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O TRABALHO INFANTIL NO APL DE TORITAMA NO “ZIG ZAG” DA INFORMALIDADE.

4 O TRABALHO INFANTIL NA EXPERIÊNCIA DO APL DE CONFECÇÃO TÊXTIL DO JEANS EM TORITAMA-PE: “A CIDADE FÁBRICA”

4.2 O TRABALHO INFANTIL NO APL DE TORITAMA NO “ZIG ZAG” DA INFORMALIDADE.

A partir das estatísticas já expostas ao longo deste estudo, com base em índices secundários e estudos já realizados, poderia se afirmar que há no APL de confecção do jeans de Toritama-PE particularidades decorridas das contradições de seu desenvolvimento que implicam na manutenção da apropriação/permanência da força de trabalho de crianças e adolescentes na produção e na comercialização das confecções/jeans, dentre elas: a sociabilidade, como determinação da modo de viver e de pensar de uma forma do ser social constituído, historicamente construída na “cidade fábrica”, em que o trabalho infantil se torna um elemento do cotidiano, como algo “naturalizado” e necessário para o processo de formação dos sujeitos envolvidos.

Além dos estudos145 já apontados na exposição, ao longo do capítulo, ao se aproximar da realidade por meio da pesquisa empírica, deparou-se com uma primeira afirmação que direcionou para as particularidades da permanência dessa forma de trabalho: sim, o trabalho infantil em Toritama-PE é uma realidade, e é muito mais comum no cotidiano da produção domiciliar, nas facções e fabricos, do que os dados secundários sinalizam. Esta pesquisa confirmou essa realidade ao identificar que 90% dos entrevistados trabalharam antes dos 18 anos na produção do jeans. Sendo assim, reafirma-se a importância deste estudo como uma contribuição para o desvelamento dessa realidade.

O desafio qualitativo foi identificar sujeitos que pudessem contribuir, a partir das experiências vividas na produção do jeans, com elementos que levassem à identificação das particularidades da permanência do trabalho infantil na produção do jeans em Toritama. Nesse desafio, conseguiu-se a aproximação de sujeitos com idade de 18 a 24 anos, que estudavam em uma escola de referência no Ensino Médio para o Programa Educação de Jovens e Adultos – EJA146–, totalizando 32 participantes. Vale reafirmar que a escolha desses sujeitos foi estratégica por questão ética, legal e temporal, visto que eles têm autonomia em poder participar ou não.

145 (VÉRAS DE OLIVEIRA; BRAGA, 2014; RODRIGUES, 2010; VALENTIM, 2017; SILVA, 2017; LIMA, J;

SOARES, 2002; SEBRAE, 2013).

As tabelas a seguir mostram o perfil dos participantes, com aspectos como idade e série matriculada:

Tabela 16 – Idade dos participantes

Fonte: Questionário/Elaboração Própria

Tabela 17 – Série matriculada dos participantes

Série Quantidade

1º ano 03

2º ano 17

3º ano 12

Total 32

Fonte: Questionário/Elaboração Própria

Por que esses jovens? Porque pela idade em que se encontravam já deveriam ter concluído o Ensino Médio (EM). Na aproximação, buscou-se identificar o porquê desse atraso, e logo veio a resposta: os principais motivos apontados que os impediram de concluir o ensino médio até os 19 anos estão relacionados, de maneira direta ou indireta, à necessidade de ter que trabalhar.

Ao serem questionados sobre o impedimento de conclusão do Ensino Médio (EM), treze (13) afirmaram, diretamente, que abandonaram a escola por precisarem trabalhar, e seis (06) disseram que deixaram a escola para prover a família (gravidez/maternidade/paternidade). Mas há outros fatores: dois (02) mudaram de cidade em busca de trabalho; um (01) se justificou pelo cansaço físico; e três (03) disseram que o fator foi a reprovação, que também está relacionada à questão do trabalho na adolescência. Sendo assim, vinte e cinco (25) – percentual superior a 80% do público participante – tiveram relações diretas com a questão trabalho. O gráfico a seguir expõe isso:

Idade Quantidade

18-19 16

20-21 06

22-24 10

Gráfico 3 – Motivos de impedimento da conclusão do Ensino Médio até os 19 anos

Fonte: Questionário/Elaboração Própria

Esses dados refletem sobre a realidade dessa “cidade fábrica”, uma sociabilidade onde o trabalho (sob a égide do capital, abstrato) é o principal caminho de formação do sujeito, e não a educação; a escola não foi e não é a principal referência de formação para os que vivem sob a reprodução dessa sociabilidade. Reproduzindo-se, assim, uma ideologia que se torna hegemônica147, no âmbito da produção – que é a casa, a família –, no Estado, por meio de suas políticas e instituições parceiras, como o Sebrae. Para Jorge Acanda, ao discutir hegemonia e sociedade civil em Gramsci, afirma:

É no tecido multifacetado das relações econômicas, familiares, ideológicas, artísticas, morais etc. que os indivíduos adquirem as ideias, as normas e valores que conformarão sua atitude diante da vida, que irão conferir sentido aos diferentes fenômenos sociais com os quais interagem e que os levarão a aceitá-los e entendê-los como legítimos e naturais, ou a rejeitá-los. (2006, p. 178)

É nessa direção de entender esse tecido multifacetado, que a pesquisa partiu, inicialmente, de um conhecimento da realidade educacional dos participantes148, buscando se aproximar desses sujeitos e entender o motivo do atraso na conclusão do EM e se havia relação com a evasão/abandono, e a inserção ao trabalho em idade de estudo do EF e do EM. Dos trinta e dois (32) participantes, ao serem questionados/as se em algum momento tiveram que deixar de frequentar a escola antes de atingir a maioridade, aos 18 anos, vinte e dois (22) 147 Entendendo hegemonia como direção ideológico-política da sociedade civil e combinação de forças e

consenso para obter o controle social. (ACANDA, 2006).

148 Escolha metodológica já justificada na introdução. 31% 9% 21% 6% 21% 12% Precisou trabalhar

Precisou trabalhar para ajudar a família

Maternidade/paternidade

Mudou de cidade para trabalhar

Outros ligados a necessidade de trabalhar: reprovação, cansaço físico, falta de interesse.

Outros: União estável; homofobia, tráfico.

responderam que sim. Desses, apenas um (01) tinha 10 anos, ou seja, ainda era, conforme o ECA, uma criança (pessoa até doze anos de idade incompletos). Os demais estavam na condição de adolescentes (entre doze e dezoito anos de idade), sendo que dez (10) tinham entre 16 a 17 anos, e onze (11) entre 12 e 15 anos (tabela 18).

Nesse contexto produtivo, as condições de “desenvolvimento econômico local” não só abrem espaços para as particularidades da inserção da força de trabalho de criança e adolescente na produção de mercadoria na “indústria domiciliar”, como contribuem para que haja no município influência contraproducente nos índices de escolaridade (como evasão escolar, baixo rendimento, ampliação da distorção idade-série). Além dos dados já apresentados sobre a realidade educacional, identifica-se nas entrevistas que apenas nove (09) dos trinta e dois (32) participantes poderão concluir o Ensino Médio até os 19 anos, o que equivale a 28,1%. A média nacional e do Nordeste é de 63,5% e 53,6%, respectivamente, em 2018149.

Tabela 18 – Abandono Escolar

Fonte: Questionário/Elaboração Própria

Ao se questionar sobre essa realidade de atraso no processo de formação, os jovens entrevistados revelaram que o abandono/evasão escolar está relacionado às condições sociais em que vivem, sendo algo comum para aqueles que estão inseridos no sistema produtivo. É válido salientar que o perfil dos jovens entrevistados é de filhos/as de trabalhadores/as do sistema produtivo/confecção que, inseridos no meio de produção, têm acesso a uma renda mensal que não é suficiente caso não haja participação de todos os membros da família. Ou seja, não eram jovens que poderiam escolher estudar ao invés de trabalhar, ao contrário, eram sujeitos que em algum momento precisaram se afastar do espaço educacional para priorizar o trabalho. Algumas declarações expõem essa realidade:

149 Dados disponíveis em: https://www.todospelaeducacao.org.br/conteudo/quatro-em-cada-10-jovens-de-19-

anos-ainda-nao-concluiram-o-ensino-medio. Acesso em: 24 abr. 2019.

Idade em que houve abandono escolar Quantidade

10-12 anos 01

12-15 anos 11

16 -17 anos 10

“Por conta do cansaço físico excessivo, preferi dar uma pausa.” (Entrevistado/a 10).

“Reprovei bastante, faltava, porque eu trabalhava durante o dia e batia o cansaço.” (Entrevistado/a 02).

“Dificuldade na família, tinha que ajudar... trabalhava.” (Entrevistado/a 13).

Essas referências aos dados educacionais foram utilizadas para uma aproximação com a discursão sobre como o trabalho infantil compromete o desenvolvimento social, cultural, lúdico e educacional do sujeito, uma vez que a relação de trabalho na infância pode resultar no abandono escolar e na baixa escolarização, bem como contribuir com o baixo rendimento educacional. É valido salientar que o fato de o perfil dos entrevistados ter sido de estudantes do EJA-Ensino Médio foi pela hipótese de que estes sujeitos não conseguiram concluir o EM antes dos 19 anos, visto que tiveram de trabalhar ou que esta ação os colocava em condições de abandono e reprovação – hipótese que foi comprovada pela pesquisa.

Outro fato observado nas declarações é que a inserção de trabalho de crianças e adolescentes na produção têxtil tem implicação diretas em suas vidas: a reprovação era comum entre os entrevistados, todos a apontaram em algum ano ou desistência, além das faltas contínuas nas aulas por motivos relacionados ao cansaço e do baixo aprendizado. Essa informação também confirma que a infância trabalhadora teve de assumir as jornadas de trabalho juntamente à jornada educacional, sendo essa prejudicada pela inserção ao trabalho, que ainda hoje se mantém.

Todos os entrevistados tiveram atividades remuneradas antes dos 18 anos. Vinte e nove (29) deles trabalharam na confecção têxtil, com predomínio de ações como costura, além de outras funções, como ajudantes gerais (“cassaco”) no aprontamento, no corte de peças, na limpeza de linhas, e como estoquistas. O “cassaco” é uma atribuição dada aos que não têm experiência ou algum ofício específico150 – o que a torna propícia para a inserção de crianças e adolescentes –, sendo aquele sujeito na produção que desenvolve ações de apoio, de limpeza de peças, de organização, de controle dos produtos, de abastecimento dos/das costureiros/as.

O processo de produção em Toritama é predominantemente fragmentado e terceirizado de modo informal. São muitas as etapas e é comum que cada fabrico/facção seja referência em uma delas. Na “cidade fábrica”, o processo se inicia com a compra e venda do jeans, que não é fabricado na região; a etapa do design depende do tamanho da empresa, mas quando ocorre também é terceirizado. As fases passam pelo corte, pela costura (montagem da

peça), pela lavagem e pelo aprontamento (também conhecido como acabamento, que abrange a limpeza, a prega de botões, a aposição de etiquetas – TAGs –, a lavagem, a passadoria – ato de passar ferro nas peças – e a embalagem), tendo, por fim, a comercialização, que pode acontecer diretamente nas lojas próprias ou nos boxes e barracas das feiras (atacado e varejo), ou até através da entrega no atacado aos compradores (MORAIS, 2016). Como podemos observar na figura a seguir:

Figura 8 – Etapas da produção do jeans

Fonte: Morais (2016)

A presença do trabalho de crianças e adolescentes, indicados pelos/as entrevistados/as, localiza-se principalmente nas facções, com destaque para o momento do corte, costura e do aprontamento. Nessas etapas requerem uma maior quantidade de força de trabalho.

Na “cidade fábrica”, a produção é imbrincada de relações pretéritas da exploração do capital, a exemplo da junção do “trabalho domiciliar” com o “salário por peça”, das dinâmicas de acumulação flexível e de produção flexibilizada, externalizada, e da terceirização da maior parte da produção, que tende a responder ao consumo imediato do mercado. Em um formato de pequenos aglomerados produtivos – em espaços como casas, garagens, pequenos galpões – que fragmentam a produção, cada facção se especializa em uma etapa.

Em relação à condição de trabalho, na data da entrevista todos se encontravam com vínculos de trabalho, predominantemente na produção/confecção têxtil, sendo que vinte e dois (22 dos 32) dos casos analisados (66% dos entrevistados) atuavam como empregados. No entanto, seis (06) declararam que trabalham de forma autônoma, desses três (03) trabalham na própria residência, na produção do jeans. Os demais (04) atuam no comércio e serviço (vendedor de água, manicure, barbeiro).

Um dado importante a ser observado é que 78% dos entrevistados permanecem vinculados à principal dinâmica produtiva, que é a de confecção do jeans. Entre as funções desenvolvidas, destaca-se a atividade de costura. Essa informação direciona à apreensão de que, nessa dinâmica produtiva, o processo de aquisição das técnicas de corte e costura ainda na infância encaminhará a criança para a função que terá na sua fase adulta, já que é o setor econômico que mais absorve força de trabalho.

Sobre a formalização desses vínculos, apenas três (03 dos 32) dos participantes possuem as garantias mínimas de proteção social por meio do registro na carteira de trabalho; estes se encontram no mercado formal, ligado ao comércio, e não na confecção, e os demais atuam no mercado informal. Contudo, 90% dos entrevistados estão na informalidade, informação que corrobora as discussões e estudos apontados no decorrer da exposição151 sobre a produção do jeans do APL possuir um alto índice e se sustentar sob as bases de informalidade, ocasionando a desproteção social dos trabalhadores.

Intensificação do trabalho, baixa remuneração, ausência de direitos e de proteção previdenciária e trabalhista, falta de tempo livre para o lazer; viver para o trabalho, trabalhar para viver; é essa a realidade da “cidade fábrica”, que reproduz uma lógica que vem sendo tomada politicamente nos últimos anos no Brasil, com os desmonte nos direitos trabalhistas, a terceirização irrestrita e a tentativa da proposta da “contrarreforma na previdência”, em andamento, que, além de negar a esses sujeitos a possibilidade de acesso à aposentadoria, resultará na retirada dessa proteção dos que ainda a possuem.

Em Toritama já se reproduzia o discurso que ganhou espaço com a eleição de Jair Bolsonaro, e é no seu governo (2019) que as legislações sociais, trabalhistas e ambientais são colocadas como impeditivas do crescimento. Sendo assim, discutir sobre a informalidade, a degradação do meio ambiente e o trabalho infantil é algo conflituoso nessa sociabilidade da “cidade fábrica” e nesse contexto reacionário do atual governo.

Esse contexto reflete a realidade da “cidade fábrica”, na qual trabalhar e responder às necessidades imediatas são as únicas preocupações. Essas condições não são questionadas, tornando-se comuns ao cotidiano dessa sociabilidade; antagonicamente, falar em regularização e em legislação para eles é algo que implicará na existência da produção e do trabalho nesse APL.

Ao serem indagados sobre a realidade de em que vivem hoje, em especial para o lugar que ocupam na produção, os participantes afirmaram que a não conclusão do EM os impede 151 Recordemos que na pesquisa do Sebrae (2014) com as unidades produtivas, 86% dos trabalhadores estavam

de conseguir um “trabalho melhor” – que, para eles, seria de jornada fixa, com autonomia ou mesmo de carteira assinada –, pois não possuem as exigências básicas para o emprego formal, que é o EM completo, para atuarem nas fábricas formais, no comércio formal e na prefeitura. Alegaram também que por causa disso não estão “fazendo faculdade” hoje, para buscarem outras áreas de atuação.

O principal motivo para a conclusão do EM hoje é “uma oportunidade melhor”, o que demostra que há uma percepção dos entrevistados sobre o fato de que apenas a conclusão do Ensino Médio impossibilitou a ascensão a um “emprego melhor” ou a uma faculdade. Sendo assim, a inserção ao trabalho na infância, em que se teve de priorizar o trabalho, não seria, para eles, o motivo das atuais condições de trabalho, pois esse trabalho desenvolvido, ao contrário, os deu a experiência que os coloca aptos ao mercado de trabalho na sua fase juvenil e adulta. Vejamos algumas declarações:

“Sim. Pois eu poderia ter um trabalho melhor ou estar em um segundo módulo na faculdade.” (Entrevistada/o 08)

“Sim, pois o mercado de trabalho requer conhecimento do trabalhador, esses conhecimentos se obtêm no ensino médio.” (Entrevistada/o 16)

“Sim. Porque eu poderia ter me formado e estar em um bom emprego, sendo alguém na vida, conquistando meus objetivos.” (Entrevistada/o 14)

No entanto, há aqueles que relacionam o trabalho à garantia das suas necessidades básicas e da família. São aqueles que analisam a sua sobrevivência e não a sua percepção de futuro ou de um emprego melhor. Para eles, o trabalho foi e é necessário, pois houve um processo de “adultização” precoce em que desde cedo teriam de manter a sua sobrevivência sem o apoio da família. Como aponta a exposição abaixo:

“Sim, por que tive que trabalhar para manter minha casa, pois sou independente desde os 14 anos.” (Entrevistada/o 05)

Nessa fase da pesquisa não foi observado, na fala dos entrevistados, sobre o índice de informalidade existente no setor produtivo. As análises deles são perpassadas sob a “autorresponsabilização” de estarem nessa condição de trabalho ao invés de hoje ocuparem um lugar ou uma profissão que entendem como algo “melhor”. Essa percepção individualiza o problema, colocando o próprio sujeito como responsável pela sua condição de vida, na qual ele tem de buscar as formas de superação das contradições impostas em uma realidade cuja

presença do Estado não tem significado para a mudança ou amenização. Para essa juventude inserida no mercado de trabalho desde a sua infância e adolescência, a ausência de uma formação em nível médio implicou nas condições em que vivem e trabalham.

Um fator observado nessas entrevistas é que não há interesse dos jovens em continuar na produção do jeans. Observou-se, nas frequentes falas, uma certa “desilusão” em relação à limitação dos resultados econômicos desse meio produtivo, de suas conquistas e de seu futuro. As revelações estão voltadas para a conquista de um emprego melhor, com carteira assinada, na prefeitura, ou mesmo no comércio, e a saída do setor de produção têxtil. Há uma “exaustão” sobre aquilo que fazem. Apesar de jovens, isso é resultado de muitos anos nesse serviço repetitivo, considerado como cansativo, sem horários definidos, em que podem trabalhar até aos domingos caso haja demanda. Essa negação da atual forma de trabalho pode implicar em um desgaste emocional e um descontentamento da força de trabalho local, que apesar de ter acesso a “boas remunerações”, conforme apontam os entrevistados, diante da realidade em que vivem, isso se dá por meio da intensificação na exploração da força de trabalho, que negam outros espaços de enriquecimento da subjetividade para além do trabalho e da produção (no capital).

Quando apontam sobre uma “boa remuneração”, significa que poderiam ter acesso às suas necessidades, integrar-se na sociedade como trabalhadores e consumidores, e não apenas como sujeitos de direito e políticos. Poder consumir é a principal questão que justifica o trabalho, no entanto não se questionam, por exemplo, que a intensidade de trabalho nega também o acesso à escola (com qualidade), ao ócio/lazer (o lúdico na infância) ou mesmo à cultura.

“Não tinha lazer, porque só tinha trabalho. Estudava e trabalhava.” (Entrevistado/a 17).

A negação do lazer, por exemplo, sob a lógica de sociabilidade unicamente por meio do trabalho, conduz ao processo de alienação do sujeito a não questionar a sua própria realidade, a naturalizar as condições do cotidiano. Essa negação é refletida na concepção do lazer como tempo disponível para atender às necessidades materiais, não sendo visto como uma conquista resultante do trabalho, nem como fator de enriquecimento das experiências de vida (SÁ, 2003). Sendo assim,

A concepção de ócio como pernicioso aos trabalhadores é outro fator responsável pela agregação de um conceito ideológico ao lazer, que passa a

ser concebido como um tempo de privilégio para os mais favorecidos e como uma desvirtuação de caráter para os trabalhadores que vendem a sua força de trabalho. (SÁ, 2003, p. 36).

Essa reprodução da sociabilidade onde o lazer não está presente, não apenas pela inexistência do tempo livre, mas também pela ausência de lazer em um território onde o espaço e o tempo são para a produção, tornou-se um documentário: Estou me guardando para

quando o carnaval chegar. O carnaval é o único período em que a produção e a cidade param

e quando o “descanso merecido” é possível, mesmo que seja preciso vender objetos de produção, como as máquinas de costuras, ou mesmo bens essenciais, como a geladeira, para aproveitar o único momento permitido ao ócio nessa cidade que não para. A sinopse do filme assim sintetiza essa realidade:

A cidade de Toritama é um microcosmo do capitalismo implacável: a cada ano, mais de 20 milhões de jeans são produzidos em fábricas de fundo de quintal. Os moradores trabalham sem parar, orgulhosos de serem os donos do seu próprio tempo. Durante o Carnaval – o único momento de lazer do ano –, eles transgridem a lógica da acumulação de bens, vendem seus pertences sem arrependimentos e fogem para as praias em busca de uma felicidade efêmera. Quando chega a Quarta-feira de Cinzas, um novo ciclo de trabalho começa. (Diretor Marcelo Gomes, 2019).152

Figura 9 – Cartaz do documentário, 2019

Fonte: http://www.vitrinefilmes.com.br/site/?page_id=5357

Sobre as experiências vivenciadas pelos trabalhadores locais, um trecho da recente reportagem No agreste, polo de confecções serve de laboratório para reforma de Guedes153 mostra como é o ritmo de exploração e como vivem aqueles sujeitos que buscam, em algum momento, romper com essa dinâmica comum aos trabalhadores e trabalhadoras da confecção têxtil:

“Esse espírito capitalista cobra um preço. Danielle Rodrigues, 30, trabalhou durante nove anos em uma confecção, em jornadas de até 14 horas por dia. ‘O dinheiro é bom, mas você acaba se tornando escravo da máquina’, diz