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CAPÍTULO 3 NARRATIVAS AUDIOVISUAIS, OLHARES E MEMÓRIAS AFETIVAS DA

3.2. Transgredindo e ensinando: O Crioulas Vídeo reflete a escola

O perfil dos interlocutores escolhidos demonstra o quanto o Crioulas Vídeo acredita ser importante repassar os resultados dessa pedagogia. A maioria são todos professores e professoras, mas mesmo os que não compõem esse quadro, fazem referência ao que pode ser um projeto de educação pensado e desenvolvido pela própria comunidade. Sobre isso, Lena e Adalmir explicam que se deve ao fato dessas pessoas fazerem parte das primeiras turmas da Escola José Mendes em 1995 e 1996, e também serem pessoas que em diversos outros momentos falavam/falam dessa escola com bastante entusiasmo. Além disso, são pessoas que não somente através das falas, mas também de outras ações demonstram o sentimento que têm pela educação, e em especial pela escola José Mendes. Inclusive quando participam nas formações de professores e professoras isso fica evidente.

37 Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação, organização consolidada nos anos 90

com sede em Brasília, composta por diversos departamentos que tem como pauta principal a valorização dos trabalhadores em educação.

O professor Andrelino Vicente Dionízio, um dos egressos da primeira turma da Escola Municipal Professor José Mendes quando interrogado sobre sua avaliação em relação à educação do passado até os dias atuais, se refere à escola correlacionando dois tempos. O tempo vivido por ele enquanto estudante, e o vivenciado por ele enquanto professor e também diretor. Para ele essas duas fases são distintas. A primeira, caracterizada por uma escola que deixa de usar métodos ―tradicionais‖, como palmatória, gritos, difamação, e começa a se transformar a fim de dar conta da necessidade e o desejo do alunado. Que direcionava os estudantes para a realização dos sonhos. A segunda fase, denominada por ele de um novo momento, é um tempo em que a escola não mudou, continua implantado sonhos, continua motivando, no entanto, a clientela é outra, ou seja, não tem sonhos reprimidos.

Para Francisca Marcelina de Oliveira, mais conhecida por Nina, egressa da José Mendes e atualmente professora na escola Bevenuto Simão de Oliveira, localizada no Sítio Paula, o início dessa escola foi um momento de muitas expectativas. ―Foi um tempo em que todo mundo que estava ali tinha objetivos. Todo mundo organizado e batalhador. Apesar de ter dificuldades como a falta de transporte, ninguém desistia. Tudo era novo, era motivador‖.

Maria do Carmo, uma das egressas mais velhas, que estudava no horário vespertino e que na época já era mãe de quatro filhos, concorda com o que diz Andrelino em relação ao público estudantil de antes e o de hoje quando relata que hoje em dia tem mais facilidades. Ela acredita que as dificuldades praticamente não existem se compararmos ao período inicial da escola. Por isso, segundo ela os alunos não são tão curiosos como antes, têm menos força de vontade.

A maior parte dos relatos contidos no vídeo se refere, especificamente, a Escola Professor José Mendes. Isso comprova a importância dessa escola dentro do processo de reconstrução de um currículo inscrito na comunidade.

Francílio Luiz Bezerra, egresso da Escola Professor José Mendes e professor nessa mesma escola desde o ano de 2002 revela que através da escola se sente parte da comunidade, não só enquanto professor, mas também enquanto liderança.

Esse sentimento é aflorado por diversas vezes no vídeo quando interrogados sobre os sentimentos e a boas lembranças que se tem desse espaço.

A gente tem uma afetividade maior com aqueles colegas da gente. A gente vai vendo quem foram os nossos colegas da 5ª série, da 6ª série, da 8ª série e a gente consegue sentar e lembrar, contar. Cada quem conta as suas lembranças, cada quem conta suas histórias, e assim ninguém conta seu problemas. Talvez porque eram tantas coisas boas que problemas eram detalhes. (Andrelino Dionízio)

Ao longo do vídeo-documentário percebe-se que não há dúvidas dos resultados positivos desse jeito de fazer educação, da escolha dos conteúdos, da maneira de conduzi-los para produzir conhecimentos e na construção de um perfil de professor que fosse também pesquisador da sua própria história. Sobre isso, os depoimentos são unânimes de que esse jeito de ensinar direcionava-os para a realização de sonhos e de valorização da cultura local.

Então, eu penso assim, que como naquela época era início de um processo. Acho que um pouco desse estudo aprofundado de buscar esses conhecimentos que não estavam nos livros didáticos, ele começa a partir daquela época. Naquele tempo a gente já começava a tá fazendo pesquisas na comunidade pra tá construindo algum material que pudesse ter a nossa história ali. Então hoje a gente já tem bastante material que conta isso. [...] A gente foi pessoa que contribuiu para que esses materiais que contasse essa história pudesse tá sendo construído. E aí, com o passar do tempo tá aprofundando esses estudos para que pudesse ser referências hoje. (Relato da professora Nina no filme)

O perfil de professor-pesquisador foi sendo formado desde então. Construir mapas, observar os caldeirões, percorrer riachos, desenhar as serras, que dentro da Geografia tinha sua importância, mas não tanto como símbolos e marcos de um território eram atividades corriqueiras nos primeiros anos dessa escola. A matéria- prima dessas pesquisas e estudos in loco se transformavam/transformam em materiais pedagógicos de ensino-aprendizagem da metodologia própria de ensinar fazendo, contando e recontando.

Essa era uma preocupação que deu resultados, os quais são apresentados no filme. Numa cena com uma urupemba38 com materiais didáticos produzidos na e

pela comunidade é apresentada enquanto a fala da professora Nina sobre esse tema fica em off. É interessante ainda perceber que os quatro materiais escolhidos para serem apresentados são de caráter diferenciado, ou seja, foram produzidos para atenderem um determinado público.

38 Espécie de peneira de fibra vegetal, que serve para peneirar farinha de mandioca, o milho, o arroz

O jornal produzido ano passado na escola José Mendes que teve seu trabalho de elaboração coordenado pela professora Fabiana Mendes foi produzido pelos estudantes das turmas dos 8º anos A e B(manhã e tarde). Nele são veiculadas várias matérias que vão desde ao ato: Fora Temer a discussões de sala de aula sobre temáticas e conteúdos atuais e necessários de serem discutidos e refletidos, como a discussão sobre a laicidade da escola que foi registrada através de poesia.

Esse tema ressurgiu há pouco tempo nos debates políticos sobre a lei ―escola sem partido‖, e a escola preocupada com o desdobramento desse assunto trouxe para discussão.

Outro material escolhido foi o Livro: Nosso Território já mencionado anteriormente. Material produzido a partir de subsídios coletados nas pesquisas desde 2003 por professores/professoras, lideranças e estudantes de todas as faixas etárias na intenção de divulgar a comunidade. É um livro que conta um pouco da geografia do lugar relacionando-a aos aspectos territoriais e as relações culturais do quilombo. Por isso, os capítulos são antecedidos por histórias de Barnabé de Oliveira, que sobre ele João Alfredo diz no próprio livro (p.6):

[...] antes só era certo o que estava escrito, só era bom quem estava com a informação e formação. E isso não é verdade! Barnabé de Oliveira foi um grande contador de histórias e intelectual daquele tempo. Se não pensava o mundo no seu total, porque talvez ele não conhecesse toda a dimensão do mundo, mas ele contava a dimensão do mundo que ele conhecia, e isso é muito importante! (Trecho da entrevista com João Alfredo em agosto de 2016)

Os outros dois são materiais produzidos para formação de professores e professoras. O destaque para esse tipo de produção, no meu entendimento, tem a intenção de ressaltar o trabalho que é feito nas formações de professores em que são utilizados também materiais com assuntos específicos para professores(as) quilombolas. Além disso, visa divulgar ações formativas próprias do quilombo porque tanto o caderno quanto a realização da formação são organizados, produzidos e realizados pelas equipes pedagógicas das escolas.

Tudo isso me faz lembrar a importância da parceria escola e comunidade, afinal a escola é da comunidade e precisa refletir seus anseios e buscas. Uma ação coletiva de extrema relevância coordenada pela AQCC e desenvolvida pelas escolas do território que foi a realização de uma pesquisa para colher subsídios para construção do plano de gestão e uso do território, realizada no ano de 2011. Esse

caminhar conjunto entre escolas e comunidade só vem reforçar o que já de modo incisivo ao longo desse texto, reafirmando cada vez mais baseados em outras visões e circunstâncias reais a função social a qual se propõe realizar.

Os relatos não só dos professores e professoras apresentados no vídeo se concentram, especificamente, nos primeiros anos (1995 e 1996) de existência da Escola José Mendes. Visivelmente pode ser compreendido como um período de muita curiosidade e muito desejo de ―crescer‖. ―Naquela época, eu acho que eu renasci. Após 16 anos voltei à escola. A escola tinha muitas dificuldades, mas a gente ia porque tinha força de vontade em aprender e seguir em frente‖, relata Maria do Carmo emocionada.

Foram as boas memórias dos estudantes sobre essa escola responsável por fazerem um paralelo com o antes e o hoje. Talvez isso também se deva ao fato de todos os entrevistados serem professores e professoras, mães de estudantes e quererem que a sala de aula continue sendo um espaço de entusiasmo, de possibilidades. Boa parte dos discursos do vídeo se preocupa com a mudança que ocorreu em relação ao querer e a vontade do público de hoje. Para Nina, o sentimento de ter estudado nessa escola é muito grande e pretende repassar para os seus filhos essa história. ―Quero contar pros meus filhos para que eles possam dar valor a educação, dar valor a cultura, ao lugar, sem esquecer suas raízes‖.

O que a professora Nina enfatiza na sua fala é apresentado através de diversas partes no filme. Uma delas é a cena em que retrata Seu João Virgulino, artesão da palha, mostrando para as crianças como se faz urupemba Mesmo não sendo algo novo, pelo fato de ser um método ancestral de transmissão de conhecimentos em que se utiliza da memória oral, era/é algo diferente, inovador por estar sendo repassado através da instituição escola como manutenção de práticas educativas tradicionais.

Outra cena que demarca a preocupação da comunidade com a manutenção da cultural tradicional crioulense são as imagens de crianças do Projeto ao Som do Pífano que são apresentadas em dois momentos, logo no início da fala de argumentação da narradora e no final.

Percebendo que a banda de pífano poderia ser um instrumento da cultura tradicional que viesse a desaparecer na nossa localidade. Adalmir, que é também produtor cultural, elaborou um projeto com a finalidade de envolver estudantes e outro jovens que estão fora da escola nesse tipo de atividades. O referido projeto foi

aprovado pela Fundação Nacional de Artes (FUNARTE Fundação Nacional de Artes) órgão com sede no Rio de Janeiro. Ano passado diversas ações foram desenvolvidas, entre elas, confecção de instrumentos, como pífanos, caixas e zabumbas. Acontecido isso, foram realizadas oficinas de pífano e percussão. Hoje, muitos deles já acompanham a banda de pífano nos momentos festivos da comunidade e em apresentações nos eventos.

Divulgar essa ação num produto audiovisual com a intencionalidade deste, a meu ver, é uma maneira da equipe do Crioulas Vídeo demonstrar para seus interlocutores o quanto ações dessa natureza são indispensáveis dentro da Pegagogia Crioula.

3.3. COMPARANDO EXPERIÊNCIAS PEDAGÓGICAS E CONSTRUINDO UMA