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Transmissão da Violência nas Famílias de Origem

Juntamente com os fatores que potencializam a violência doméstica contra as mulheres, é importante pensar sobre a violência no contexto familiar na infância, exposto no primeiro capítulo, pela transmissão transgeracional nas famílias. Para tratar deste tema, recorremos à pesquisa de Zancan, Wassermann e Lima (2013).

Ele foi muito ruim pra mim e muito ruim pro meu filho, mas também ele foi bom pra nós... Ele tá bem proposto a mudar; das outras vezes ele mudava, mas nunca chegava a sentar e falar “eu vou mudar”, e dizia que ele não tava errado, ele não admitia que tava errado. E agora ele falou que viu que não tinha noção de tudo que tava fazendo” (Paula).

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As mulheres dos relatos conseguem ter a noção da violência doméstica sofrida pelas mães nas suas famílias de origem, e percebem uma identificação com seus relacionamentos atuais, nos quais estão na mesma situação. Também percebem que, se houve violência na família de origem do parceiro, isso influencia no caráter violento dele. Quanto às mulheres cujos depoimentos estão expressos supra, observamos que somente na família da Roberta não houve histórico de violência; na família da Paula havia agressões por parte dos avós e dos pais; na família da Márcia ocorre violência entre os pais e entre a irmã e cunhado; e na família da Raquel também ocorre violência entre a irmã e o cunhado.

Meu pai batia na minha mãe, então eu cresci vendo aquela violência. Depois ele não agredia mais fisicamente, mas verbalmente, humilhando ela, e a gente via aquele desprezo que ela tinha por ele. (...) Com a mesma idade que eu vi meu pai batendo na minha mãe, o meu filho viu meu marido batendo em mim; tava repetindo aquela história” (Paula).

Ele (cônjuge) sofreu bastante durante a infância também. O pai era agressivo com os filhos. Se criou assim; o pai e a mãe bebendo dia e noite; não tinha amor de mãe, não tinha amor de pai. Acho que isso aí também ajuda, né?” (Márcia). Meu pai era bem agressivo com minha mãe e com a gente. Ele sempre foi assim. Desde quando a gente era criança nós passamos muitos anos na mesma situação que eu tô passando agora. ...A minha irmã tá passando pela mesma situação, parece que isso vai passando de geração pra geração” (Márcia).

Em relação ao fato de os parceiros terem presenciado violência durante a infância, isso se torna um motivo para que elas permaneçam nessas relações, pois acreditam que o comportamento agressivo é de origem emocional ou de traumas vividos, como se os homens fossem vítimas de si mesmos, compulsivos e descontrolados e, “desse modo, a compreensão da violência nas relações conjugais é um aspecto que dificulta as rupturas, reafirmando a impotência da mulher para o enfrentamento do problema” (ZANCAN; WASSERMANN; LIMA, 2013, p. 72).

As mulheres que passaram por violência durante a infância são mais propensas a sofrer de problemas psíquicos, e, segundo Silva, Neto e Filho (2009 apud ZANCAN; WASSERMANN; LIMA, 2013), esse fator forma sujeitos mais vulneráveis a vivenciar as agressões pelos parceiros ou reproduzir a violência na vida adulta. Essa cultura da violência doméstica, se não for elaborada pelo sujeito, continua sendo perpetuada pelas gerações, continuando o sofrimento, mais especificamente, das mulheres.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A violência contra a mulher tem se tornado um assunto de muita relevância. As mulheres fizeram muitas conquistas históricas durante muitos séculos, principalmente adquirindo direitos perante a sociedade. Mesmo assim, continuam sendo a população que mais tem seus direitos humanos infligidos e dessa forma se torna importante o conhecimento desses acontecimentos.

Os fatores históricos e os fatores culturais que estão envolvidos na problemática da violência doméstica se perpetuam a partir da transmissão psíquica que ocorre por várias gerações nas famílias. São os sujeitos que fazem a função materna e paterna que transmitem a história, a cultura, que as crianças presenciam e incorporam. Como efeito entendem que as relações violentas como “naturais” e, portanto, pode advir a repetição da violência.

Temos ainda fatores secundários que ajudam a influenciar na naturalização do problema, e que são passíveis de aceitação pelas mulheres, como o uso de álcool e drogas.

Podemos refletir a partir do estudo realizado que a violência contra a mulher tem várias formas que podem ser analisadas pela Lei Maria da Penha, que desenvolve um papel fundamental na proteção e na conservação dos direitos humanos das mulheres. Não tem, porém, o poder de sessar esse fenômeno que assola muitos países, porque envolvem mudanças de dois sujeitos para que isso ocorra.

A partir da psicanálise é possível entender que a constituição psíquica das mulheres se difere da dos homens. Assim a fantasia se dá pela posição em que ela assume conforme sua constituição. Quando se estuda aspectos do inconsciente conseguimos entender que a permanência nas relações violentas não são próprias de decisões racionais, mas são decisões influenciadas por nosso mecanismo psíquico.

A maior dificuldade no enfrentamento da violência doméstica são os fatores inconscientes que não são visíveis para quem está passando por essa problemática nos

próprios lares. As fantasias de espancamento infantil constituem o sujeito, não sendo possível mudanças repentinas.

Sabemos que a fantasia perdura no sujeito por toda a vida e desde o nascimento se está na busca do objeto que a satisfaça. A partir das suas vivências e da separação desse objeto de desejo ele passa a se conhecer como um Eu. Nesse sentido, o sujeito acaba se tecendo entre a fantasia e realidade.

Dessa forma, esse trabalho traz falas de mulheres que vivem na realidade a violência para mostrar que apesar das fantasias de espancamento existirem e contribuírem para a permanência nas relações com parceiros agressivos, a violência no real causa muito sofrimento para quem vive e deixa marcas que não podem ser esquecidas rapidamente.

Pensando no contexto profissional, o psicólogo é muito importante no processo de elaboração psíquica do sujeito, para que possa vir a ressignificar os conteúdos inconscientes e que permaneciam atualizando as fantasias, de forma que elabore esses acontecimentos e consiga se desfazer desse universo de tanto sofrimento.

Por esse motivo, concluo meu trabalho refletindo os fatores que contribuem para que as políticas de intervenção na violência doméstica não sem mostram totalmente eficazes. Ocorre que não se tem como modificar a realidade desses sujeitos quando as questões psíquicas e de vivências individuais não foram trabalhadas de maneira necessária para a elaboração.

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