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CAPÍTULO 1 – AGOSTINHA, MARIA ALZIRA, CIDA, VAL E GIVA: MULHERES E

1.4. Valdeci Maria: Saberes tradicionais e conhecimentos de mulheres reafirmando a

A manutenção da cultura pode ser entendida como uma ação política, um meio de fortalecimento e afirmação da resistência histórica dos povos tradicionais que durante toda a história da sociedade brasileira, apesar das opressões, resistem na busca do reconhecimento das suas identidades, especificidades e dos saberes.

O dia a dia da dinâmica cultural do quilombo apresenta-se como um elemento de fortalecimento cultural contra-hegemônico, ou seja, que esteja em favor da nossa identidade cultural ao se contrapor ao pensamento hegemônico europeu de controle e dominação. Pode-se entender a partir disto que toda prática cultural é antes de tudo uma ação politica, conforme enfatiza Sahlins (1997).

Esse sentido político do culturalismo continua hoje a ecoar, nesta assim chamada era pós-colonial, no discurso dos intelectuais africanos. O mesmo ocorre com a apreciação do futuro da tradição. Como diz Paulin Houtondji, ―a cultura não é somente uma herança; é também um projeto‖ (1994). Ou ainda, na observação paralela de Elika M‘Bokolo, a cultura é uma exigência de formas de modernidade especificamente africanas: ―Por todo o século XX, a cultura tem sido o campo de batalha que os africanos escolheram para obter o reconhecimento de sua dignidade, o que envolve muito mais que o mero reconhecimento de seus direitos civis e políticos. Desde a independência, os mais legítimos porta-vozes do continente nunca deixaram de chamar a atenção para a cultura enquanto particularidade constitutiva da África contemporânea, seja para sublinhar que, no ‗toma lá dá cá‘ mundial, é justamente a cultura que constitui a contribuição específica do continente, seja para exigir que o desenvolvimento se conforme às exigências da cultura africana. (SAHLINS, 1997, p. 131)

Sendo assim, a cultura de Conceição das Crioulas, que através de laços ancestrais estabelece ligação com a africana, legitima o buscar de um ―desenvolvimento‖ que valorize e reconheça suas especificidades, mas acima de

tudo, é uma cultura de vivência consciente da sua importância no enfrentamento das ideias plantadas pelo colonialismo e que persistem no sistema capitalista atual.

Sobre isso, Sahlins afirma ainda que:

[...] Pois o fato é que, em si mesma, a diferença cultural não tem nenhum valor. Tudo depende de quem a está tematizando, em relação a que história mundial. Nas últimas duas décadas, vários povos do planeta têm contraposto conscientemente sua ―cultura‖ às forças do imperialismo ocidental que os vêm afligindo há tanto tempo. A cultura aparece aqui como a antítese de um projeto colonialista de estabilização, uma vez que os povos a utilizam não apenas para marcar sua identidade, como para retomar o controle do próprio destino [...] (SAHLINS, 1997, p. 45-46)

É nesse cenário, que com o pensamento de perceber como a identidade étnica e cultural de um povo pode ser fortalecida através da sua história de resistência e de luta por liberdade, como também, sua cultura, seus modos de vida individual e coletivo poderão contribuir no processo de luta pelo território e outras políticas sociais, que pretendo perceber como esse processo acontece dentro de um contexto institucional representado pela escola, mas também fora dela, ou seja, na perspectiva da comunidade.

A maneira como as comunidades quilombolas desenvolvem seus modos de vida, sua cultura, requer valorização e reconhecimento diante do que vem sendo discutido e implantado através das ações de política educacional nos últimos anos. O jeito dos quilombolas de se relacionar com os outros e com a natureza traz um diferencial que penso ser de extrema valia, porque expressa a ideia de sustentabilidade.

Pensar a sustentabilidade como adjetivo do desenvolvimento, assim como frisa Nascimento (2012), limitando somente a três dimensões – ambiental, econômica e social – é de certa forma desconsiderar a importância da cultura dos povos nesse processo. Compreendo que essa dimensão é imprescindível para a vida do povo quilombola, porém muitas vezes fica em segundo plano para os que pensam desenvolvimento somente na linha econômica, da exploração capitalista. Por vezes surgem questionamentos indispensáveis de respostas: como ficariam os povos tradicionais, sua história, sua cultura, nessa conjuntura?

O desenvolvimento que se defende tem o cunho radical de se inscrever no político e essa dimensão tem a sua raiz na cultura identitária das comunidades e sobre o que pensam, sendo estas ideias comuns à população que ali vive.

Perceber que estamos ameaçados por pensamentos e ações globalizados é imprescindível para que possamos movimentar em busca de projetos que respeitem e valorizem a diversidade cultural como forma de defesa do patrimônio tradicional e que promovam a preservação da memória e a transmissão das heranças naturais, culturais e simbólicas, ancorados em práticas dialógicas, participativas e sustentáveis.

Lévi-Strauss, na sua obra ―Raça e História‖ (1993), traz uma abordagem importante sobre cultura quando se refere a ela como um elemento dinâmico, desfazendo a ideia que ainda é bastante presente de que há um processo de ―aculturação‖ e de que a cultura contemporânea é menos autêntica do que a de algum tempo atrás. Em outros termos, a afirmação é de que a ―cultura‖ irá desaparecer e logo seremos um povo sem cultura.

O fato de muitas pessoas acreditarem no essencialismo da cultura quando se trata de povos tradicionais, principalmente, quando esses povos são quilombolas e indígenas, é uma situação que nos preocupa bastante. Penso ser muito ―perigoso‖ pensarmos dessa forma, pois desconsideramos as ressignificações que fazemos ao longo de nossa história em contato com outras culturas, outras vivências. Assim como observa Lévi-Strauss:

Vemos, pois, que a noção da diversidade das culturas humanas não deve ser concebida de uma maneira estática. Esta diversidade não é a mesma que é dada por um corte de amostras inerte ou por um catálogo dissecado. É indubitável que os homens elaboraram culturas diferentes em virtude do seu afastamento geográfico, das propriedades particulares do meio e da ignorância em que se encontravam em relação ao resto da humanidade, mas isso só seria rigorosamente verdadeiro se cada cultura ou cada sociedade estivesse ligada e se tivesse desenvolvido no isolamento de todas as outras. (STRAUSS, 1993, p. 3)

Esse pensamento nos revela ideias bastante atuais, em que fica explícita a preocupação com a tendência de homogeneização das sociedades e das culturas numa dimensão única, o que poderia levar a um desaparecimento gradativo da

diversidade cultural. Essa é uma preocupação relevante e atual nas comunidades quilombolas do Brasil como um todo.

No quilombo de Conceição das Crioulas, como em qualquer outro lugar do mundo, a cultura é ressignificada constantemente. Da cultura que pode ser entendida por muitos como ―tradicional‖ e própria do nosso lugar, temos a banda de pífano, o trancilim16, o trabalho das benzedeiras/rezadeiras, as cantigas de roda e diversas ações que acontecem no seio da comunidade e fazem parte do nosso cotidiano. O nosso jeito de ser, de lutar, de se divertir, de cantar, de rezar, de comer, de ajudar a outra pessoa, são características bem marcantes do povo de Conceição das Crioulas e dizem um pouco da nossa identidade crioula.

No livro Nosso Território - Conceição das Crioulas, produzido pela própria comunidade, no capítulo ―no nosso território se celebra, festeja e brinca‖ estão descritos vários costumes culturais que ainda existem no quilombo.

Figura 12. Capa do Livro ―Nosso Território-Conceição das Crioulas‖, AQCC, 2011. Tempo de partilhar e brincar de

peteca

A semana santa acontece em nosso território durante três dias de muita diversão e também demonstração de fé. As pessoas se deslocam de suas casas para irem à casa dos familiares e amigos onde vivenciam momentos de muita alegria. Uma das coisas que contagia todo mundo é a maravilha brincadeira da peteca. Contudo, o sentimento que verdadeiramente mobiliza as pessoas é o prazer do encontro e das partilhas.

Tradição

O trancelim é uma dança tradicional de nosso território que vem desde o inicio da comunidade, sendo transmitida de pai para filho. Sempre se dançou ao som da

Banda de Pífanos nas principais festas e, segundo os mais velhos, surgiu para amenizar o cansaço do trabalho do dia-a-dia. (AQCC, p. 29, 2011).

16 Trancilim, dança tradicional da comunidade criada, segundo relatos orais no início do século XX.

No inicio somente as mulheres dançavam acompanhadas da banda de pífano. É uma dança que anima geralmente o término de alguma atividade da comunidade. Nos finais das novenas não pode faltar o trancilim.

Além de costumes ligados a danças, festas, relações de reciprocidade, a comunidade desenvolve ainda muitos costumes culturais que têm o intuito de preservar o ambiente natural. Para nós, cuidar da natureza inclui o cuidado com diversos elementos que são primordiais para uma relação harmoniosa. Portanto, as pessoas, a terra, as matas, os caldeirões, as serras, as águas, os animais, os saberes e as formas como estes saberes são transmitidos são valiosos. Atividades como o cultivo da terra, as práticas religiosas, as músicas, as danças, as crenças de modo geral, refletem de modo significativo o respeito às praticas socioeducativas existentes.

Nas atividades artesanais em que são utilizadas matérias-primas como o caroá, o barro, o algodão e a palha, os estudantes são só aprendem a praticar a arte, mas também aprendem a conhecer e valorizar a história da nossa comunidade. Dos produtos confeccionados com caroá, as bonecas que representam onze lideranças femininas são as que são mais comercializadas e mais solicitadas pelos estudantes para participar de oficinas. Por homenagear onze mulheres da comunidade, o produto consegue agregar um valor histórico que não é visto em nenhum outro produto semelhante. As bonecas representam Francisca Ferreira, uma das seis negras fundadoras de Conceição das Crioulas; Mãe Magá, parteira; D. Júlia, artesã especialista na arte do caroá; Antonia Maria, artesã e historiadora; Ana Belo, historiadora e destacava-se por ser muito religiosa; Madrinha Lourdes, artesã e agricultora; Generosa Ana, liderança da comunidade, umas das mulheres que liderou o projeto das casas da Vila União; Maria Emília da Conceição, agricultora e historiadora; Josefa Maria, artesã, agricultora, mulher guerreira que criou sua família trabalhando na roça; Valdeci Maria da Silva, artesã, agricultora e coordenadora do MMTR; e Maria de Lourdes da Silva, professora, artesã e liderança; As cinco primeiras já não estão mais conosco. Deixaram um legado de ensinamentos que estarão sempre presentes nas memórias e vivências dos mais jovens. As outras seis continuam firmes repassando conhecimentos que fortalecem cada vez mais a nossa cultura.

A caatinga do nosso território é bastante rica, nela podemos encontrar algumas vegetações que segundo as benzedeiras e parteiras podem ser utilizadas como remédios, tais como: alecrim, ameixa, aroeira, babosa, marcela, e muitas outros que são de grande importância para a saúde das pessoas da comunidade.

Outro aspecto cultural importante na comunidade são os lugares de ensino e aprendizagem. Diversos espaços religiosos no quilombo, os rituais de mesa branca e de jurema, as rezas tradicionais e os cantos tirados pelas mulheres nas novenas são conteúdos aprendidos e transmitidos de geração em geração.

As experiências obtidas através do tempo são ensinamentos que ainda hoje são repassados entre as gerações. Foi observando a maneira como o tempo se apresenta que nossos antepassados deixaram ensinamentos que fortalecem nossos saberes e caracterizam nossa cultura e a nossa identidade. Esses conhecimentos nos auxiliam em relação a retirar madeira para fazer cercas, casas, ou qualquer outra atividade. Para saber se o ano é bom de chuva são utilizadas experiências relacionadas ao tempo e até para cortar o cabelo é importante observar o tempo.

Uma questão de destaque é a participação e iniciativas das mulheres na organização social da comunidade. Esse pensamento é valorizado em documentos de intenção política e pedagógica como no caso do PPP das escolas da comunidade. No texto que conceitua o eixo Identidade, temos:

O protagonismo de mulheres guerreiras está na alma da nossa identidade. Nossa organização, nossa luta, nossa ancestralidade, nossa história e nossa cultura. Nossa resistência nos embates diários nas lutas por direitos. Nosso jeito de ser e de viver; as nossas especificidades. O forte sentimento de pertença a uma comunidade que há quase três séculos resiste e persiste na defesa do seu projeto de vida. (Extraído do PPP das Escolas do Território Quilombola de Conceição das Crioulas, 2008).

O protagonizar de mulheres na comunidade vem rompendo barreiras implantadas pelo pensamento colonizador e machista desde a sua formação. As seis crioulas que tiveram a ideia inicial de ocupar um espaço em que seu trajeto foi sendo traçado no próprio caminhar foram as primeiras guerreiras, e as principais inspiradoras de outras mulheres. As suas descendentes buscaram também caminhos de liberdade. Foram responsáveis em transmitir conhecimentos fundamentais para o fortalecimento da história e de práticas culturais e na manutenção de valores e é daí que se constroem outros perfis de mulheres. As parteiras, as benzedeiras, as rezadeiras, as que construíram a Vila União e muitas outras mais.

Quando a comunidade vê na educação escolar também uma possibilidade de crescimento profissional e começa a investir nisso, muitas mulheres ainda meninas

migram para a cidade e lá são postas a muitas provas. No entanto a grande maioria sai vencedora e retorna à comunidade com um diploma nas mãos. Foi assim que muitas de nós nos tornamos professoras. Orgulha-me muito de fazer parte desse grupo.

1.5. GIVÂNIA SILVA: A COMUNIDADE DIZ NÃO A UMA ESCOLARIZAÇÃO QUE