• Nenhum resultado encontrado

Transferência do risco nas obrigações genéricas

Uma vez que as compras e vendas internacionais, poderão muitas vezes ter como objeto coisas genéricas, é importante abordar o regime diferenciado relativamente a estas. Estaremos perante uma obrigação genérica194 quando o objeto da prestação se

encontra determinado apenas por referência a uma certa quantidade, peso ou medida de coisas dentro de um género, com regulação nos artigos 887.º e ss. do CC, de acordo com o disposto no artigo 539.º do CC. Nestas situações, as partes não referiram, aquando da celebração do contrato, nenhuma coisa concreta, mas apenas o próprio género da mesma, tendo de ocorrer um processo de individualização dos espécimes, denominada “escolha”,

193 Cfr. RAÚL VENTURA, Contrato de compra e venda no código civil – Efeitos essenciais…, cit.,

p. 594, refere que “Na venda de coisa indeterminada, a determinação da coisa acarreta a transmissão da propriedade (art. 408.º, n.º 2) e essa determinação pode ser feita por um ato do vendedor (art. 539.º), mas basta ver a possibilidade de a concentração se operar por outros meios (arts. 541.º e 542.º) para se compreender que o ato de concentração pelo vendedor tem a natureza não translativa dos outros modos de concentração. Mutatis mutandis para as vendas em alternativa.”; e ainda LUÍS MENEZES LEITÃO, Direito

das Obrigações, vol. III…, cit., pp. 25-26.

194 Para mais desenvolvimentos sobre o regime das obrigações genéricas e sobre o momento da

concentração da obrigação vide LUÍS MENEZES LEITÃO, Direito das obrigações, volume I…, cit., pp.138e

73

nos termos do artigo 400.º do CC. Essa escolha cabe, normalmente ao devedor195, como

dispõe o artigo 539.º, podendo em situações excecionais, enunciadas no artigo 542.º do CC, caber ao credor ou a terceiro.

A obrigação genérica passa a ser uma obrigação específica, aquando da concentração da obrigação, que por sua vez é o momento em que se transmite a propriedade196 e se transfere o risco, tal como é defendido pela doutrina.197

No caso de frutos naturais ou partes componentes e integrantes, regulados no artigo 880.º do CC, quer a transferência da propriedade quer a transferência do risco, ocorre no momento da colheita ou da separação. Tendo em conta que a situação regra é a de que a obrigação genérica se concentra com o cumprimento, o direito transfere-se, em regra, também com o cumprimento da obrigação.

A questão relacionada com a concentração das obrigações genéricas foi alvo de controvérsia, no século XIX, havendo doutrina defensora da teoria da separação198,

mediante a qual a separação da coisa pelo vendedor, e com o conhecimento do comprador, seria suficiente para que ocorresse a concentração, a declaração do vendedor e conhecimento do comprador, e doutrina que defendia a teoria da entrega ou do cumprimento, nos temos da qual, os riscos passam para o comprador através da entrega, e efetuada ou impedida pela mora da parte contrária.

195 Devendo essa escolha pelo devedor ser feita segundo juízos de equidade, como decorre do

artigo 400.º do CC, devendo por isso ser adequada à satisfação do credor, não podendo o devedor escolher os produtos com menor qualidade, aquando da escolha.ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO aplica ainda o artigo

239.º do CC, referindo que a escolha deverá ser feita de acordo com os ditames da boa-fé, de modo a reforçar esta ideia. Cfr ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das

Obrigações, tomo I, …, cit., pp. 593 e ss.

196 As regras das obrigações genéricas constituem uma exceção ao regime do princípio da consensualidade, não lhes sendo o artigo 408.º CC por isso aplicável. Neste sentido, cfr. MÁRIO ALMEIDA

COSTA, Direito das Obrigações…, cit., pp. 288 e ss., e p.725; JORGE RIBEIRO DE FARIA, Direito das

Obrigações, Vol. II, Coimbra: Edições Almedina, 1990, pp. 208 e 209.

197 Cfr. LUÍS MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III…, cit., pp. 25-26; LUÍS MENEZES

LEITÃO, Direito das obrigações, volume I…, cit., p.140e p.143;JORGE MORAIS CARVALHO, Transmissão

da propriedade e transferência do risco na compra e venda de coisas genéricas, in THEMIS, ano VI, n.º

11, p. 21, referindo que "A transferência do risco é a principal consequência da concentração da obrigação genérica, uma vez que, a partir desse momento, em caso de perda ou deterioração da coisa, não imputável a nenhuma das partes, o comprador não pode exigir outra coisa ao vendedor e tem de pagar o preço."; Para mais desenvolvimentos sobre o regime e dinâmica das obrigações genéricas, uma vez que não será objeto de aprofundamento neste trabalho, vide ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português,

II, Direito das Obrigações, tomo I…, cit., pp. 593 e ss.

198 Cfr. JORGE MORAIS CARVALHO, Transmissão da propriedade…, cit., p. 21, para mais

74

Em Portugal vigora a teoria da entrega ou do cumprimento199 ,200, que se encontra

consagrada no artigo 540.º do CC e estatui que enquanto a prestação for possível com coisas do género estipulado, não fica o devedor exonerado pelo facto de terem perecido aquelas com que este se dispunha a cumprir. Como tal, enquanto a obrigação não se concentra, passando de genérica a específica, não é o simples facto de as coisas dentro do género estipulado perecerem, que permite ao devedor considerar-se exonerado. Esta exoneração existe apenas a partir do momento em que se verifica a concentração da obrigação. Nesse sentido vale ainda o brocardo latino genus nunquam perit201.

No caso de as partes não terem regulado no contrato a matéria relativa à transferência do risco, e se apliquem os preceitos do CC, verifica-se que o risco transferir- se-á para o comprador aquando do momento do cumprimento da obrigação, ou nos casos previstos nos termos do artigo 541.º CC202, isto é, quando a concentração da obrigação

ocorrer antes do cumprimento, por acordo entre as partes; quando o género se extinguir ao ponto de restar apenas uma, ou a quantidade devida pelo devedor; quando o credor incorrer em mora, ou quando se esteja perante uma promessa de envio, como regulado no artigo 797.º CC. Este artigo será particularmente desenvolvido quando abordarmos o regime aplicável à transferência do risco nas vendas com expedição, no ponto 11. infra.

11 Transferência do risco nas vendas com expedição