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Elegemos como referencial para o estudo da transposição didática do conteúdo, Chevallard (2010), pois é um didata ligado à didática da Matemática, campo em que nosso estudo se situa, porém com a preocupação de não nos afastarmos da questão da mediação. É necessário ter em conta, conforme afirma Resende (2007, p. 38), que: “A lógica e os condicionantes que regem a organização desses níveis de saberes – científicos, acadêmicos universitários e os escolares – são diferentes e merecem ser tratados, sabendo-se que há relações entre eles, mas que carecem de ser explicitadas.”

Ainda que estejamos tratando de um mesmo campo, no caso deste trabalho, a Matemática, as formas de organização, de comunicação são diferentes em cada nível de saber – científico, acadêmico-universitário e o escolar –, pois os objetivos que se têm também o são, assim como os condicionantes epistemológicos, históricos e culturais.

Em sua teoria, Chevallard (2010) afirma que o processo de didatização necessária para que o savoir savant (saber sábio) transforme-se em saber ensinado é dado pela teoria da transposição didática. Nesse sentido, ele define transposição didática como o trabalho ou conjunto de transformações adaptativas que tornam o savoir savant, saber sábio, ou saber produzido pela academia, apto a se transformar em objeto de ensino. O autor faz distinção entre dois tipos de transposição, a stricto sensu e a lato sensu. A primeira, stricto sensu, é a passagem do conteúdo de saber científico a uma versão didática deste objeto de saber. Esta é realizada pelos sistemas didáticos dos quais fazem parte o professor, o aluno e o saber ensinado, inter-relacionados com o ambiente. Já, a transposição lato sensu envolve olhar para as transformações realizadas no objeto desde a sua designação como saber a ensinar até se constituir em objeto de ensino, observando-se o esquema proposto pelo autor: objeto de saber → objeto a ensinar → objeto de ensino (CHEVALLARD, 2010, p. 45).

Vislumbramos assim que o conhecimento científico passa por profundas transformações, desde quando produzido na academia até chegar à escola e ao aluno. Esse processo, pelo qual o saber é textualizado e divulgado, promove rupturas em seu contexto original, e, ao se tornar público, ele é despersonalizado, descontextualizado. O processo pelo qual o conhecimento, tal como foi concebido, é selecionado e transformado em conhecimento a ser ensinado é classificado por Chevallard (2010) como transposição externa.

Ao chegar ao nível da escola, ou seja, nos sistemas didáticos, os saberes já passaram pelo trabalho de transposição externa, através da nooesfera, essa é definida como “instituições de transposição de saberes”, espaço onde se opera a interação entre o sistema didático e o ambiente social ou, ainda, esfera onde se pensa o funcionamento didático. A nooesfera age no sentido de contornar crises no ambiente de ensino (provocadas pelo desgaste biológico ou moral dos saberes a ensinar), mas age também no sentido de gerar crises no ambiente de ensino com sua imposição na seleção dos conteúdos ensináveis.

Assim, a autonomia do professor em relação aos saberes a ensinar é relativa, pois ele decide o que ensinar a partir do que já está determinado nos programas, livros e nas propostas curriculares, ou seja, pelo que já foi determinado pela noosfera.

Mesmo com essa imposição externa, a seleção realizada pelo professor, vai fazer toda a diferença no resultado que o aluno vai alcançar, pois ele não deve perder de vista que os conteúdos devem ser “ensináveis” e para que sejam ensináveis é preciso que sejam explicáveis, operacionais e avaliáveis. Essa deve ser a preocupação do professor em sua seleção.

Essa seleção precisa vir seguida de uma transformação que faça do conteúdo um saber ensinável, e esse é papel do professor através da transposição didática, que precisa ser realizada promovendo a familiarização do aluno com o conteúdo mantendo, no entanto, maior fidelidade possível com o saber sábio. Este deve ser um dos objetivos principais das relações ensino-aprendizagem e a vigilância epistemológica do saber, para que não se perca a cientificidade.

O domínio do saber a ensinar por parte de quem ensina é certamente imprescindível ao ato de ensinar, mas, por mais fiel que seja o saber produzido na academia, este será insuficiente no processo de ensino, pois o mesmo deverá considerar todos os aspectos da prática de ensino. A prática de ensino envolve muito mais aspectos do que o conteúdo em si. É preciso compreender que a sala de aula é ambiente de interações, cabendo ao professor promover oportunidades ou atividades escolares voltadas para a resolução de problemas

próprios ao mundo sociocultural daqueles a quem ensina, contextualizando o saber, ou melhor, re-contextualizando esse saber.

Nesse sentido, uma transposição didática que considera as práticas sociais como referência, deve, na concepção de Martinand (apud ASTOLFI, 1990), considerar alguns elementos, ou momentos, em sua realização dentre eles podemos citar, a realidade do aluno, as atividades realizadas em família ou comunidade, os problemas ou dificuldades enfrentadas no dia a dia, a realidade socioeconômica e politica. Sem desconsiderar o problema científico, que é a questão a que se propõe estudar.

“Uma definição nunca bastou para fazer um saber [...]” (ASTOLFI, 1990, p.74). É assim que questões devem ser expostas, para que os saberes encontrem significações. Um mesmo conteúdo poderá ser abordado a partir de diferentes problemas, o que conduzirá a diferentes representações de ciência. Assim, pode-se evitar o risco de apresentar uma visão de ciência pronta e acabada da qual se deva somente assimilar os conceitos, apresentando uma ciência dinâmica, passível de reconstruções e reformulações. Para tal, é necessário levar em consideração os saberes teóricos de que se dispõe sobre o assunto e os saberes que já foram produzidos pelos diferentes grupos socioculturais a respeito do problema em questão.

É importante destacar que nem todos os saberes determinados como saberes a ensinar pelos órgãos competentes (noosfera), ou mesmo pelo professor, em seu programa de ensino, são efetivamente assimilados pelos alunos. Muito se perde. O trabalho de ensinar do professor e o trabalho de assimilar do aluno constituem, então, o trabalho de didatização, que é próprio do processo de transposição didática stricto sensu, definido por Chevallard (2010) e que ocorre no ambiente escolar.

Isso nos remete à possibilidade de considerarmos que no ambiente escolar as “transposições”, ou transformações nos saberes a ensinar, continuam a ocorrer até se tornarem saberes assimilados, ampliando assim o conceito de transposição didática, levando-o até o trabalho do aluno, que é o de transformar os saberes ensinados em saberes assimilados. Não queremos adotar nesse trabalho um conceito de transposição didática que tenha como foco apenas o conteúdo no processo de didatização, num processo que ignora outros elementos, mas vê-lo numa perspectiva dialética de construção/reconstrução de conhecimentos, que envolve relações complexas, contradições, ou seja, na perspectiva de mediação didática. Como afirma Lopes, citada por Resende (2007, p. 46), “processo de constituição de uma realidade através de mediações contraditórias, de relações complexas, não imediatas, com um profundo sentido de dialogia”.

Não se pode negar que as transposições realizadas pelo professor, em seu trabalho na tentativa de um processo de didatização, estão diretamente relacionadas com as suas concepções epistemológicas de Matemática, de ensino e de aprendizagem, pois, para alguns professores “ensinar” significa simplesmente comunicar os saberes sábios através de explanações seguidas de exercícios de fixação de conteúdos. Esse tipo de professor usa em sua transposição aquilo que já foi apresentado na transposição realizada nos livros didáticos ou nos textos lidos durante sua formação, repassando os conteúdos tal como apresentados, sem a preocupação de interagir com o meio e com seu aprendiz. Nesse contexto, aprender significa memorizar e reproduzir as informações recebidas.

No ensino de Matemática encontramos professores explicando o conteúdo como simples algoritmos e/ou fórmulas, deixando de lado conceitos, apenas oferecendo a seus alunos a possibilidade da repetição de exercícios para a mecanização e aplicação dos processos.

Para ilustrar como deveria ser esse processo da transposição didática apoiando na concepção de Chevallard (2010), criamos a figura a seguir:

Figura 2: Processo Ensino-Aprendizagem.

Dentro do esquema apresentado (Figura 2), percebemos que a concepção epistemológica de “ensinar” significa proporcionar ao aluno experiências de aprendizagem mais significativas e não apenas lhe dar opções para reproduzir e memorizar. O esquema apresentado significa possibilitar ao aluno a construção ou mesmo a reconstrução dos saberes a ensinar em seu processo de apropriação do saber, conforme já dissemos anteriormente.

Assim, Chevallard (2010) examina que o saber não chega à sala de aula tal qual ele foi produzido no contexto científico. Ele passa por um processo de transformação, que implica em lhe dar uma roupagem didática para que ele possa ser ensinado. Isso acontece porque o objetivo da comunidade científica é diferente do da escola.

Entendemos a transposição didática como uma metodologia pela qual analisamos o movimento do saber sábio, aquele que os cientistas produzem, para o saber a ensinar, aquele que está nas diretrizes curriculares, nos livros didáticos, nos currículos, para o saber ensinado, e, finalmente, para aquele que realmente acontece em sala de aula ou ambiente educacional, que denominamos saber ensinado. Essas diferentes instâncias de saberes envolvem um conhecimento de algo, no caso específico, da Matemática.

Críticas foram feitas a Chevallard (2010) e a esse modelo, no sentido de que não são os saberes científicos a única fonte dos saberes escolares, mas também outras práticas sociais. Entretanto, há autores como Leite (2007) que concorda que Chevallard (2010) não afirmou isso, mas que a sua preocupação era com as transformações adaptativas, considerando que os saberes não vivem do mesmo modo em cada uma dessas instâncias.

Encontramos a transposição didática assumida em um sentido restrito, entendida como a passagem do saber científico ao saber ensinado simplesmente. Tal passagem é compreendida enganosamente como uma mudança de lugar. Assim, essa passagem transformaria o saber em outro saber, diferente do saber destinado a ensinar.

Em seu trabalho o professor enfrenta solitariamente a responsabilidade de redimensionar o objeto de conhecimento, transformando-o em objeto de ensino, transpondo-o da prática discursiva da noosfera para outra, ou seja, tratando o conhecimento, levando em consideração as mudanças de situação discursiva, as necessidades dos alunos e o programa escolar. Pois, a escola, dentre suas principais funções, tem a de transmissão de conhecimentos produzidos pela humanidade. Historicamente o conhecimento se dá na sociedade fundamentalmente por meio do processo de interação e de comunicação entre as pessoas. Dentre estes conhecimentos, estão os científicos, que, à medida que são elaborados, passam por processos de codificação. Cabe à escola no cumprimento de seu papel elaborar processos

didáticos que devem considerar os códigos científicos Entretanto, tais códigos precisam passar por uma transposição antes de serem ofertados para serem apreendidos pelos alunos.

Como hoje dispomos de muitos recursos e espaços para a realização da transposição didática, dentre eles os propiciados pelas tecnologias de informação e comunicação, trataremos a seguir dos Ambientes Virtuais de Aprendizagem.

Ainda que a teoria da transposição didática de Chevallard seja uma abordagem antropológica e epistemológica da constituição dos saberes escolares matemáticos, podemos aproximar elementos dessa teoria com o que estamos chamando de mediação didática. O professor, ao se preocupar com a transposição didática interna, ele está organizando as atividades de ensino, colocando à disposição dos alunos elementos mediadores, dentre os quais o próprio conteúdo matemático. Nesse início do século XXI, com o avanço tecnológico e o crescimento de cursos na modalidade a distância, novos elementos mediadores estão disponíveis, dentre eles, os AVA.

2.3 OS AMBIENTES VIRTUAIS DE APRENDIZAGEM: ESPAÇOS DE MEDIAÇÃO

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