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A transformação do regime disciplinar/estatal brasileiro como problema sociológico: a ciência como instituição, como prática e como ideologia

A partir da década de 1970, inúmeras mudanças incidiram sobre os regimes de produção de conhecimento científico2 e sobre a dinâmica da sua aplicação econômica, a inovação,

sobretudo na Europa e nos Estados Unidos. Essas transformações alteraram as estratégias do Estado na promoção da ciência, da tecnologia e da inovação, o lugar das universidades no sistema de produção e comercialização do conhecimento e a forma como as empresas capitalistas conduzem seus processos internos de inovação. Assim, a reestruturação das políticas nacionais de ciência e tecnologia, as reformas universitárias que vêm alterando os objetivos e práticas das instituições produtoras de conhecimento científico e as mudanças gerenciais que incidiram sobre a organização e o controle do trabalho de pesquisa e desenvolvimento nas empresas são expressões visíveis desse processo.

Paralelamente, o Brasil vem passando, nas últimas três décadas, por mudanças estruturais importantes tanto na sua dinâmica político-social – reflexo do processo de abertura política que, ao expor o aparelho de Estado à lógica da representação política, implicou, em tese, processos de democratização em diferentes esferas sociais – quanto na sua dinâmica econômica, resultado não só da transformação da estrutura econômica do país – a partir da abrupta abertura econômica dos anos 1990, do conseqüente enfraquecimento das empresas de capital nacional, do aumento do investimento externo direto, da privatização das empresas

2Os estudos acerca da produção de conhecimento – sejam eles da área de sociologia, economia, administração ou mesmo filosofia – reconhecem, em geral, a validade da idéia de que existem diferentes modos, sistemas ou regimes de produção do conhecimento, aos quais correspondem formas específicas de estrutura institucional, organização do trabalho, regime de recompensa, motivação subjetiva, práticas, valores e formas de gestão da propriedade intelectual. (MERTON, 1957; BOURDIEU, 2004; BIAGIOLI, 1998; NELSON, 2004; SHINN, 1980, 2000a, 2000b, 2008a).

estatais e do processo de liberalização como um todo – mas, também, da alteração do papel político-econômico do Estado – menos em função do enfraquecimento das formas de ação direta e indireta sobre a economia do que da redução da sua função de agente planejador do desenvolvimento industrial do país.

Os impactos da confluência desses processos sociais que se desenrolam no plano nacional e internacional sobre a atividade científica brasileira e sobre a dinâmica dos processos de negociação e institucionalização da ciência no país são o pano de fundo da presente pesquisa, cujo objeto de estudo é o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS) – suas pesquisas, seus pesquisadores, sua organização interna, suas estratégias de legitimação e institucionalização. Como dissemos, as mudanças que afetam a ciência brasileira serão analisadas a partir de duas perspectivas distintas: a dos padrões de institucionalização e legitimação social da ciência e a dos padrões de desenvolvimento da atividade científica enquanto prática de pesquisa e processo de formação de pesquisadores.

Estudar essa dupla dimensão da ciência – como construção institucional e como prática social – paralelamente e em uma única pesquisa não se justifica apenas por uma intenção descritiva que busca dar conta dos elementos constitutivos da ciência nas suas especificidades. Tanto a pesquisa empírica do LNLS quanto o contato com a produção sociológica que vem analisando as transformações da ciência mostraram que um estudo que pretenda entender criticamente o processo de mudança da ciência deve, necessariamente, olhar para a forma como se produzem os novos arranjos jurídico-institucionais que visam reconfigurar o funcionamento da ciência – ou seja, para as mudanças dos padrões de institucionalização da ciência – considerando o modo como esses novos arranjos transformam as práticas concretas daqueles que trabalham com pesquisa e formação de pesquisadores – ou seja, a reconfiguração da atividade científica enquanto prática social.

Essa escolha teórico-metodológica tem um duplo fundamento: por um lado, a emergência de novas abordagens sociológicas que, em resposta às insuficiências da perspectiva mertoniana, tornaram a relação entre o processo de institucionalização da ciência e as práticas

concretas dos cientistas um problema de pesquisa incontornável; e, por outro, a própria especificidade da estrutura do LNLS e a forma como ele se insere na história e na dinâmica da ciência brasileira, o que obrigou-nos a considerá-lo como uma dupla realidade empírica: uma instituição de pesquisa com suas regras internas e suas estratégias de legitimação e institucionalização, as quais somente podem ser compreendidas plenamente à luz dos padrões mais gerais de institucionalização da ciência no Brasil, e, paralelamente, uma plataforma tecnológica de pesquisa voltada para cientistas de todo o país, que incorporam práticas de pesquisa e trajetórias acadêmico-profissionais próprias, permitindo que por meio do estudo do LNLS possamos retratar aspectos essenciais da ciência brasileira como um todo.

Para fins de exposição, vamos apresentar a forma como o nosso problema de pesquisa – a transformação do regime disciplinar/estatal de produção e difusão do conhecimento do ponto de vista institucional e prático – emerge do debate sociológico contemporâneo sobre a ciência, para, depois, construir o problema empiricamente, a partir da investigação do LNLS.

1.1. O que significa estudar criticamente o processo de transformação da ciência da perspectiva sociológica contemporânea?

É amplamente reconhecido que a sociologia da ciência constitui-se como um campo delimitado de pesquisa a partir trabalhos de Robert King Merton sobre as condições histórico- sociais de emergência e desenvolvimento da atividade científica (MERTON, 1951, 1970) e sobre o funcionamento da estrutura institucional e normativa (MERTON, 1942, 1957, 1963, 1972, 1973)3.

3 Em 1938, Robert Merton defendeu a sua tese de doutoramento denominada: Ciência, tecnologia e sociedade na Inglaterra do século XVII. Merton propunha analisar do ponto de vista sociológico as condições religiosas, econômicas, profissionais e institucionais capazes de explicar a revolução científica e técnica ocorrida na Inglaterra do século XVII. O doutorado de Merton tem uma dupla importância na medida em que oferece uma resposta da sociologia ao problema da origem da ciência moderna, ao mesmo tempo em que formula uma definição sociológica da ciência. Assim, apesar de ter havido, antes de Merton, estudos da sociologia sobre a ciência (Durkheim; Mannheim; Pitirim Sorokin; Ludwig Fleck ou mesmo Karl Marx e Max Weber), Merton é considerado o “pai fundador” da sociologia da ciência uma vez que foi o seu arsenal conceitual, a sua terminologia e o seu programa de pesquisa que orientaram os trabalhos de sociologia da ciência pelo menos até

A partir das formulações iniciais de Merton, uma forte tradição de pesquisa desenvolveu- se buscando compreender tanto o processo histórico-social de institucionalização das regras internas de funcionamento da ciência – sobretudo as regras de controle do trabalho e de hierarquização profissional – quanto a consolidação das condições ideais de desenvolvimento da atividade científica – seja no plano da gestão da ciência como instituição, social, seja no controle da atividade científica como trabalho. A sociologia mertoniana da ciência dedicou-se, portanto, ao estudo da estrutura de funcionamento da ciência com especial atenção a como o reconhecimento das contribuições dos pesquisadores individuais a uma dada disciplina – sob a forma de publicações avaliadas por pares – organizaria internamente a ciência (COLE; COLE, 1967; ZUCKERMAN, 1967; HAGSTROM, 1965, 1972; DE SOLLA PRICE, 1963, 1969). Partindo disso, a tradição mertoniana passou a formular recomendações sobre como incentivar o desenvolvimento científico, tanto no sistema público/científico de pesquisa – por meio das políticas públicas nacionais de ciência e tecnologia (BEN-DAVID; ZLOCZOWER, 1962; BEN- DAVID; COLLINS, 1965; BEN-DAVID, 1965, 1974, 1977) – quanto no sistema privado/empresarial – através da implantação de dispositivos e técnicas de controle do trabalho nos grandes laboratórios privados ou governamentais (BROWN, 1954; GLASER, 1965; KAPLAN, 1963, 1965; MARCSON, 1960; PELZ, 1953; PELZ; ANDREW, 1966; TAGIURI, 1965)4.

Assim, a tradição sociológica que emerge dos trabalhos de Merton não só organizou o estudo e a conceitualização da ciência por várias décadas como apresentou, também, desdobramentos importantes no plano das recomendações político-gerenciais para a organização, controle e gestão da ciência. Essas recomendações orientaram o desenho de

os anos 1970.

4 O desdobramento da teoria mertoniana em termos de uma dupla forma de controle – controle do arranjo institucional da ciência e controle das práticas concretas de pesquisa e do processo de formação de novos pesquisadores – explicita o reconhecimento de que “a ciência” – essa denominação abstrata e repleta de significados – correspondia, na verdade, a uma atividade social marcada por regras e padrões de organização, controle e divisão do trabalho que apresentava pelo menos duas formas distintas de expressão: a ciência desenvolvida no sistema público – ou seja, nas universidades e institutos públicos – e a ciência desenvolvida no sistema privado – nos laboratórios de pesquisa e desenvolvimento das grandes empresas.

políticas nacionais de ciência e tecnologia e a implementação de mecanismos de gestão do trabalho científico em empresas e laboratórios privados e, posteriormente, no próprio sistema público. O desenvolvimento de dispositivos de controle da produtividade acadêmica, baseados na avaliação da quantidade e do impacto das publicações de pesquisadores individuais, de instituições científicas ou de países e regiões, é um dos mais importantes legados da chamada tradição mertoniana de sociologia da ciência (SHINN; RAGOUET, 2008, p. 36-44; WOUTERS, 2006) .

A sociologia mertoniana da ciência permaneceu praticamente hegemônica até a década de 1970, quando passou a ser duramente criticada tanto no âmbito dos estudos sociológicos da ciência quanto no campo do desenho de políticas e mecanismos de gestão da ciência. Nesse sentido, destacam-se as críticas às políticas “não-intervencionistas”5 de ciência e tecnologia que

vigoraram, dos anos 1950 ao final dos 1970, primeiro nos Estados Unidos e, depois, em diversos países incluindo o Brasil.

No plano interno à sociologia, as principais vertentes que atualmente organizam o estudo sociológico da ciência emergiram fundamentalmente de críticas mais ou menos radicais à tradição mertoniana de sociologia da ciência. Segundo Terry Shinn e Pascal Ragouet, essas correntes podem ser classificadas em dois grandes grupos, as teorias anti-diferenciacionistas (a Nova Sociologia da Ciência, claramente construtivista) e teorias neo-diferenciacionistas (aqueles que, embora críticos da sociologia mertoniana, ainda consideram a diferenciação da esfera científica Pierre Bourdieu)6.

5 Embora o termo mais comum seja políticas lineares (STOKES, 2005) ou ofertistas (DAGNINO;VELHO, 1998) de ciência e tecnologia, entendemos que a expressão mais adequada seja política não-intervencionista, no sentido dado por Benner e Sandström ao analisar o modelo de funcionamento de agências de fomento (2000, p. 300) ou seja, uma política que cuja estrutura de financiamento e avaliação parte do pressuposto que a ciência deve se “autoadministrar” - controlando, através das suas estruturas de financiamento e avaliação, o processo de produção de pesquisas.

6 Em termos gerais, a leitura difereciacionosta da ciência envolve, segundo Shinn e Ragouet (2005, 2008), todos os sociólogos que reconhecem a especificidade da ciência como instituição social e como sistema cognitivo. Robert Merton (1942, 1951, 1957, 1963, 1972) e todos os sociólogos que seguem, direta ou indiretamente, o seu trabalho (COLE; COLE, 1967; CRANE, 1969, 1972; HAGSTROM, 1965, 1972; ZUCKERMAN, 1967; JOSEPH BEN-DAVID, 1965, 1974, 1977), são representantes da vertente funcionalista ou clássica da sociologia diferenciacionista, enquanto que a tradição francesa fundada a partir dos trabalhos de Pierre Bourdieu (1975,

No primeiro grupo estão os autores ligados à Nova Sociologia da Ciência nas suas diferentes linhas: o chamado “Programa Forte” (BARNES, 1977; BLOOR, 1976, 1982), a etnografia das práticas científicas (KNORR-CETINA, 1981; LATOUR; WOOLGAR, 1996) e a vertente portadora da ruptura mais radical, a sociologia construtivista da ciência (CALLON, 1986, 1998; CALLON; LATOUR, 1991; LATOUR, 1983, 1984, 1991, 1995, 2000, 2001)7.

O ponto de partida das vertentes de pesquisa da Nova Sociologia da Ciência – o que lhes confere unidade – é a crítica ao silêncio da sociologia mertoniana quanto ao processo de produção/fabricação de “verdades” científicas – ou seja, a crítica à separação radical entre sociologia e epistemologia. A essa crítica soma-se a preocupação com a pesquisa em ação, ou seja, com as práticas concretas de investigação e formulação de fatos e enunciados científicos e a negação dos processos de diferenciação da ciência tanto social – a sua constituição como esfera social relativamente autônoma a partir da sua diferenciação em relação a outras esferas – quanto epistemologicamente – a diferenciação em relação a outras formas de produção de conhecimento.

Assim, para a Nova Sociologia da Ciência, tanto a idéia de autonomia relativa da ciência – suas regras internas e específicas – quanto as suas particularidades epistemológicas são veementemente negadas (SHINN; RAGOUET, 2008, p. 11), não existinto diferenças

2004) e Richard D. Whitley (2000) representa uma vertente mais dialética do diferenciacionismo, à medida em que entende a ciência enquanto esfera dotada de alguma especificidade – tanto social, quanto cognitiva – mesmo quando reconhecendo a sua historicidade e as fortes ligações entre a ciência e a sociedade, bem como o papel da ciência nos processos sociais de dominação e, vice-versa, o papel dos processos sociais de dominação no interior da ciência. Nessa tradição, além de Bourdieu e Whitley, inserem-se Terry Shinn (1980, 2000a; 2000b, 2002, 2008a, 2008b) e Pascal Ragouet (2000) e Yves Gingras (GINGRAS, 2000, 2003; GINGRAS et all, 2003). Já a linha anti-diferenciacionistas, é composta pelos autores ligados ao chamado “Programa Forte” de sociologia da ciência (BARNES, 1977; BLOOR, 1976, 1982), à etnografia da ciência (KNORR-CETINA, 1981; LATOUR; WOOLGAR, 1986) e à linha mais radical do anti-diferenciacionismo, a sociologia construtivista da ciência (CALLON, 1986, 1998; CALLON; LATOUR, 1991; LATOUR, 1983, 1984, 1991, 1995, 2000, 2001)

7 Segundo Shinn e Ragouet, “certos autores situam-se em várias dessas categorias, na medida em que suas tomadas de decisão, evolutivas, não podem ser exclusivamente exprimidas por [apenas] uma delas” (2008, p. 60). Isso explica porque Bruno Latour, por exemplo, tem trabalhos que podem ser classificados tanto na linha “etnográfica” da ciência, como, por exemplo, La vie de laboratoire, escrita em parceria com Steve Woolgar (LATOUR, WOOLGAR, 1996), quanto na construtivistas, como Les microbes: guerre et paix. (LATOUR, 1984); Le metier de chercheur. Regard d'un anthropologue (LATOUR, 1995); e La science telle qu'elle se fait (CALLON; LATOUR, 1991).

significativas entre a atividade científica financiada pelo Estado e realizada em instituições públicas/estatais e a atividade científica financiada por investimentos privados e realizada no interior das empresas capitalistas como um momento do processo de produção de mercadorias.

Dentre as vertentes da Nova Sociologia da Ciência, a sociologia construtivista – cuja expressão mais atual são as pesquisas feitas a partir da noção de ator/rede – é a que teve, sem dúvida, maior influência nas pesquisas sociológicas sobre a ciência. Esses trabalhos (CALLON, 1986, 1998; CALLON; LATOUR, 1991; LATOUR, 1983, 1984, 1991, 1995, 2000, 2001), como o próprio nome sugere, estão preocupados com o processo de construção social da ciência, não enquanto instituição organizada por regras e valores próprios – cuja existência negam (CALLON, 1986, p. 175) –, mas enquanto um discurso que se pretende “legítimo” e “verdadeiro”8. A sociologia construtivista da ciência parte da negação radical de dicotomias tais

como falso/verdadeiro, ciência/não ciência, observador/objeto, fato/conceito e natureza/cultura, de modo que o problema privilegiado de investigação é o processo social de construção dessas diferenciações no qual a ciência, como discurso socialmente legítimo, desempenha um papel central. Assim, a forte preocupação com a dimensão produtiva da ciência enquanto discurso aproxima o construtivismo de Latour e Callon das teorias chamadas “pós-modernas”.

O impacto da sociologia construtivista sobre o estudo contemporâneo da ciência tem, portanto, dois níveis. Em primeiro lugar, ela nega radicalmente a compreensão de que a ciência pode ser entendida como uma esfera social diferenciada, constituída por um processo de institucionalização que lhe permite funcionar segundo regras, valores e formas próprias de

8 Bruno Latour, um dos nomes mais importantes da Nova Sociologia da Ciência, está particularmente interessado no processo de produção/construção de verdades científicas, como o próprio autor afirma, a sua teoria pode ser considerada filosofia da ciência embasada em pesquisa empírica. Nesse espírito, Latour chama a atenção para a diferença essencial entre a ciência acabada e o que ele chama ciência em ação, destacando a importância de olharmos para esta última se quisermos de fato compreender como se produzem as verdades científicas. Assim, a difícil tarefa de estudar a ciência deve começar “pela porta de trás”, ou seja, pela ciência em construção, o que implica considerar o nó da questão: o tópico no qual cientistas e engenheiros trabalham arduamente (Latour, 2000, pp. 16-17). Apesar disso, segundo Latour, de forma geral os estudos sobre ciência são marcados por um enorme descaso em relação ao processo que antecede à ciência acabada: “Apesar do quadro rico, desconcertante, ambíguo e fascinante que assim se revela, poucas pessoas de fora já penetraram nas atividades internas da ciência e da tecnologia e depois saíram para explicar, a quem continua do lado de fora, como tudo aquilo funciona (...) infelizmente, quase ninguém está interessado no processo de construção da ciência.” (Latour, 2000, p. 33-34).

organização e gestão do trabalho, as quais variam de acordo com as formas de financiamento e controle da atividade. Ao abandono da dimensão institucional da ciência, contrapõe-se a ênfase nas práticas concretas dos pesquisadores – o que explica a escolha pela pesquisa etnográfica de laboratórios e outros locais de trabalho – e no papel dos discursos supostamente “legítimos” da ciência na construção da “realidade” – a função da ciência como instrumento de poder, dominação e construção da realidade (LATOUR, 1984, 1991, 2001).

Mas se a teoria mertoniana da ciência foi duramente criticada pela Nova Sociologia da Ciência por aceitar o caráter supostamente “verdadeiro” e “universal” dos enunciados científicos – ou seja, por partir do pressuposto que a ciência constitui uma forma de cognição mais “racional” e, portanto, “superior” a outras –, silenciando tanto em relação aos processos sociais de construção dos fatos científicos quanto em relação à interação entre a ciência e os processos de dominação, a perspectiva que se origina a partir dos trabalhos de Pierre Bourdieu (1975) sobre o campo científico volta suas críticas para outro alvo: a visão excessivamente funcionalista e homogênea da ciência que estrutura os trabalhos sociológicos de inspiração mertoniana.

Ao classificar a tradição mertoniana como estrutural-funcionalista, Bourdieu (1975; 2004) aponta criticamente que essa tradição considera “o mundo científico como uma comunidade que se dotou – se desenvolveu – com instituições justas e legítimas de regulação e onde não há lutas – em todo caso, não há lutas a propósito do motivo das lutas” (BOURDIEU, 2004, p. 24). O estrutural-funcionalismo revela, desse modo, a sua perspectiva “excessivamente finalista” das entidades coletivas, segundo a qual a ciência seria uma dessas entidades que alcança os seus fins por meio de mecanismos sem sujeitos orientados para fins favoráveis aos sujeitos” (ibdem, 2004, p. 24). Em contraposição a essa concepção funcionalista, Bourdieu propõe pensar a ciência a partir do conceito de “campo científico” compreendido como:

um sistema de relações objetivas entre as posições adquiridas, pelas lutas anteriores, e o lugar (quer dizer, o espaço de jogo) de uma luta de concorrência que tem por objetivo específico o monopólio da autoridade científica inseparavelmente definida como capacidade e como poder social, ou, se preferirmos, o monopólio da competência científica, entendida no sentido de capacidade de falar e de agir legitimamente (que dizer, de maneira autorizada e com autoridade) em matéria de

ciência, que é socialmente reconhecida (BOURDIEU, 1975, p. 91-92)

A ciência aparece, desse modo, como um espaço essencialmente conflituoso9 e não,

como pressupunha Merton, como uma comunidade de iguais – os pares – na qual as regras, os mecanismos de hierarquização e as formas de controle são justos e amplamente compartilhados – porque incorporados ao ethos científico – constituindo, no mais, um espaço de “concorrência perfeita” em que a “idéia verdadeira” deve necessariamente prevalecer10 (BOURDIEU, 1975, p.

92).

O campo é um espaço de luta cujo objetivo é o controle da autoridade científica – que Bourdieu também denomina de monopólio da competência científica – que aparece como uma disputa pelo acúmulo de capital científico, uma expressão específica do capital simbólico, adquirido por meio do reconhecimento dos agentes do campo quanto à importância das contribuições dadas a esse mesmo campo sob a forma de publicações e comunicações acadêmicas. O acúmulo diferenciado de capital científico – que define a estrutura do campo – faz com que a ciência constitua-se como um espaço necessariamente estratificado, no qual se “luta”, porém não em condições de igualdade, já que o poder de cada agente – a autoridade científica – é dado pela sua posição na estrutura do campo. O campo científico constitui-se, desse modo, também como espaço de dominação e poder, dimensão que é radicalmente negada pela teoria mertoniana.

Mas dizer que o campo científico constitui-se como espaço de luta e de dominação não implica afirmar que os cientistas buscam, exclusivamente, o controle do poder, ou seja, o

9 A noção de campo permite a Bourdieu romper com uma visão excessivamente pacífica e conciliadora da atividade científica, aquela que entende que a ciência constitui “um mundo de trocas generosas em que todos os investigadores colaboram para um mesmo fim. Essa visão idealista que descreve a prática científica como produto da submissão voluntária a uma norma ideal é contradita pelos fatos: o que se observa são conflitos, por vezes ferozes, e competições no interior de estruturas de domínio.” (2004, p. 67-68) A visão “comunitarista” esquece