que seja a perspectiva, a compreensão do trabalho docente está atrelada ao entendimento de que este se insere numa sociedade marcada pelas contradições próprias do seu modo de produção. Nessa direção, Kuenzer (2011) aponta as categorias que constituem o trabalho docente no capitalismo. Inicialmente, a autora cita que o trabalho docente está inserido no âmbito do trabalho capitalista, submetido a sua lógica e contradições, que não foge dos objetivos de produção de valores de uso e de troca e, portanto, da acumulação do capital. Isso se dá tanto pela compra de força de trabalho do docente quanto pela natureza do seu trabalho, que “[...] contraditoriamente forma sujeitos que atenderão às demandas do trabalho capitalista, cuja inclusão depende do disciplinamento para o qual a escola contribui” (KUENZER, 2011, p. 677). No entanto, esse mesmo trabalho pode colaborar para a consciência dessas relações e suas contradições, tendo em vista a sua superação.

Ainda quanto a essa dimensão, a autora destaca que a realização do trabalho capitalista depende da permissão do trabalhador, sendo que quanto mais abstrato é o trabalho mais se necessita da anuência deste, o que promove um movimento amplamente contraditório, pois, na busca por um processo de produção mais complexo que envolve flexibilidade, intelectualização e compreensão da totalidade, também se possibilita mais acesso ao conhecimento.

Kuenzer (2011, p. 678) expõe que, nessa perspectiva, o docente é tanto sujeito quanto objeto de sua formação:

14 Cabral Neto e Souza (2013) apresentam os resultados de uma pesquisa sobre o perfil do trabalhador docente

da Educação Básica no Rio Grande do Norte e afirmam que a média salarial dos professores norte-rio- grandenses está abaixo da média salarial nacional dos trabalhadores sem nível superior. A pesquisa revela que 46% dos entrevistados tinham renda salarial bruta de até dois salários-mínimos e apenas 0,1% dos docentes afirmaram ter renda superior a sete salários-mínimos, média de salários que os trabalhadores com nível superior recebiam no ano de 2009.

[...] objeto, enquanto sua formação e exercício do seu trabalho implicam uma boa dose de adesão ao projeto capitalista; sujeito, porquanto, ao responder às demandas derivadas da crescente intelectualização do trabalho a partir de uma formação que lhe desenvolva a capacidade de análise e intervenção na realidade, pode contribuir para a formação de sujeitos capazes de formular, pelas mediações do conhecimento e da organização coletiva, outro projeto de sociedade. O que, contraditoriamente, também lhe demanda aportes crescentes de conhecimento, mediante a continuidade de sua formação ao longo de sua prática laboral.

A segunda categoria apontada por Kuenzer (2011) é a de que o trabalho docente é trabalho não material, ou seja, um trabalho que não resulta em algo palpável como um objeto, o que amplia tanto a possibilidade de resistência quanto de autonomia, pois, pela natureza de ser não material, não se separando produtor do produto, o capital tem dificuldade para mensurar a produtividade e precisa, de forma mais direta, da adesão do trabalhador às suas causas.

Contudo, a autora destaca que, mesmo sendo não material, o trabalho docente não corresponde a trabalho improdutivo, pois é um trabalho que, de alguma forma, valoriza o capital, uma vez que está articulado à lógica da acumulação, seja através da produção de excedentes em instituições privadas, seja pela execução de currículos fragmentadores da formação, seja pela reprodução de subjetividades em conformidade com as demandas do capitalismo.

Por fim, Kuenzer (2011) indica que tal condição (a de um trabalho não material, embora produtivo) insere o docente numa realidade complexa que articula desistência e resistência, uma dialética que possibilita tanto a produção da alienação quanto uma autonomia relativa.

Kuenzer (2011) utiliza os estudos de Codo (1999) para argumentar que

[...] o trabalho do professor se objetiva na tensão entre trabalho em geral, qualificador, transformador, prazeroso, e trabalho capitalista, mercadoria comprada para valorizar o capital. Esta tensão se acentua pelo caráter não material do seu trabalho, que, ao não se separar do produtor, reafirma o espaço da consciência e da subjetividade e, assim, o poder do trabalhador, ao mesmo tempo em que cada vez mais o elimina, em face da progressiva institucionalização dos serviços educacionais ou de sua crescente precarização, a partir da lógica da acumulação capitalista, com o que se diminuem os espaços de intervenção do professor. Ou seja, no trabalho docente acentua-se a tensão entre subjetividade e objetivação (KUENZER, 2011, p. 682).

Dessa forma, a natureza do trabalho docente pode trazer aos seus sujeitos o sofrimento e a não realização, o que, aliado a outros fatores, pode contribuir para a desistência. Porém, também pode provocar inquietações que o impulsionem a assumir uma perspectiva contra hegemônica.

Considerando tudo o que foi apontado sobre a natureza do trabalho docente e sobre a sua inserção num contexto capitalista, tomaremos como destaque a formação dos professores por concordarmos com a abordagem de Kuenzer (2011), ao afirmar que as propostas de formação docente tanto podem estimular práticas que busquem outro projeto de sociedade quanto retardá-las, sendo fundamental o entendimento das concepções de homem, de trabalho e de sociedade que embasam as propostas de formação dos formadores.

Moura (2014) também aponta que é nos espaços de contradições e disputas políticas, sendo necessário, na perspectiva de outro projeto de sociedade, que o professor construa uma consciência de classe, uma consciência de pertencimento à classe trabalhadora, para que assuma compromisso ético e político com os que vivem do trabalho.

A consciência de pertencer a uma determinada classe resulta das práticas sociais e produtivas vivenciadas pelo professor durante a vida, logo não se pode esperar que essa consciência se construa apenas nos processos de formação escolar, embora,

tampouco, se possa delas descuidar (MOURA, 2014, p. 33, grifo nosso).

Corroborando o autor, defendemos que a formação de professores é elemento de grande importância, pois possibilita a construção de concepções a respeito do próprio ser humano, das suas relações com outros homens e com a natureza, as quais convergem para projetos de sociedade que tanto podem ser da perspectiva do capital quanto da contra hegemonia, além de ser espaço de apropriação da natureza do seu trabalho e de suas especificidades.

No Brasil, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, n. 9.394/1996, estabelece, através do Parágrafo Único, do Art. 61, que a formação dos profissionais da educação deve ter como fundamentos:

I – a presença de sólida formação básica, que propicie o conhecimento dos fundamentos científicos e sociais de suas competências de trabalho;

II – a associação entre teorias e práticas, mediante estágios supervisionados e capacitação em serviço;

III – o aproveitamento da formação e experiências anteriores, em instituições de ensino e em outras atividades (BRASIL, 1996).

Para Cabral Neto e Souza (2013), tais fundamentos expressam expectativas que exigem amplitude e profundidade da formação acadêmica, assim como constante atualização profissional mediante as novas tecnologias e demais demandas impostas pelo contexto. Contudo, os autores utilizam os estudos de Macêdo (2012) para apontar a fragilidade dos

processos formativos. Segundo o citado estudo, há deficiência nos cursos de formação inicial, os quais, por serem norteados por uma visão burocrática, não garantem uma fundamentação sólida que permita as devidas articulações entre teoria e prática, bem como há a falta de articulação entre as universidades e as escolas, não proporcionando que as pesquisas realizadas e seus respectivos resultados tenham a necessária divulgação e sirvam de base para o enfrentamento dos problemas do cotidiano.

Em pesquisa realizada com os docentes da educação básica do Rio Grande do Norte, Cabral Neto e Souza (2013) apontam que 87,3% dos entrevistados tinham graduação, sendo que desse total 37,3% também já possuíam título de pós-graduação, com ampla prevalência dos cursos de especialização. Em relação à formação continuada, essa mesma pesquisa constata que 41,6% dos docentes nunca realizaram cursos de formação continuada, embora 54,8% desses profissionais tenham informado que tiveram oportunidade de participar das referidas atividades. Um dado interessante revelado pelo estudo é o de que os conteúdos dos cursos de formação continuada não são totalmente articulados com as necessidades da profissão.

O estudo também relata como os sujeitos docentes se sentiam, no início da carreira, no que concerne a diversos aspectos profissionais. Segundo Cabral Neto e Souza (2013), 45,8% dos docentes entrevistados informaram que se sentiram razoavelmente preparados quanto ao domínio dos conteúdos; 31,6%, despreparados em relação ao uso de novas tecnologias (computadores, data show, recurso eletrônico); e 8,8% apontaram que se sentiram despreparados para a avaliação da aprendizagem. Para os autores, os dados revelam que há problemas nos processos formativos e na sua preparação para o enfrentamento dos desafios do cotidiano da profissão.

Como conclusão do estudo, os autores destacam:

As características do perfil docente no RN sugerem a necessária redefinição das políticas de formação tanto inicial quanto continuada, seja aproximando mais conteúdos formativos de práticas escolares, seja ampliando e aprofundando as dimensões teóricas e metodológicas na formação inicial, com foco maior nas questões relativas à gestão escolar, à coordenação pedagógica do currículo, dos projetos e processos escolares, bem como no uso e potencialidades das novas tecnologias de pesquisa, de comunicação e informação. [...] A transformação da escola pressupõe que os gestores públicos considerem o trabalho docente de forma mais estratégica, visto que ele é um dos vetores de socialização do saber e de maior atratividade ao mundo do conhecimento científico, filosófico, cultural e profissional, capaz de promover a integração dos alunos com as possibilidades que o mundo contemporâneo apresenta. Isso implica políticas de formação docente que, em nível de graduação e de pós-graduação, promovam o acesso aos novos saberes e práticas profissionais nas diferentes dimensões (CABRAL NETO; SOUZA, 2013, p. 93-94).

Dessa forma, reafirmamos a importância dos processos formativos para a construção de perspectivas que visem uma nova realidade. Contudo, também é necessário reforçar que, devido a sua dimensão estratégica, os processos e espaços formativos dos formadores da classe trabalhadora também são objeto de disputa e podem pender, em virtude do grande aparato político, econômico e ideológico, para os interesses defendidos pelo capital. Portanto, passaremos no próximo capítulo a analisar as políticas de formação dos professores, em especial os da educação profissional, que estão diretamente ligados à formação da classe trabalhadora no Brasil.

3 POLÍTICAS DE FORMAÇÃO DOCENTE PARA A EDUCAÇÃO PROFISSIONAL: