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CAPÍTULO 2 A JUDICIALIZAÇÃO DE DIREITOS SOCIAIS: A LITERATURA NA

2.2. Trabalhos sobre a judicialização da educação

A maior parte da literatura sobre judicialização de políticas públicas no Brasil trata das questões relacionadas ao direito à saúde. Contudo, a judicialização do direito à educação tem algumas particularidades. Primeiro, no Brasil, esses direitos sociais têm tratamentos constitucionais diversos, não existindo na educação, por exemplo, questões relativas à distribuição de competências, que permeiam os debates sobre o direito à saúde. Outra diferença prática é que, no caso da judicialização por medicamentos, os atos do Poder Público decorrentes da decisão são razoavelmente simples se comparados à necessidade de criação de novas vagas em instituições de ensino, conforme se verificará adiante nesta pesquisa.

Ainda uma terceira diferença está no fato de que não há, no caso da educação, procura das classes mais elevadas para matricular crianças em instituições de ensino infantil. O principal ator responsável por essas demandas é a Defensoria Pública, que apenas representa famílias pobres, na acepção jurídica do termo, enquanto no caso da saúde as classes mais abastadas acessam o Judiciário com o objetivo de receber tratamentos ou medicamentos extremamente caros, conforme explicado anteriormente.

Diferentemente do que acontece nos estudos sobre o direito à saúde, o estado da arte dos trabalhos sobre a judicialização da educação demonstra que mesmo os trabalhos empíricos têm como premissa a aplicabilidade obrigatória e imediata do direito fundamental à educação. Um ponto em comum entre a maior parte desses trabalhos é que adotam a premissa de que o Judiciário deve atuar para assegurar a promoção do direito subjetivo à educação, exaltando a faceta individual do direito subjetivo e desconsiderando sua dimensão coletiva, que se revela a partir de uma política pública estruturada. Outra coincidência entre eles é que mesmo aqueles que fazem uma análise exaustiva da jurisprudência disponível utilizam as decisões como exemplos de como o Poder Judiciário

atua e para corroborar a afirmação de que esse poder pode atuar para garantir o direito à educação.

Assim como no direito à saúde, a doutrina brasileira sobre direito à educação costuma compreendê-lo como um direito fundamental social, com uma faceta individual e outra coletiva. Entende, portanto, que seus titulares possuem direitos subjetivos, apesar de estarem sob o manto da reserva do possível por sua aplicação demandar recursos financeiros (RANIERI, 2009). O direito à educação, no âmbito desta literatura, seria um pressuposto para o exercício da cidadania e um fim em si mesmo, já que estaria voltado para o desenvolvimento da pessoa e de sua dignidade (ARNESEN, 2010).

Em resumo, a doutrina compreende o direito à educação como um direito fundamental e, portanto, com eficácia plena e aplicabilidade imediata, sendo pressuposto para a qualificação para o trabalho, para a cidadania e dignidade, sendo oponível contra o Estado, a família e a sociedade (ARNESEN, 2010; RANIERI, 2009). Além disso, correntemente se afirma que o constituinte quis expressamente diferenciar o direito à educação e permitir sua exigibilidade por meio do Poder Judiciário quando afirmou em seu artigo 208, § 1º, que o acesso ao ensino é direito público subjetivo, cujo não oferecimento pelo Poder Público, ou sua oferta irregular, implica responsabilidade da autoridade competente (ARNESEN, 2010; DUARTE, 2004; RANIERI, 2009).

Assim, a doutrina não avalia de fato as consequências do fenômeno da judicialização para a própria promoção do direito à educação e essa perspectiva acaba sendo considerada como premissa para a maior parte dos trabalhos jurídicos no tema, mesmo aqueles com pretensões empíricas. Por exemplo, o fato de o direito à educação ser considerado um direito fundamental, segundo Eduardo Pannunzio, faz com que ele não deva ser visto como caridade, mas como prerrogativa, e que os titulares possam recorrer ao Poder Judiciário caso seus direitos estejam sendo violados. Em seu trabalho denominado “O Poder Judiciário e o Direito à Educação”, o autor lista e explica os mecanismos processuais que podem ser utilizados para proteger o direito à educação nos âmbitos nacional e internacional e analisa as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal sobre a educação, diferenciando por período e por tema, e também aquelas proferidas pelos órgãos internacionais em relação ao Brasil. Indica que o direito à educação é passível de adjudicação pelo Poder Judiciário, que teria, segundo ele, papel relevante para a promoção do direito à educação, principalmente nos casos em que o Legislativo e o Executivo são

omissos; ressalta, no entanto, que a jurisprudência do STF ainda é incipiente. Sugere que o papel do Poder Judiciário seja ampliado a partir da capacitação dos juízes e ampliação da conscientização dos cidadãos e ONGs para que acessem o Judiciário (PANNUNZIO, 2009).

No artigo denominado “A judicialização da educação”, os autores Carlos Roberto Jamil Cury e Luiz Antônio Miguel Ferreira apontam que, a partir da atual Constituição Federal, com a regulamentação do direto à educação, o Judiciário passou a intervir nas questões educacionais. O artigo pressupõe que os dispositivos constitucionais que dizem respeito ao direito à educação são de eficácia plena e aplicabilidade imediata, conferindo ao cidadão um direito subjetivo e público e que, portanto, seria direito de todos seu uso e gozo. Assim, se o Poder Executivo não os cumprir, pode o interessado solicitar o cumprimento ao Poder Judiciário. Exemplifica, então, os diversos temas afetos à educação decididos pelo Poder Judiciário, tais como obrigatoriedade de fornecimento regular de merenda de qualidade, obrigatoriedade de fornecer transporte escolar gratuito, obrigação de contratação de professores nos casos em que há cargos vagos, fornecimento das condições necessárias para que alunos especiais possam estudar, adequação do prédio escolar, vagas em creches e pré-escolas, entre outros assuntos. Conclui que a judicialização da educação configura um instrumento de proteção e obrigatoriedade de cumprimento dos direitos constitucionais, para transformar o que está estabelecido na lei em realidade (CURY; FERREIRA, 2009).

Uma abordagem parecida é aquela adotada por Adriana A. Dragone Silveira em seu artigo “Judicialização da educação para a efetivação do direito à educação básica”, no qual parte da premissa de que a educação básica é direito subjetivo estabelecido constitucionalmente e que sua não-oferta ou oferta irregular pelo Poder Público enseja intervenção do Poder Judiciário, inclusive com responsabilização do gestor. A autora então analisa as decisões do Tribunal de Justiça de São Paulo, no período entre 1991 e 2008, e identifica que o conflito mais frequente é a judicialização por vagas em instituições de ensino infantil, mas lista as demais questões que chegam ao Tribunal. Conclui que o acionamento do Judiciário ocorre em períodos específicos de alteração legislativa ou mudanças no contexto econômico e que é preciso considerar a sobrecarga de trabalho dos Tribunais, que causam morosidade do julgamento. Afirma, por fim, que a intensa

judicialização representa a conscientização da população sobre seus direitos e o Poder Judiciário, a arma dos movimentos sociais (SILVEIRA, 2011).

A mesma autora, em artigo intitulado “Atuação do Ministério Público para a Proteção do Direito à Educação Básica”, avaliou a atuação das Promotorias da Infância e Juventude de Rio Claro e Ribeirão Preto em diversos assuntos relacionados à educação. Especialmente no que tange às creches e pré-escolas, indicou que o entendimento judicial era de não obrigatoriedade deste direito, devido à prioridade constitucional ao ensino fundamental que existia à época, mas que o Ministério Público atuava intensamente no âmbito extrajudicial. Concluiu que a mera declaração de direitos não é suficiente para que eles tenham eficácia e que a sociedade deve procurar meios para sua maior aplicação, de modo que a atuação do Ministério Público no âmbito judicial ou extrajudicial seria uma excelente contribuição para fazer valer os direitos (SILVEIRA, 2009).

Álvaro Chrispino e Raquel S. P. Chrispino (2008) adotaram uma abordagem diferente, analisando a discussão de relações escolares entre educadores e alunos no âmbito do Poder Judiciário, tais como acidentes com aluno, morte, expulsão, agressão, entre outros. O artigo denominado “A judicialização das relações escolares e a responsabilidade civil dos educadores” concluiu que o Poder Judiciário se negava a intervir neste âmbito, ensejando a atuação do Judiciário. Os autores incentivaram os gestores e educadores a perceberem esse problema e listaram uma série de ações que deveriam ser implementadas para garantir os direitos e deveres dos atores envolvidos. Por fim, indicaram que “a judicialização das relações escolares precisa ser percebida como um sinal de que as decisões em educação estão fugindo do controle de seus atores principais” e afirmaram que “os atores educacionais podem e devem voltar a ser os protagonistas deste universo chamado Escola”.

Outros autores também já se propuseram a trabalhar especificamente a judicialização da educação infantil. No estudo “A judicialização de políticas públicas para a educação infantil”, Rodrigo Albuquerque de Victor parte da premissa normativa de que é papel do Poder Judiciário controlar e fiscalizar a implementação de políticas públicas e também da premissa empírica de que isto se verifica na prática. Para ele, a educação infantil é um direito fundamental e, portanto, segundo a Constituição, seria dotado de eficácia plena e imediata, além de ser um direito subjetivo relacionado à dignidade da pessoa humana, e, assim, parte do mínimo existencial. Defende, inclusive, que caberia ao Poder Judiciário o

argumento da reserva do possível, sustenta que seria facultado ao magistrado compelir o gestor a lançar mão da reserva orçamentária de contingência, prevista pela Lei de Diretrizes Orçamentárias (de VICTOR, 2011).

Expostas essas premissas, o autor descreve alguns exemplos de decisões judiciais, que abrangem tanto questões relacionadas à educação infantil quanto outras relacionadas ao direito da criança e do adolescente e da educação em geral16. Conclui, a partir da argumentação dos julgados, que o direito à educação infantil constitui direito indisponível e que não se trata de norma programática, mas cujo controle cabe ao juiz, pautado por argumentos jurídicos (de VICTOR, 2011). O trabalho utiliza a literatura jurídica para embasar seu ponto de vista e a jurisprudência como fonte normativa para retirar dela um enunciado que considera cogente.

Também José Reinaldo de Lima Lopes estudou a jurisprudência sobre concessão de vagas para ensino infantil. O autor considera que a Constituição estabelece os direitos à saúde e à educação como universais e que deveria haver fundos suficientes e políticas para seu fornecimento para todos que necessitem. Identifica que, entre os anos de 1997 e 2003, o TJSP publicou acórdãos de 16 ações civis públicas, sendo que 12 delas foram propostas pelo Ministério Público contra o sistema público de ensino, questionando seja o número de vagas, seja toda a política de educação pública do Estado. O Tribunal em geral aceitou o critério utilizado pelo Secretário Estadual de Educação, afirmando que era razoável e que estava no âmbito de discricionariedade do gestor público17. Lopes conclui que a maioria das decisões da Corte ignora totalmente o direito à educação e que a falta de um mecanismo de vinculação aos precedentes faz com que existam decisões completamente contraditórias, sendo o direito concedido para uns e negado para outros (LOPES, , 2006).

Por outro lado, algumas pesquisas investigam a atuação judicial para de fato compreendê-la, sem partir de premissas normativas sobre como o Judiciário deve atuar. Por exemplo, Carolina Martins Marinho estudou a argumentação judicial, sob o ponto de vista da capacidade institucional, nas decisões proferidas entre 1996 e 2005 em ações civis públicas referentes à garantia do direito à educação e propostas pela Promotoria de Justiça de Defesa dos Interesses Difusos e Coletivos da Infância e da Juventude (PJDIDCIJ) da capital do Estado de São Paulo. Concluiu que as ações analisadas trabalham com

16 O autor seleciona alguns Tribunais e casos sob a justificativa de que eles influenciariam em maior medida

a jurisprudência pátria. Todavia, não há qualquer comprovação desta afirmação no trabalho.

demandas já previstas em políticas públicas municipais e que o Judiciário desconsiderava o caráter coletivo, plurilateral, dos direitos sociais. Para a autora, a satisfação destes direitos demanda medidas que o Poder Judiciário não tem capacidade ou legitimidade para adotar, isto é, a universalização do acesso ao ensino garantindo atendimento ao padrão de qualidade (MARINHO, 2009).

Já a autora Adriana Dragone Silveira estudou as decisões do Tribunal de Justiça de São Paulo para compreender e descrever como ele decide nas ações relacionadas à educação. Diagnosticou que o TJSP confirmou o acesso às vagas de ensino fundamental concedido em decisões de primeira instância. Já no que diz respeito ao ensino infantil, a autora concluiu que o TJSP concedia as vagas alegando direito líquido e certo das crianças apenas nos casos em que o pedido dissesse respeito a um número definido de crianças, enquanto naqueles em que o pedido fosse genérico, defendendo interesse coletivo, o TJSP alegava impossibilidade de interferência do Poder Judiciário no planejamento orçamentário, que seria de competência do Poder Executivo (SILVEIRA, 2012). ). Os resultados da pesquisa de Adriana Dragone foram novamente investigados nesta pesquisa, porém com um universo mais amplo de decisões. O resultado foi coincidente, conforme será visto adiante.

É possível perceber que tanto a corrente que parte de premissas normativas que consideram a atuação judicial como um dever, quanto aquela que não assume este tipo de premissa, mas investiga a atuação judicial, ambas avaliam o fenômeno da judicialização da educação sob uma perspectiva interna ao Poder Judiciário, ou seja, têm como objeto de análise as decisões judiciais. Fica claro que todos esses estudos encerram sua análise na postura dos Tribunais diante dos casos relacionados à educação, fazendo uma descrição do conteúdo jurisprudencial ou de seu tema, e no máximo dialogando com a argumentação utilizada pelos Tribunais. Conclui-se, portanto, pela falta de trabalhos que avaliem a judicialização das políticas de educação sob o ponto de vista da eficácia desses direitos pensada coletivamente e que de fato questione a atuação dos tribunais e avalie as suas consequências. Muitos deles chegam a presumir certas consequências das práticas dos Tribunais, mas não as medem efetivamente.

São raros, portanto, os trabalhos que avaliam a judicialização das políticas de educação sob o ponto de vista da eficácia desses direitos pensada coletivamente e que de fato questione a atuação dos tribunais e avalie as suas consequências.

Vanessa Oliveira e Vitor Marchetti fazem uma primeira tentativa de avaliar as consequências da judicialização da educação infantil. Estudam a judicialização da educação no Município de São Paulo sob essa perspectiva e a comparam com a judicialização da saúde. Detectam que as estratégias de acionamento do Judiciário nestes âmbitos é distinta, já que na saúde ações individuais têm mais chances de prosperar, enquanto na educação tanto as ações individuais quanto coletivas são exitosas. A pesquisa também detecta a falta de terrenos públicos vazios para a construção de novas creches e a contratação de unidades conveniadas. Concluem que o Executivo reage às ações judiciais a partir do que chamam de “estratégia política”, ou seja, apenas se organizam para cumprir as decisões (OLIVEIRA & MARCHETTI, 2013).

Esta pesquisa pretende contribuir justamente neste âmbito em que identifico uma lacuna. Apesar de também analisar as decisões judiciais e sua argumentação, parte de uma descrição da política pública e avalia as consequências dessa judicialização, sob o ponto de vista dos atores envolvidos, enxergando a judicialização na perspectiva da promoção do direito social como um direito coletivo. Além disso, inova por apresentar um estudo de caso que foge ao padrão de atuação dos tribunais descrito em todos os trabalhos acima apresentados e analisa suas diferenças, possíveis efeitos e desafios. Este tipo de abordagem põe em dúvida as conclusões dos trabalhos mencionados, já que apresenta indícios de que a judicialização atomizada da educação infantil não só falha em promover o direito individual da criança, como principalmente desvirtua a lógica da política pública para priorizar apenas as partes que têm acesso ao Poder Judiciário, conforme será descrito nos capítulos adiante.