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PARTE 1 – ENQUADRAMENTO CONCEPTUAL

1.2. Transição para a Maternidade e a Consecução do Papel Maternal

1.2.1. Transição para a maternidade

A mulher é um símbolo da fecundidade, e é em seu redor que as práticas e rituais desde a conceção até ao nascimento se realizam (Russo, Monteiro & Demétrio, 2000). Mas, como afirma Tobin (1999, como referido em Canavarro, 2001), as raparigas não nascem com a necessidade de ser mães dentro delas, nascem sim, com a capacidade biológica de reprodução, que não é condição essencial para que uma mulher deseje ter uma criança ou seja capaz de ser mãe. A maternidade implica uma tomada de consciência plena que está subjacente a um desenvolvimento e maturação pessoal, que leva a essa tomada de decisão.

O desenvolvimento psicossocial da mulher aumenta, ao estabelecer a identidade materna de se tornar mãe, levando a um alargamento do funcionamento adaptativo (Andrade, Baccelli, & Benincasa, 2017).

Para Mendes (2009), o projeto da maternidade tem início muito antes de a gravidez ocorrer e transcende o momento do parto, tratando-se assim, do ponto de vista psicossocial, de um processo dinâmico, de construção e de desenvolvimento.

A transição para a maternidade tem sido descrita como um processo que inclui aspetos relativos ao desempenho de cuidados, ao funcionamento familiar ou à recuperação do

estilo de vida, à satisfação pessoal e emocional, em que estão envolvidas as representações da mulher relativas à gravidez e à maternidade, bem como a fatores relacionados com a própria mulher, com o bebé e com as condições sociais (Mercer, 2004). O processo de preparação para que a mulher se torne mãe, tem uma evolução progres- siva e tem vindo a ser analisado por vários autores. Mercer (2004), é uma das autoras que defende que a preparação para a maternidade começa a partir do momento em que a mulher planeia e começa a tentar engravidar, quando a gravidez é confirmada e quando decide mantê-la. A preparação é um processo ininterrupto e mútuo que envolve um compromisso com a maternidade e que se manifesta pelo cuidado que a mãe tem com ela própria e com o filho. A autora salienta as seguintes estratégias para a concretização da identidade maternal: 1. estar pronta; 2. lidar com a realidade: começa na gravidez e prolonga-se até ao período pós parto; 3. ajustar-se à realidade: inicia-se no nascimento e estende-se até ao momento em que a mulher se sente confortável e confiante na prestação de cuidados ao filho, sendo capaz de tomar decisões relativamente ao mesmo e terminando cerca de quatro meses após o nascimento e 4. sonhar com essa realidade: a mulher sonha com o passado reportando-se à própria infância vive a experiência do presente e visiona o futuro.

Para Canavarro (2001), Mendes (2002) e Leal (2005), a maternidade pressupõe uma maior visibilidade nos primeiros anos de vida da criança, dado o nível de dependência e o conjunto de cuidados que são necessários ao seu crescimento e desenvolvimento harmonioso. Como afirma Leal (2005), “mais que ter um filho é o desejo de ser mãe”. Acima de tudo, a gravidez é, uma experiência/vivência de mudança e de renovação, de enriquecimento e desafio.

Neste contexto a grávida vai adquirir novos conhecimentos e competências durante o período gestacional, essenciais para a transição segura para a maternidade, caminhando assim para uma integração efetiva no seu papel de mãe (Mendes, 2002).

O assumir da maternidade requer sucessivas mudanças e tarefas desenvolvimentais. O desenvolvimento das tarefas maternas, ainda na gravidez, foi explicado com base em estudos realizados por Rubin (1975; 1984, citado por Mendes, 2009). Assim, esta autora descreveu as principais tarefas maternas interdependentes: assegurar uma passagem segura para ela própria e para a criança, durante a gravidez e o parto; assegurar aceitação social para si e para o seu filho, por um número significativo de membros da família; iniciar a sua ligação com o filho e aprender a dar-se, de si em benefício do outro, isto é, explorar em profundidade, o significado do ato transitivo de dar/receber.

Esta revisão e descrição das tarefas maternas a desenvolver na gravidez foi reforçada pela classificação de Colman e Colman (1994):

– Tarefa 1: aceitar a gravidez – no contexto da ambivalência da aceitação/rejeição do estado da gravidez, inicia-se o processo de identificação materna. Caracteriza-se por sentimentos de felicidade e prazer, relativamente poucos desconfortos ou alta tolerância ao desconforto, alterações moderadas de humor que se devem ao profundo questio- namento relativo à viabilidade da própria gravidez, à aceitação do feto, às mudanças que o novo estado implica e à própria maternidade (Brazelton & Cramer, 1993; Canavarro, 2001; Colman & Colman, 1994). Sem a aceitação e a consequente integração da gravidez, a mulher não pode progredir nas tarefas subsequentes.

– Tarefa 2: aceitar a realidade do feto – ultrapassada a ambivalência relativa à gravidez, surge um momento de viragem. A sensação real de presença do bebé dentro de si, pela perceção dos movimentos fetais e a visualização das ecografias, determina definitivamente a diferenciação mãe-feto, o que se traduz na aceitação do feto como entidade separada, com uma identidade própria, tornando-se fundamental para o processo de vinculação, para a preparação para o nascimento e para a separação física do parto. Identificam-se fantasias relacionadas com o bebé e começam a ensaiar cognitivamente as primeiras tarefas de prestação de cuidados bem como as suas características físicas e tempera- mentais (Brazelton & Cramer, 1993; Canavarro, 2001). Do ponto de vista comportamental, é frequente observar a grávida a acariciar o abdómen e a dialogar com o seu bebé, estabelecendo-se a comunicação verbal e táctil entre ambos. A mãe passa por longos períodos de introspeção (Colman e Colman, 1994; Corbett, 2008).

– Tarefa 3: reavaliar e reestruturar a relação com os pais – nomeadamente, no que diz respeito à representação que a mulher tem do modelo de comportamento materno prove- niente da sua mãe e também das expectativas que tem do seu comportamento no papel de avós. Integra experiências positivas e negativas que teve como filha, aceitando o bom desempenho dos pais e simultaneamente, as suas falhas e limitações. É então possível, selecionar os comportamentos maternos/paternos a adotar, de acordo com os que considera mais adequados, adotando outros em substituição dos que considera disfun- cionais e aceitar e lidar melhor com as suas próprias falhas enquanto mãe. O significado do relacionamento com a mãe é um fator importante de adaptação à gravidez e materni- dade.

A partir do segundo trimestre de gravidez aumentam os contactos com a mãe, nas dimensões de ajuda/apoio e de relação, que vão contribuir para preparar e antecipar acontecimentos futuros. A disponibilidade da mãe permite o desenvolvimento de compe- tências e sentimentos de segurança, podendo facilitar o papel materno, no entanto a excessiva intromissão poderá ter efeitos negativos (Colman & Colman, 1994; Cowan & Cowan, 2000; Mercer, 1995).

As relações tendem a ser recriadas no relacionamento geracional, e o modo como os membros as gerem, entre si, e com a família de origem, tem influência na sua qualidade e na proteção na transição para a maternidade (Mendes, 2007).

– Tarefa 4: reavaliar e reestruturar a relação com o cônjuge/companheiro – com o nascimento do primeiro filho, o companheiro, para quem eram dirigidas as atenções, passa a assumir a identidade de pai, com a responsabilidade de cuidar e educar a criança, sendo “desafiado” o relacionamento conjugal, no que diz respeito à relação afetiva, sexual e rotinas diárias. É fundamental flexibilizar a aliança conjugal, para formar a aliança parental e, sobretudo, permitir o suporte emocional entre ambos (Colman & Colman, 1994).

O ajustamento na relação conjugal entre as 22 e as 25 semanas de gravidez é elevado, sendo que os conflitos conjugais aumentam do último trimestre de gravidez até aos nove meses após o parto (Cowan & Cowan, 2000). No relacionamente conjugal a comunicação está reduzida, menosprezando as ansiedades individuais e centrando-se fundamental- mente na chegada da criança. Não enfrentar conflitos está relacionado com a diminuição de satisfação conjugal. Também parece que o suporte emocional e a comunicação positiva levam a um aumento do bem-estar que, por sua vez, tem uma influência positiva sobre o comportamento parental.

– Tarefa 5: aceitar o bebé como uma pessoa separada – inicia-se com a preparação para o nascimento, que para as primíparas é percecionado como não totalmente controlável.

Esta tarefa materializa-se com a preparação para a separação, que se concretiza com o parto. É um período onde predominam alguns sentimentos de ambivalência e um aumento da ansiedade, devido à antecipação do parto. Os sentimentos de ambivalência têm a ver com o facto de querer ver o filho versus manter a gravidez. É um período de adaptação a uma nova realidade que começa com a confrontação entre o bebé real e o bebé idealizado (Colman & Colman, 1994; Corbett, 2008).

Após o nascimento, a mãe é confrontada com uma diversidade de decisões a tomar e de comportamentos a iniciar. Nesta fase, o desafio é de ser capaz de interpretar e de responder ao comportamento do bebé. Assumir que a criança é profundamente depen- dente, mas que, por outro lado, precisa de autonomia. São aprendizagens importantes que a mãe tem de realizar. Esta tarefa não termina com a separação física entre mãe e filho, prolonga-se ao período de puerpério, por alguns autores denominado de quarto trimestre de gravidez. Neste período, o grande desafio é ser capaz de conseguir interpretar e responder ao comportamento do recém nascido (RN), e aceitá-lo como pessoa separada com características e necessidades próprias. Como refere Canavarro (2001, p. 43):

“Assumir que a criança é profundamente dependente mas que simultaneamente precisa de autonomia; conseguir flexibilizar a forma de estar ligada de acordo com as necessidades da criança, protegendo-o completamente numas alturas e aceitando, noutras ocasiões, os seus ímpetos súbitos de autonomia; actuar num espaço em que as regras estão sempre a mudar, devido ao desenvolvimento do bebé; são aprendiza- gens importantes que a mãe tem que fazer”

– Tarefa 6: reavaliar e reestruturar a própria identidade parental – constitui-se como uma síntese das tarefas anteriores. Neste âmbito, a mulher tem de integrar, na sua identidade, o papel, a função e o significado de ser mãe. Implica, por isso, reavaliar as perdas e os ganhos que a maternidade lhe proporcionou e aceitar as mudanças consequentes a este novo estádio, adaptando-se de acordo com a sua identidade prévia. É impossível encontrar-se completamente preparado para a parentalidade, pelos sentimentos iniciais de fragilidade, dependência e dificuldade de compreensão do novo ser e simultaneamente apresentar sentimentos de felicidade.

Para Mercer (1995; 2006), a identidade materna é conseguida quando a mãe se sente em harmonia com o seu desempenho e em consonância com as suas próprias expetativas como mãe. Esta identidade desenvolve-se em três componentes essenciais: a ligação com o filho; o sentir-se competente nos cuidados ao filho e a expressão de satisfação e de prazer no exercício do papel maternal.

No caso das mulheres que já têm outros filhos, devemos acrescentar às tarefas anteriores a de reavaliar e reestruturar a relação com o(s) outro(s) filho(s), pois também elas têm determinadas tarefas a cumprir, face a uma nova gravidez e maternidade, sendo que a integração da nova criança no seio da família é mais complexa e exigente (Pereira & Piccinini, 2007). Além disso, apresentam ansiedade e receios particulares, diferentes das primíparas, focando a sua atenção noutras questões, que não apenas a relação com o bebé, como por exemplo, o receio de abortar, de ter um parto pré-termo, nos sintomas físicos da gravidez como a fadiga e as perturbações do sono (Carvalho, Loureiro, & Simões, 2006).

Podemos constatar da abordagem de Colman e Colman (1994), que o nascimento de um filho, especialmente se se tratar do primeiro, provoca um grande impacto, a nível intrapessoal e interpessoal, na mãe, no pai e na restante família. Dá-se então início a uma nova e importante fase do ciclo vital da família, com uma sequência previsível de transformação na dinâmica familiar, em função de tarefas e de responsabilidades bem definidas (Mendes, 2009).

Maldonado (1981), citado por Mendes (2009), já referia que a gravidez, o parto e o puerpério representam períodos críticos de transição do ciclo vital da mulher. Nestes

períodos ocorrem grandes mudanças biológicas, com alterações metabólicas e hormonais acentuadas, estados temporários de eventual desequilíbrio, necessidades de adaptação e de reajustamentos intra e interpessoal.

Mercer e Ferketich (1995), através de um estudo exploratório com 136 mães multíparas e 166 mães primíparas, acerca das perceções de competências parentais, verificaram que nos dois grupos não existiam diferenças na perceção de competência parental durante os primeiros 8 meses. Também foi constatado que as mães primíparas, ou seja, sem experiência, apresentam maior competência aos 4 e aos 8 meses, comparativamente ao período pós-parto e no primeiro mês, verificando um desenvolvimento na realização da função materna. Os autores também referem a autoestima como o principal preditor consistente da competência materna para ambos os grupos.

Posteriormente, Nelson (2003), através da realização de um estudo de meta-análise, relativo à transição para a maternidade, constatou que durante esta transição emergiam dois processos sociais: compromisso (processo social básico) e o crescimento e transfor- mação (processo social secundário). Neste contexto, apenas quando surge um compro- misso com a maternidade, em que a mãe vivencia a presença do bebé e se envolve ativamente nos seus cuidados, é capaz de se disponibilizar e aceitar a oportunidade de crescer e transformar-se. O aparecimento do segundo processo depende da realização do primeiro. Deste estudo ainda emergiram cinco categorias representativas de rutura durante a transição: 1: os compromissos – decidir ser mãe, estabelecer um laço vinculativo mãe/filho e aceitar as responsabilidades de ser mãe; 2: o dia a dia – aprendizagem da maternidade utilizando os modelos de papel parental; 3: os relacionamentos – adaptação às mudanças no relacionamento com o companheiro, família e amigos; 4: o trabalho – decisão de continuar a trabalhar, voltar ao trabalho, lidar com o conflito/procura de equilíbrio e por último, 5: o self – enfrentar o passado, encarar-se a si própria, começa a sentir-se “mãe”.

Por fim, também Mercer e Walker (2006), através de estudos que realizaram, vão de encontro às conclusões de Nelson (2003). Acrescentam ainda que quando a mãe é capaz de se ajustar e integrar a nova identidade maternal, sente-se autoconfiante e competente na sua maternidade e expressa amor e prazer na interação com o filho.