• Nenhum resultado encontrado

Fonte: Foto do autor (2005).

Face ao exposto, cabe uma análise dos fatores tanto objetivos quanto subjetivos, internos e externos que garantiram a manutenção da vinculação dos camponeses à um sistema de produção marcado pela especialização e vulnerabilidade, sendo ainda tímidas as alternativas ao mesmo.

Primeiramente, precisamos considerar o caráter qualitativo da gestão camponesa. Despidos de pretensões de acumulação, sua racionalidade econômica está orientada por “equações” que privilegiam a satisfação do universo de necessidades da família, de forma que a ausência de um cálculo contábil (SANTOS, 2003) atuou no sentido de não permitir ao agricultor perceber o gradativo declínio do retorno monetário ocorrido a partir dos anos 1980. Isto explica o fato de que a totalidade dos relatos sobre compras de caminhões, tratores e outros bens com os rendimentos da cebola, não ultrapassarem a barreira do ano de 1978. O período áureo pré – anos

Box 1: Categoria “Ligação com a cebolicultura”

A tradição secular de uma atividade transmitida entre as gerações, a ocorrência de um período próspero da cultura e a inexistência de alternativas de reconversão do sistema de produção e as dificuldades de inserção no mercado de produtos alternativos à cebola, centralizam a cebolicultura no ideário do camponês nortense como a única via para a obtenção de entradas monetárias na unidade de produção. A respeito do primeiro fator temos: “ – Eu acho que tá bom, eu me criei aprendendo a fazer isso né, acho que

mudá talvez não adianta, a mudança as vezes pode dá certo as vezes pode não dá. A cebola tá dando pra sobrevivê, vô me mantendo, enquanto dá vô me mantendo assim”

(2º entrevistado não-aposentado, agricultor de São José do Norte, 2005). Com relação aos demais elementos, segue o trecho:

“ – Eu acho assim, que as vezes as pessoas dizem, “ah, a cebola é ruim”, mas nós aqui, o cara não vê outra coisa né. Pra nós eu acho que se o cara tivé sorte de planta e colhe ainda pra nós ainda é dos melhorzinho que tem. Se tu tivé sorte de plantá e colhê, vendê e recebe né (risos), eu acho que ainda pra nós aqui é que ainda o cara se defende.(...) E as vezes a pessoa inventa que nem inventaram agora já aí o fumo, maior parte já não deu certo, maior parte o cara vê o pessoal ai reclamando. E nós aqui pra fazê algum dinheiro é a cebola, porque se plantá o milho aí alguma coisa, até serve pra casa, mas pra fazê dinheiro já não funciona igual então eu acho que a cebola ainda... Dá um certo trabalho, dá despesa, mas pra nós aqui ainda é o que tem de melhor ainda.(...) (3º entrevistado não-aposentado, agricultor de São José do Norte, 2005)

1980 é elemento de uma construção simbólica capaz de fazer com que durante muito tempo os agricultores acreditassem que os bons tempos voltariam, desinteressando-se de alternativas de caráter incerto, se comparadas ao retorno que segundo os mesmos: “(...) dando, não tem como a

cebola!”. Estabeleceu-se assim uma profunda ligação entre o camponês e a plantação de cebola,

observada numa das categorias da análise de conteúdo realizada nas entrevistas, como segue (Box 1).

Por outro lado, precisamos entender que a especialização produtiva observada em são José do Norte não é simplesmente fruto de uma opção espontânea dos camponeses por produzir este vegetal, influenciados pelo conjunto de fatores que acabamos de enumerar. Resulta também de uma falta de opção.

4.5. O PROBLEMA INFRA-ESTRUTURAL: SÃO JOSÉ DO NORTE FORA DOS PLANOS DE MODERNIZAÇÃO DO ESTADO

A especialização na cebolicultura que traçou o perfil do espaço agrário nortense do final

do século XIX até o presente é mais do que o resultado da escolha dos camponeses por plantar cebolas exclusivamente. É necessário que tenhamos consciência de que determinações em escalas mais amplas operaram no sentido desta construção, num quadro em que fatores externos e internos conjugam-se, na cooperação ou no conflito, definindo a especificidade do lugar. Em especial, destacamos, até recentemente, a inexistência de qualquer movimento modernizante no espaço local planejado pelo Estado ou atores econômicos privados, capaz de, mesmo como efeito colateral, fornecer condições para a pluralização das estratégias de reprodução camponesas.

Indiferente do juízo que se faça a respeito do processo de modernização, o fato é que este se trata da adequação do processo produtivo às necessidades da reprodução do capital. Então se na área de estudo não assistimos à territorialização intensiva de atividades tipicamente capitalistas, também é verdade que o processo de modernização que operou em diversas regiões do Rio Grande do Sul, não se manifestou na área de estudo. A modernização não é um processo homogêneo porque, sendo manifestação do capitalismo, traz como característica intrínseca o desenvolvimento desigual e a preservação/recriação de relações não-capitalistas e, por isso, não- modernizadas, de produção.

Em Fontoura (1994) é possível de forma clara observar como ao longo do processo de modernização da agricultura ocorrido no Rio Grande do Sul, o município de São José do Norte permaneceu alheio. Realizando uma análise dos sistemas de produção identificados, a cebolicultura camponesa, a cebolicultura praticada pelos comerciantes ou intermediários e a rizicultura, o autor buscou discutir o censo comum a respeito dos obstáculos à modernização da agricultura em São José do Norte, que segundo ele circunscreviam-se a três elementos: a escassez de água, a precária oferta de energia elétrica e os problemas para o transporte da produção.

Tendo como fonte principal o lençol freático, os diversos banhados existentes na área e a própria Lagoa dos Patos, a escassez de água é relativa. Segundo o autor, na medida em que existem tanto a fonte quanto as técnicas para a utilização da água, faltaram na verdade os investimentos estatais que viabilizassem tal uso. Esta dificuldade representa um obstáculo, ainda hoje. Necessária na preparação das mudas de cebola e nos períodos de estiagem ao longo do ciclo da cebola, a ausência de formas de irrigação torna também sazonal a produção de autoconsumo nos estabelecimentos camponeses78. Os cebolicultores-comerciantes por sua vez, valiam-se de estratégias como a localização mais próxima da cidade para o acesso à energia elétrica ou o uso de diaristas para a irrigação manual.

No tocante à modernização dos sistemas de produção e a territorialização de atividades tipicamente capitalistas, o sistema de produção mais obstaculizado foi a rizicultura. Tendo a Lagoa dos Patos como principal fonte de água para irrigação, seu uso torna-se inviabilizado em

78 Em pesquisa realizada no ano de 2003, buscávamos, entre outros objetivos, entender as dificuldades encontradas

pelos camponeses para produzir gêneros de autoconsumo. Além do período de alta valorização da cebola, já discutido, o trecho a seguir é significativo das respostas que obtivemos: “(...) – Legumes aqui tem um problema: só a

época, por causa que nóis não temo irrigação né. Na época que dá a gente planta mais. (...) Só que pra planta é só uma vez no ano. Porque não podemo plantá sempre por causa que a gente não tem irrigação, é só na época”. (Agricultor da localidade do Estreito – São José do Norte, 2003)

diversas ocasiões, nos períodos de salinização da mesma, ocorridos periodicamente a partir da penetração da cunha salina oceânica através do estuário da Lagoa dos Patos79.

Outro fator, a localização das propriedades dedicadas à rizicultura foi influenciada, em nosso ver, por determinantes históricos. O povoamento açoriano definiu uma estrutura fundiária bastante pulverizada na porção mais meridional do município, principalmente no primeiro e segundo distritos. O terceiro distrito que, desde a criação da Fazenda Real de Bujuru (1738) apresenta uma estrutura fundiária com propriedades de maior porte, tornou-se a área da rizicultura. Com isso os rizicultores não puderam se valer da estratégia da proximidade da sede para o acesso à energia elétrica.

A energia elétrica representou, até recentemente, um obstáculo não só à modernização das atividades agrárias, mas de qualquer natureza dentre as possíveis em São José do Norte. O consumo local de energia foi abastecido até 1994 por dois motores a diesel localizados na sede do município e uma pequena unidade na Vila de Bujuru. Tal sistema era deficitário e inconstante, impossibilitando a localização de instalações que demandassem grandes quantidades de energia. A escassez de energia e a inexistência de eletrificação rural80 tiveram uma relação direta com o problema da irrigação.

Dentre os elementos do processo modernizante, a geografia do movimento, ou seja, a organização espacial das infra-estruturas de transporte tem um papel fundamental no quadro de integração ou isolamento de um determinado lugar ao sistema econômico mais amplo, visto que “(...) não basta produzir. É indispensável pôr a produção em movimento, pois agora é a

circulação que preside a produção” (SANTOS E SILVEIRA, 2001, p. 167). Além disto, o

79 Tal fato levou à construção de uma eclusa no canal São Gonçalo na década de 1970. A circulação das águas entre a

Lagoa dos Patos e a Lagoa Mirim passou a ser controlada objetivando a salinização das águas da segunda lagoa, atendendo aos interesses dos arrozeiros instalados naquela área.

80 O problema da eletrificação rural hoje está praticamente resolvido. Como será possível observar adiante, tal infra-

isolamento passa a se constituir de um trunfo a favor dos intermediários, como discutimos anteriormente e demonstraremos a seguir.

Ao observarmos o histórico de instalação de infraestruturas de transporte no estado do Rio Grande do Sul, identificamos a existência de duas grandes orientações, ou paradigmas que se apresentaram hegemônicos em determinados momentos e mesclados em outros. São os paradigmas geopolítico, ou de defesa, e o de modernização e integração de espaços econômicos. Em ambos os casos o município de São José do Norte não se enquadrava como área de interesse do Estado.

Como é possível extrair de Rückert (2003, p. 27), no último quartel do século XIX, a instalação de infraestruturas de transporte, as ferrovias, alinhavam-se com o objetivo geopolítico do Estado, ou seja, consolidar posições de defesa ao longo das fronteiras. Através das estradas de ferro, o objetivo era o de permitir a locomoção de tropas entre os pontos-chave das fronteiras sul e oeste, numa etapa da geopolítica que sucedia o sistema sesmarial, preparando o território para uma possível invasão argentina ou da República Oriental. Neste contexto, as ferrovias foram instaladas para capilarizar aquelas porções do território riograndense que poderiam vir a ser teatro de operações militares. Com exceção da ligação entre a capital e o Porto de Rio Grande, as linhas foram instaladas longitudinalmente às fronteiras sul e oeste.

Pelo que se vê, a intenção do Estado era a de dar mobilidade às áreas fronteiriças com o intuito de permitir uma melhor atuação na defesa do território. Esta fronteira bem definida difere bastante do contexto observado no século XVIII com sua vasta fronteira móvel, cenário no qual o atual município São José do Norte participava de forma importante como um empecilho ao movimento, considerando que:

“O objetivo lusitano era de promover a rápida colonização desta região para impedir as pretensões espanholas em expandir-se até estas terras. A península [sic] é de suma importância no quadro geopolítico, ocorrendo um incremento populacional e econômico que a estratégia dos conflitos do Prata pode explicar.” (TORRES, 2000, p. 46) (Grifo nosso)

Encontramos a função nas palavras de Bunse:

“Essa condição de refúgio para os retirantes do Prata e do Rio Grande, aliada a esta outra de servir de baluarte contra novos ataques e avanços, que iriam ferir à morte o Rio Grande nascente, deram, nesta fase da história, uma importância extraordinária à península [sic]. Era urgente que a região fosse povoada densamente para poder resistir a novas penetrações do inimigo. E surgem as primeiras freguesias: Mostardas e Estreito” (BUNSE, 1981, p. 18-19)

Considerando a mudança de cenário do século seguinte, São José do Norte deixou de ser área estratégica, ficando alheia a qualquer interesse de instalação das chamadas articulações

territoriais fundantes de que nos fala Rückert (2003, p. 27). O viés geopolítico perdurou até o

final da década de 1920, período no qual nenhum planejamento de orientação exclusivamente econômico-integradora se materializou.

O período moderno do Estado brasileiro inaugurou oficialmente a adoção do paradigma econômico integrador no planejamento das infraestruturas de transporte. Sob a égide de um Estado centralizador a partir de 1930, o plano nacional de viação de 1934 (RUCKERT, 2003, 30) é um exemplo de plano de articulação de mercados regionais. Neste período são construídas as atuais rodovias BR 101 e BR 116. A primeira ligando a capital gaúcha à capital federal pelo litoral e a segunda pela serra. O Brasil arquipélago fragmentado em espaços regionais paulatinamente daria lugar à integração nacional, com a predominância do modal rodoviário a partir da segunda guerra mundial (SANTOS e SILVEIRA, 2001, 45).

A partir dos anos 1960, com o advento do golpe militar e a criação do Estatuto da Terra, acelera-se o processo de modernização da agricultura no Rio Grande do Sul. No período militar os paradigmas geopolítico e econômico se mesclam, sendo que se observa a instalação de infra- estruturas de transporte objetivando a capilarização do território estadual para o escoamento da produção das regiões produtivas alvo da modernização em direção à capital ou ao porto de Rio Grande.

Conforme nos diz Fontoura (1994, p. 56) a respeito da modernização e da formação dos complexos agroindustriais (CAI’s):

“As culturas de maior interesse ao capital financeiro no estado do Rio Grande do Sul são o arroz, o trigo e a soja. E foi em função de viabilizar estas culturas e a sua integração com o grande capital que se promoveu a construção de uma infra-estrutura de estradas, energia, barragens, armazenamento, bem como linhas de crédito subsidiado via sistema cooperativo ou organizações diversas.”

Seguindo esta tendência, no período 1960-70 diversas rodovias foram criadas, nas regiões alvo do processo modernizador. A BR 290 foi das primeiras, ainda nos anos 1960. Nos anos 1970, Fontoura (1994) aponta a criação das rodovias BR386 e BR392. A primeira cortando o planalto em direção à capital, Porto Alegre, oferecendo a mudança para os modais ferroviário ou hidroviário a partir de Estrela. A segunda descreve um traçado ligando os municípios de Ijuí e Pelotas ao porto marítimo de Rio Grande. O planalto também é cortado no sentido leste-oeste pelas rodovias BR 285 e BR 293, construídas nesta década. Para escoar a produção das margens das lagoas Mirim e Mangueira, foi construída a BR 471 ligando Chuí a Santa Vitória do Palmar.

Pelo que se observa, o traçado das rodovias federais no período 1960-70 atende às áreas cuja agricultura era objeto de modernização, com as culturas de arroz, trigo e soja. Isto posto, torna-se claro o caráter de espaço de exclusão atribuído à restinga da Lagoa dos Patos e São José

do Norte conseqüentemente. Desde a definição das fronteiras, deixara de ser área estratégica geopoliticamente, cabendo o papel de porto à vizinha cidade de Rio Grande. Quando a instalação de infra-estruturas, em especial de transporte passa a ser elemento do processo modernizante, o município de São José do Norte não apresentava um sistema de produção plenamente apto à adoção do paradigma moderno e à integração com os capitais industrial e financeiro81. A pavimentação da BR 101, única ligação terrestre do município com o restante do estado, permaneceu como elemento do discurso político durante décadas.