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3 ESTUDOS DA TRADUÇÃO

3.3 TRADUÇÃO TEATRAL

Trabalhar com Estudos da Tradução na área teatral não é algo simples. As relações a serem analisadas, no âmbito do teatro, são muito mais complexas do que aquelas da área da literatura, pois o teatro por si só já representa uma tradução. Segundo Pavis (2008ª, p. 124) a tradução no teatro passa pelo corpo dos atores e pelos ouvidos dos espectadores. Pavis propõe um esquema para uma melhor compreensão das sucessivas transformações do texto dramático traduzido, analisado dramaturgicamente, enunciado cenicamente e recebido pelo público. “[...] essas diversas concretizações são distinguidas apenas para clarificar a teoria e o processo de aproximações sucessivas que é a tradução” (PAVIS, 2008ª, p. 126). O esquema abaixo ilustra a série de concretizações sucessivas:

Neste âmbito consideramos T0 (T = tradução) o texto feito pelo autor teatral, no nosso caso Pirandello. É a sua própria interpretação da realidade, naquele determinado contexto e em relação com a cultura vivenciada por ele.

T1 seria a tradução interlingual feita pelo tradutor. Aqui temos T1A sendo a tradução de Ruggero Jacobbi, e T1B aquela de Millôr Fernandes. Nesta etapa são realizadas adequações textuais, linguísticas ou culturais tendo em vista o pólo de chegada. “T1 é, na verdade, o texto em L2 impresso, seja ele apenas para leitura dos atores ou para leitura do público em geral, na forma de livro.” (KAROSS, 2007, p. 21).

Em seguida, temos T2, que seria a tradução feita pelo diretor e pelos atores, para possibilitar a passagem do texto do papel para a cena, tendo sempre em vista a cultura de chegada e a época da encenação. Assim, aqui podemos ter alterações até mesmo no cenário ou objetos de cena. A peça pode sofrer cortes devido ao tempo previsto para a apresentação, e as falas são também modificadas, modernizando-as ou tornando-as mais fluentes para os atores de acordo com a movimentação em cena. T2 será diferente para cada companhia teatral que o representar, e mesmo pela mesma companhia que decidir reapresentá-lo após alguns anos, em uma nova adaptação, que nada mais é que um novo T2.

A meu ver, o que Pavis chama “concretização dramatúrgica” corresponde ao que Delabastita e D’Hulst denominam “versão para o palco” (pág. 9), e Bassnett chama o “cenário” em que a companhia trabalha (p. 91). Nesse ponto, a atenção ao encenável e “falável” passa ao primeiro plano, a linguagem sendo testada, ajustada, através da experimentação e da incorporação de indicações de tempo e espaço encontradas no texto, e.g., no caso da execução extralingüística de determinadas rubricas. (O’SHEA, 2000, p. 47)

Como exemplo de concretização dramatúrgica de Vestire gli ignudi podemos citar a temporada de 9 a 25 de janeiro de 2009 em Roma sob a direção de Walter Manfrè. Naquele T2 a personagem de Ema, a criada, foi cortada, sendo suas falas repassadas à Dona Honória, a dona da casa, ou eliminadas. Outra personagem foi incluída na história, a menina, filha do cônsul, cuja morte deu o mote à história. No texto de Pirandello são inúmeras as referências a ela, mas ela não

aparece em nenhum momento. Nesta encenação uma criança faz o papel da menininha, sem falas, mas como uma presença quase que constante chamando Ercília com o olhar. A protagonista, Ercília, no início do espetáculo, entrou pelo meio do público em direção ao palco de mãos dadas com a menina. Tal entrada cruzando a plateia tampouco estava prevista no texto original. Esse exemplo, porém, é de uma peça escrita e encenada em italiano, não de um texto traduzido; mas concordamos com O’Shea quando afirma que “tradução e encenação de textos dramáticos ′não-originais′ constituem atividades comparáveis à escritura e à encenação de textos dramáticos ′originais′.” (O’SHEA, 2000, p 43).

T3 é a concretização teatral, é a representação cênica da peça. T3 também pode sofrer alterações durante uma temporada de apresentações devido à resposta do público ou ainda devido ao espaço físico; no caso de apresentações em diferentes palcos ou ambientes diversos como praças, escolas, etc., onde tudo deve ser revisto, como o uso da iluminação, som, posicionamento de objetos de cena, cenários e, de consequência, a movimentação dos atores em cena, as marcações e muitas vezes o próprio texto. Como cada apresentação é única, teremos tantos T3 quantas forem as apresentações daquele espetáculo.

Enfim, T4 é a apresentação vista e fruída pelo público, sendo única para cada espectador, tendo assim infinitas traduções do mesmo espetáculo. Cada pessoa do público verá e interpretará a peça a sua maneira, de acordo com as suas experiências e visões de vida. Cada um lhe dará significados próprios de acordo com o que viu que não é igual ao que o vizinho de cadeira viu.

Essas diversificações, entre uma e outra apresentação, serão muito maiores no caso de peças pensadas para uma maior interação com o público, quando o público reage e o ator deve improvisar (recitare a soggetto) ou nas apresentações para o público infantil, pois ainda que a peça não seja pensada para este fim, é impossível que as crianças fiquem quietas e não participem ativamente com suas críticas ou sugestões, em alta voz. Em ambos os casos o ator não pode ignorar estes apelos do público que lhe exigem uma resposta imediata, ainda que esta não esteja prevista no texto escrito. Não existe teatro sem público. A comunicação teatral só acontece quando recebida pelo público. Assim a plateia também faz grande diferença, mudando em muito o espetáculo de um dia para o do dia seguinte com sua presença viva e energia, comprando a ideia proposta, ou uma plateia quase adormecida de poucos espectadores em um amplo teatro. Pode-se imaginar o efeito psicológico sobre o ator que, por mais que queira, não conseguirá representar da mesma forma, mudando em muito sua performance, sua tradução daquele personagem.

Todas estas traduções, T0, T1, T2, T3 e T4, em suas multiplicidades, acontecem também devido ao fato de que o teatro por sua própria natureza é considerado como obra em processo, segundo Cecília Salles, que diz:

O crítico, com a intenção de compreender estes objetos, necessita de instrumentos que falem de mobilidade, interações, metamorfoses e permanente inacabamento, isto é, uma crítica de processo. São objetos que oferecem resistência diante de teorias habilitadas a lançarem luzes sobre o estático; pedem por uma crítica que lide com as diferentes possibilidades de obra, pois estas estão permanentemente em estado provisório. (2006, p. 162) [...] Cada versão da obra pode ser vista de modo isolado, mas se assim for feito, perde-se algo que a natureza da obra exige. São obras que nos colocam, de algum modo, diante da estética do inacabado; nos incitam a seu melhor conhecimento e o conseqüente acompanhamento crítico dessas mutações. (2006, p. 170)

Assim como vimos em T2 o diretor e os atores modificarem muitas vezes o texto em busca de fluidez, de pronúncia mais fácil, da mesma forma o próprio tradutor de T1 poderia procurar fazer este trabalho a partir de leituras em voz alta, diminuindo assim o número de modificações em T3, propondo um texto mais próximo daquele que poderá ser executado em cena. É um ponto a ser analisado nas traduções de Vestir os nus, levando-se em conta, porém, a grande diferença temporal existente entre ambos.

O’Shea (2000) apresenta na conclusão de um artigo um apunhado de alguns autores e também sua conclusão sobre escrita e tradução de texto dramático:

[...] (a) especificidade do texto dramático se aplica tanto à composição original quanto à tradução, com duas diferenças fundamentais: a primeira, o fato de que, na dramaturgia original, decisões básicas (estrutura, enredo, personagens, conflito, denouement etc.) já terão sido tomadas pelo autor; a segunda, conseqüência da primeira: o fato de que tradutores de/para teatro estão limitados a um meio de expressão no qual podem apenas recriar,

e não gerar. Para Anthony Vivis, tradutor teatral, a primeira diferença encerra uma certa “liberdade”, a segunda, uma “responsabilidade” (pág. 39). Para John Clifford, dramaturgo, ator e tradutor, “o trabalho de tradução [teatral] será, basicamente, criativo; sentir com os personagens, tornar-se os personagens. E ouvir o que têm a dizer” (p. 266). A noção de que traduzir para teatro é escrever para teatro ilude em sua simplicidade. Além das conseqüências concretas que tal constatação possa ter sobre os procedimentos de trabalho e mesmo sobre a psicologia do tradutor teatral, ela permite uma valiosa - e liberalizante – inferência: o texto dramático original não tem por que ser colocado em posição hierarquicamente superior ao traduzido, em toda sua especificidade performática e em sua nova inscrição cultural, como algo que, de fato, ele constitui: um novo original. (O’SHEA, 2000, p. 54)

Outra questão sobre a qual sempre se fala nos Estudos da Tradução é quanto ao termo fidelidade, com todos os seus questionamentos. Na área do teatro não poderia ser diferente, assim, de acordo com Sirkku Aaltonen, a tradução teatral

[...] trouxe uma nova dimensão à tradução de textos, e, enquanto na tradução literária, o discurso anglo-americano contemporâneo enfatiza a invisibilidade do tradutor e a fidelidade (VENUTI, 1995), a tradução teatral reescreve ou adapta ativamente muitos aspectos do texto de origem, justificando esta estratégia ao referir-se às ‘necessidades de ‘performance’ e critérios tais como as ‘possibilidades de encenação’ e de ‘produção verbal do texto’. (2003, p. 41)

Este é mais um questionamento para esta dissertação. Até que ponto ser literal ou recorrer à livre adaptação? Onde estão os limites? Qual seria o ponto ideal, visto que fidelidade total sabemos não existir, nem ser desejável? Como este aspecto foi visto por Millôr Fernandes, e por Ruggero Jacobbi?

Esta dissertação trata da tradução teatral. Notamos que esta tradução não se restringe ao texto escrito traduzido (T1), pois há uma

mudança de signo. Como vimos, também, são vários os agentes da tradução, desde os tradutores propriamente ditos (no nosso caso Millôr Fernandes e Ruggero Jacobbi), passando pelos diretores e atores no momento de adaptar o texto ao palco, pelos atores no momento de concretizar o texto a partir da sua interpretação no palco, até a recepção pelo público. Todos eles têm a sua importância e este trabalho buscará compreender esta totalidade de relações, pois sem ela o teatro não existe, não sendo possível permanecer tão-somente no texto escrito. É a partir dela que o público formará sua opinião sobre a obra de Pirandello. Segundo Pavis:

Um ator, enquanto modelizador e intérprete último do seu texto e do seu corpo, pode recuperar a mais miserável das traduções, como também pode massacrar a mais sublime. (2008, p. 153)

Basta lembrar uma fala de um dos personagens de Pirandello em Sei personaggi in cerca d’autore: “Compare-se a interpretação dada a um determinado personagem por diversos atores. Cada um o representa a seu modo, a seu jeito.” (SOUZA, 1946, p. 50).

Assim ressaltamos a importância de cada um desses agentes para uma tradução de sucesso. Podemos ter o melhor texto teatral de Pirandello, traduzido pelo melhor tradutor, se for encenado por uma péssima companhia, com um péssimo diretor e péssimos atores, como será possível que o público venha a gostar de Pirandello?