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Índice de Nível Socioeconômico (INSE)

2. Educação do Campo/Roça: início da caminhada

2.1 De onde falo? Cunha De quem falo? Caipira Como falo? Pesquisas

2.1.1 Tradições e mudanças no meio rural cunhense

O campo atual não é mais sinônimo de agricultura ou pecuária. Na roça há muitos traços do modo de vida urbano, e nas cidades, estilos do mundo rural, por exemplo, com os rodeios e as festas de peão. As formas de organização do campo também não são mais apenas agrícolas: “[...] o meio rural se urbanizou nas últimas décadas, como resultado do processo de industrialização da agricultura, de um lado, e, do outro, do transbordamento do mundo urbano naquele espaço que tradicionalmente era definido como rural” (BRASIL, 2001, p. 52).

Ao descrever o meio rural cunhense, Veloso (1995, p. 14) afirma ser este muito diverso, pois nele verificam-se setores divididos em bairros (82 rurais e 8 urbanos) “[...] que conservam a cultura rústica, embora esta mesma cultura se altere naturalmente ao longo do

contínuo rural urbano”. O autor afirma, ainda, que existem bairros no município de Cunha

onde as tradições e a cultura permanecem, quer pela distância desses bairros, quer pela grande quantidade de terras que possuem alguns proprietários, mantendo assim a “[...] ‘classe caipira

rural’ quase intacta, que engloba o preto, o mulato e o branco, ainda dependentes dos patrões para a lavoura” (VELOSO, 1995, p. 15).

Trata-se, segundo o autor, do mesmo “caipira” que resiste e “[...] trabalha, muitas vezes, a mesma terra em que seus antepassados lutaram e sofreram, dependendo, em muitos

casos, de antigos proprietários e povoadores”. Em muitos bairros do município de Cunha

ainda permanecem essas formas tradicionais de trabalho descritas por Veloso (1995), como nos bairros do Vidro, Córrego da Onça, Charquinho, Sertão do Mato Dentro de Cima e outras comunidades localizadas nos extremos do município e sem estradas de acesso aos municípios vizinhos.

No município de Cunha muitas mudanças ocorreram, principalmente nas duas últimas décadas do século XX e na primeira do século XXI. Mudanças na forma de plantar, de vestir, de se divertir, de aprender, de se comunicar, enfim, mudanças na forma de viver. Tratores substituíram os arados de bois, cavalos e mulas perderam espaço para os carros e motos. Até mesmo os jipes e caminhonetes tracionados, que foram indispensáveis até meados do século XX, perderam lugar para os “fuscas”, veículos fortes, mais baratos e com menor consumo de combustível. O “fusca” caiu de tal forma nas graças dos moradores da roça que o município

conquistou o título de “Capital Nacional do Fusca”, com direito a uma festa anual com

passeata de fuscas pelas ruas da cidade. Passarelli (2012) ressalta que em Cunha o fusca é uma ferramenta de trabalho. Havia na cidade, no ano de 2012, cerca de 3.000 fuscas, um para cada 8 habitantes (PASSARELI, 2012). A fotografia apresentada na Figura 10 retrata os modos de vestir de pai e filho e o fusca como meio de transporte de mercadorias, no caso, o leite.

Figura 10: A importância do fusca para os agricultores de Cunha. Foto: Hugo Passarelli, Jornal Estado de São Paulo.

As construções de taipa deram lugar às casas de alvenaria. Geladeira, televisão e telefone viraram itens de primeira necessidade em quase todas as casas da roça. As casas ainda conservam características da roça, com as vasilhas bem areadas e cuidadosamente organizadas nas prateleiras, os panos pintados a mão com beiradas de crochê e a galinhada no terreiro bem varrido com vassoura de mato. O fogão a lenha agora faz parceria com o fogão a gás, este último utilizado apenas em dias de chuva quando a lenha está molhada, ou para preparar uma comida rápida (MONTEIRO, 2015).

O acesso aos bairros mais distantes também melhorou, em relação ao transporte escolar, conforme Figura 11. O caminhão leiteiro de outrora, em muitos bairros foi substituído pelos ônibus. Os sapatões foram substituídos pelos tênis, as camisas, pelas camisetas de malha, os chapéus de palha, pelos bonés, e as calças rancheiras, pelas calças jeans, com tecidos mais leves, macios e com cortes modernos (MONTEIRO, 2015).

Figura 11: Trecho de estrada calçado no bairro do Quilombinho - Fotografia feita pelo pesquisador

Em alguns bairros, as pousadas e as suntuosas casas de veraneio misturam-se às construções simples da região (MONTEIRO, 2015) conforme Figuras 12 e 13.

Figura 13: Casa de morador do Bairro do Jaguarão - Fotografia feita pelo pesquisador

No município de Cunha, embora tenha havido mudança nos modos de vida, com a introdução de novas culturas, melhoria nos acessos e nas formas de produção, isso ocorreu em pequena escala. Trata-se de alguns poucos filhos de fazendeiros que saíram para estudar e retornaram para ajudar os pais. São eles que renovam os campos cunhenses e que investem em atividades como turismo, piscicultura, apicultura, produção de cogumelo shitaque, e outras culturas que se adaptam bem ao clima e ao tipo de solo da região. São eles também que procuram favorecer as mudanças com melhoria genética dos rebanhos e realização de cursos, feiras e eventos na cidade. Aliam-se a esses filhos da terra os novos moradores que, vindos das grandes cidades em busca de tranquilidade, contribuem com conhecimentos e com maneiras de explorar a terra.

Como já visto, nas pequenas propriedades cunhenses, principalmente nas mais distantes do centro urbano, permanecem as velhas formas de cultivo de milho, feijão e criação de gado leiteiro, sob responsabilidade de senhores e senhoras de idade avançada: “[...] de um modo geral, o caipira rural paulista da região de Cunha resiste às intempéries... pode–se dizer

roça. Os trabalhadores que resistem em geral são pessoas adultas (mais velhas) que precisam enfrentar, além da lida penosa, a violência e a insegurança ligada à fragilidade em razão da idade avançada, conforme destaca Veloso (2010, p.418): “[...] o êxodo rural é latente no município, motivado pela industrialização nos maiores centros urbanos [...] tornando deveras difícil a situação para os proprietários, porque não há sucessores, no caso seus filhos, para

suas terras”.

A Figura 14 retrata essa realidade na zona rural de Cunha: um cunhense que aos 82

anos ainda “toca a vida” em sua propriedade no bairro do Quilombinho, com a ajuda de um de

seus sete filhos.

Figura 14. Propriedade no bairro do Quilombinho. Fotografia feita pelo pesquisador.

A concentração de pessoas idosas na roça é apontada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), no Censo de 2010. Dentre a população com idade entre 50 e 70 anos, vivem na zona rural 11,54%, e na zona urbana, 13,06%, uma diferença de 1,52%, o que representa 332 pessoas nessa faixa etária. Na faixa etária 20 - 39 anos essa diferença salta para 4,17%: 12,64% vivendo na zona rural, e 16,81%, na zona urbana.

O município de Cunha passou por grandes transformações, a partir do projeto de eletrificação rural, o Programa Luz no Campo, na década de 1990.

Essas mudanças trouxeram mais conforto e melhor qualidade de vida para os moradores da zona rural. Entretanto, a maioria dos agricultores ainda é pobre e não vê perspectivas na roça para seus filhos, principalmente os moradores dos bairros mais distantes. Levar os filhos para estudar na cidade ainda é a única saída que eles encontram para a escolarização da prole. Esses filhos e filhas vão, mas poucos retornam para a roça.

A roça mudou, mas a maioria das escolas rurais permanece quase como no final do século XIX e início do século XX. Na maioria dos bairros rurais os alunos só podem cursar o Ciclo I do Ensino Fundamental nas escolas multisseriadas, com um professor que mora na cidade e vem lecionar todos os dias. Na Figura 15 apresenta-se uma escola rural de Cunha. Não fossem as cores, o modelo das carteiras, o modo de vestir de alunos e professores, as mochilas penduradas nas cadeiras e a presença de uma mãe no fundo da sala (acompanhando um menino de 5 anos que não pode contar com a educação infantil no bairro), esse registro poderia representar uma sala de aula do início do século XIX.

Figura 15: Escola de um bairro rural de Cunha. Fotografia feita pelo pesquisador.

O transporte de alunos da roça para a cidade também se transformou em um grande negócio, um negócio que contribui para as mudanças se acelerarem. Sem muitas perspectivas na roça, muitos pais estão trocando a lida no campo pelo transporte de alunos, o que lhes rende um salário fixo mensal. Cogitou-se até mesmo em realizar transporte de alunos de

educação infantil para a cidade, como no bairro do Monjolo e do Paiol. Essa ideia não se concretizou graças ao empenho dos pais que lutaram para ter os filhos educados na roça. Muitos alunos da zona rural de Cunha estão sendo transportados para as escolas urbanas, em vez de permanecerem nas escolas rurais de seus bairros.

Pesquisas de Ferreira e Brandão (2014) sobre o fechamento de escolas rurais e o transporte escolar apontam que, a partir de 1994, com a criação do Programa Nacional de Transporte Escolar (PNATE), por meio da portaria Ministerial nº 955, intensificou-se o processo de fechamento e nucleação de escolas na zona rural, devido ao aumento do número de alunos transportados.

O aumento expressivo nos repasses do PNATE aos estados e municípios visa possibilitar a continuidade das escolas no campo, o que não justifica a continuidade do fechamento de escolas no campo e a política do transporte escolar, visto que o valor passou de R$ 56.885.545,80 milhões, em 2003, para R$ 596,4 milhões em 2010 (FERREIRA e BRANDÃO, 2014, p. 11).

Os carros de transporte escolar estão espalhados por todos os bairros, e as escolas da roça estão cada vez mais vazias e sem significado para o homem da roça. Os bairros rurais mais próximos do centro urbano apresentam melhores condições de acesso, e são mais movimentados durante o dia. Muita gente vai para a roça de manhã e volta para a cidade à noite, de moto ou de carro, inclusive os professores. Contudo, a maior parte dos alunos são transportados para a cidade. Com essa política de atendimento escolar urbano, a roça está sendo cada vez mais esvaziada. Segundo Arroyo (2007, p. 159), são ações que “[...] expressam o total desrespeito às raízes culturais, identitárias dos povos do campo”.

Os alunos são deslocados diariamente para a cidade para estudar com professores da cidade e com colegas da cidade. Assim, os professores “[...] não precisam mais se deslocar ao campo por umas horas e trabalhar nas precárias e dispersas escolas rurais, nem será mais

necessário qualquer adaptação à realidade rural” (ARROYO, 2007, p. 159).

Na Figura 16 apresentam-se os veículos de transporte de uma escola rural. Nessa escola estudam cinco alunos de outro bairro. Dois motoristas e dois monitores aguardam os cinco alunos, que estudam na escola no período da manhã. As escolas de seu bairro de origem

já foram fechadas, e a escola onde estudam também corre o risco de ser fechada, pois os alunos desse bairro são transportados para escolas da cidade ou para uma escola de um bairro vizinho mais próximo da área urbana.

Figura 16 - Veículos de transporte de alunos em um bairro rural de Cunha. Fotografia feita pelo pesquisador.

A roça, em Cunha, é um espaço negado. A cultura da roça é desvalorizada. São poucos os movimentos políticos, culturais e sociais que favorecem o desenvolvimento da identidade do homem da roça, em Cunha. Dentre eles destacam-se a ONG (Organização não Governamental) Serra Acima, a OSCIP (Organização da Sociedade Civil) Caminhos de Cunha; o Instituto Carlito Maia e as Sociedades de Bairros das comunidades do Sítio e da Pedra Branca, e a SADICAC (Sociedade de Amigos do Distrito de Campos de Cunha).

Atuam nesse setor também as organizações religiosas, como as pastorais da criança e da família da igreja católica. Sair da roça é o futuro da maioria dos jovens. A escola tem contribuído para o êxodo rural, no município de Cunha (SHIRLEY, 1967; CALDART, 2002; FERREIRA, 2014).