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Trancamento em decorrência de obtenção das provas por meios ilícitos

No documento O trancamento do inquérito policial (páginas 124-129)

O direito dos interessados em introduzir, seja no processo, seja no inquérito policial, as provas úteis e necessárias à demonstração dos fatos não é absoluto. Em verdade, este direito sofre limitações em razão da tutela conferida pelo ordenamento a outros valores e interesses também merecedores de proteção.253

Segundo a Constituição Federal, "são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos (art. 5º, LVI).

Quando se fala em provas ilícitas, quer-se dizer de provas obtidas por meios que atentem contra a Constituição ou normas infraconstitucionais.

Para Guilherme de Souza Nucci, tanto será prova ilícita aquela obtida com violação de uma norma penal - como a confissão extraída mediante tortura - como a que viole norma processual penal - como o laudo assinado por um perito que não seja oficial.254

Há, porém, quem entenda que se classifica a prova como ilícita quando obtida com violação das regras de direito material, ao passo que se classifica como prova ilegítima

253 GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Direito à prova no processo penal. São Paulo:

Eevista dos Tribunais, 1997, p. 91.

254

NUCCI, Guilherme de Souza. Provas no processo penal. São Paulo: Eevista dos Tribunais, 2009, p. 31.

aquela obtida com violação das regras de direito processual. Ambas fazem parte do gênero de provas vedadas.255 Fala-se, também, em prova vedada quando obtida de forma contrária

a um princípio do direito positivo.256

Essa classificação é importante, na medida em que se houver prova ilegítima, haverá nulidade do ato, uma vez que ausentes os requisitos necessários à configuração de sua validade257, devendo o ato ser renovado258 com a observância das formalidades legais

(Código de Processo Penal, art. 573), ao passo que a prova ilícita é inadmissível no processo e no inquérito e deles deverá ser desentranhada.

Gomes Filho cita a pena da inutilizzabilità do direito processual penal italiano para reforçar essa diferenciação entre provas ilícitas e provas ilegítimas, sustentando que a regra do art. 191 do Código de Processo Penal italiano de 1988 se aplica às proibições previstas não só na lei processual penal, mas também àquelas previstas na lei penal.259 Essa norma

dispõe que as provas obtidas com violação dos deveres estabelecidos pela lei não podem ser utilizadas (art. 191.1). Além disso, a inutilizabilidade pode ser reconhecida também de ofício em cada estado e grau do procedimento (art. 191.2).

O Código de Processo Penal, por sua vez, dispõe que "são inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais e legais" (art. 157, caput).

Destarte, caso uma prova seja considerada ilícita, deverá ser desentranhada dos autos. Além disso, deverá ser inutilizada (art. 157, § 3º, do Código de Processo Penal).

255 Da prova penal: tipo processual, provas típicas e atípicas. Campinas: Conceito -

Millennium, 2008, p. 121.

256 GEINOVEE, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antonio Magalhães; FEENANDES,

Antonio Scarance. As nulidades no processo penal. 12ª ed. rev. atual. São Paulo: Eevista dos Tribunais, 2011, p. 126.

257 ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal. São

Paulo: Eevista dos Tribunais, 2003, p. 157.

258

GEINOVEE, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antonio Magalhães; FEENANDES, Antonio Scarance. As nulidades no processo penal. 12ª ed. rev. atual. São Paulo: Eevista dos Tribunais, 2011, p. 127.

259

GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Direito à prova no processo penal. São Paulo: Eevista dos Tribunais, 1997, p. 103.

Mas e no caso de inquérito policial? Deverá ser desentranhada a prova ilícita e inutilizada? Qual será o proveito de seguir tramitando o inquérito se a prova essencial tiver sido obtida por meio ilícito?

Em primeiro lugar, quando a Constituição Federal fala em inadmissibilidade de provas obtidas por meios ilícitos no processo, evidentemente que a melhor interpretação é pela inadmissibilidade da prova ilícita também no inquérito policial.

Além disso, já estudamos a correlação entre a justa causa para o inquérito policial e para a ação penal, demonstrando a íntima relação entre o conjunto de atos investigativos e o processo. Se a prova essencial tiver sido obtida por meio ilícito no inquérito, nenhuma utilidade haverá em seguir sua tramitação, visto que não poderá ser utilizada no processo justamente em razão dessa correlação entre inquérito e a ação penal.

Assim, caso obtida prova no inquérito por meio ilícito, deverá ser desentranhada e inutilizada, devendo os autos ser encaminhados a juízo para que seja determinado seu encerramento. Caso isso não ocorra, poderá o imputado pedir seu trancamento ao órgão jurisdicional competente.

A reforma do Código de Processo Penal pela Lei n. 11.690, de 9-6-2008, incorporou ao art. 157 do Código de Processo Penal três parágrafos. Sobre um deles já discorremos (§ 3º que trata da inutilização da prova). Os demais tratam da prova ilícita por derivação (§ 1º) e da fonte independente (§ 2º).

A prova ilícita por derivação é aquela que decorre da prova originalmente obtida por meio ilícito. Não haveria razão para se retirar uma prova ilícita e depois ser utilizada a prova derivada daquela. Se há uma escuta telefônica sem autorização judicial, e por meio dela é localizada uma testemunha, ante a ilicitude da primeira, não poderá ser aproveitada a prova testemunhal por ser derivada de prova obtida por meio ilícito.260

Na hipótese acima, se essa prova testemunhal for essencial, não havendo outra para supri-la, ocorrerá hipótese de trancamento.

260

NUCCI, Guilherme de Souza. Provas no processo penal. São Paulo: Eevista dos Tribunais, 2009, p. 32-33.

Sendo assim, devem ser diferenciadas as situações ocorridas no inquérito. Caso a prova obtida de forma ilícita seja fundamental para o oferecimento da denúncia e não houver outras provas que a supram, o inquérito deverá ser encerrado ou, se não o for, trancado por decisão judicial ante a falta de justa causa para seu prosseguimento.261 Porém,

se houver outras provas produzidas no inquérito policial e que sejam suficientes para a apresentação da acusação, não se fala em trancamento ou em encerramento das investigações.

Se a prova ilícita servir para absolver o acusado, recorre-se ao princípio da proporcionalidade para valer a preponderância do princípio constitucional da presunção de inocência e o da ampla defesa, visto que vinculados à liberdade individual.262

Dessa forma, ainda que a prova ilícita tenha sido obtida pelo próprio réu, é possível que seja admissível em seu favor mediante a aplicação do princípio da proporcionalidade dada a justificação legal da antijuridicidade, como a legítima defesa.263 Em outras palavras,

o princípio da proporcionalidade fundamenta a admissão da prova ilícita no inquérito e no processo desde que em prol do imputado ou acusado.264 Essa aplicação do princípio da

proporcionalidade com vistas à admissão da prova ilícita em favor do réu também deve ser considerada na ótica do direito de defesa, que também é assegurado constitucionalmente.265

O direito da prova à inocência também decorre da dignidade da pessoa humana como valor insuperável na ótica da sociedade democrática.266 Assim, admite-se, com base no princípio

da proporcionalidade, a prova ilícita como forma de demonstrar a inocência de um réu.267

261

FEENANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 6ª ed. rev. amp. atual. São Paulo: Eevista dos Tribunais, 2010, p. 89.

262 NUCCI, Guilherme de Souza. Provas no processo penal. São Paulo: Eevista dos

Tribunais, 2009, p. 33.

263

AVOLIO, Luiz Francisco Torquato. Provas ilícitas: interceptações telefônicas,

ambientais e gravações clandestinas. 3ª ed. rev. amp. atual. São Paulo: Eevista dos Tribunais,

2003, p. 67.

264

SOAEES, Fábio Aguiar Munhoz. Prova ilícita no processo. Curitiba: Juruá, 2009, p. 61.

265 GEINOVEE, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antonio Magalhães; FEENANDES,

Antonio Scarance. As nulidades no processo penal. 12ª ed. rev. atual. São Paulo: Eevista dos Tribunais, 2011, p. 129.

266 GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Direito à prova no processo penal. São Paulo:

Eevista dos Tribunais, 1997, p. 106.

267

ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal. São Paulo: Eevista dos Tribunais, 2003, p. 158.

Ademais, deve-se admitir a existência de exceções à regra constitucional quando outro valor fundamental também reconhecido na Constituição Federal mereça proteção, de modo que, pelo critério da proporcionalidade, o direito fundamental seja mais relevante do que o bem atingido com a obtenção da prova.268 Como o direito à absolvição decorre da

presunção de inocência e do direito a ampla defesa, direitos fundamentais, evidente sua prevalência sobre a proibição de produção de provas ilícitas, com base na proporcionalidade, até para que o verdadeiro autor do fato não permaneça impune, sendo evidente que o Estado não tem interesse em punir um inocente.

Sobre o tema das provas ilícitas, As Mesas de Processo Penal, atividade ligada ao Departamento de Direito Processual da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, se posicionaram por meio das seguintes Súmulas:

"Súmula 48 - Denominam-se ilícitas as provas colhidas com infringência a normas e princípios de direito material.

"Súmula 49 - São processualmente inadmissíveis as provas ilícitas que infringem normas e princípios constitucionais, ainda quando forem relevantes e pertinentes, e mesmo sem cominação processual expressa.

"Súmula 50 - Podem ser utilizadas no processo penal as provas ilicitamente colhidas, que beneficiem a defesa".269

Como estamos tratando de inquérito policial, essas questões devem ser levadas em consideração para fins de trancamento.

Por outro lado, quando não ficar evidenciado o nexo de causalidade entre a prova obtida por meio ilícito e a prova derivada, ou quando as provas derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente da primeira, serão admitidas no inquérito ou no processo (Código de Processo Penal, art. 157, § 1º) e, nesse caso, não se fala em trancamento.

268

FEENANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 6ª ed. rev. amp. atual. São Paulo: Eevista dos Tribunais, 2010, p. 84-85.

269 GEINOVEE, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antonio Magalhães; FEENANDES,

Antonio Scarance. As nulidades no processo penal. 12ª ed. rev. atual. São Paulo: Eevista dos Tribunais, 2011, p. 131.

A fonte independente é aquela que por si só seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova, desde que seguidos os trâmites próprios da investigação criminal (Código de Processo Penal, art. 157, § 2º). Pode-se citar como exemplo a realização de busca e apreensão por duas equipes diversas de policiais civis em uma residência. A primeira equipe realiza a busca sem autorização judicial, prova ilícita, portanto. A segunda equipe realiza a busca munida de mandado judicial quase que simultaneamente. Prova lícita, sem dúvida. Essa prova lícita é independente da primeira, de modo que pode ser juntada no inquérito policial sem qualquer mácula. Nesse caso, não se fala em trancamento por não ter sido a prova obtida por meio ilícito, apesar daquela realizada sem a observância do trâmites legais.

As provas ilícitas, uma vez inadmissíveis, não são prova. É um não ato. Não existem juridicamente e não têm nenhuma eficácia.270 Daí porque, uma vez obtidas as

provas por meios ilícitos no inquérito policial, sendo elas de natureza essencial e o único meio de prova que possa embasar futura ação penal, deverá ele ser encaminhado a juízo para ser encerrado, sob pena de ser trancado caso assim não se proceda.

No documento O trancamento do inquérito policial (páginas 124-129)