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Transposição do conhecimento na Educação em Ciências

Capítulo 2 – Dimensões curriculares no Ensino Fundamental

2. DIMENSÕES CURRICULARES NO ENSINO FUNDAMENTAL

2.3. Transposição do conhecimento na Educação em Ciências

A preocupação central da Teoria da Transposição Didática (TTD) se envereda pela busca de caminhos para que a aprendizagem aconteça. A aprendizagem aqui referida se alicerça em um saber a ser ensinado, constituído a partir do conhecimento contraído do universo do saber sábio. Conforme o contexto, a forma de transposição do conhecimento se transforma, tornando-se um saber a ser ensinado em sala de aula (CHEVALLARD, 2013; OLIVEIRA, 2013).

As etapas fundamentais da Transposição Didática (TD) estão alicerçadas sobre a tríade saber sábio, saber a ensinar e saber ensinado (CHEVALLARD, 2013; MARANDINO, 2004). O saber sábio é produzido no universo erudito a partir de demandas da sociedade e divulgado conforme canais de acesso à comunidade científica. Possui maior grau de abstração

e complexidade para sua compreensão. Esse saber passa por um processo seletivo para determinação do saber que será efetivamente ensinado aos estudantes.

O saber a ensinar é o saber sábio transformado conforme contexto escolar e direcionado aos representantes dos sistemas de ensino. Está presente nas propostas curriculares e nos materiais de acesso ao grupo escolar, com adaptações de linguagens ao seu novo meio. O saber ensinado é destinado à comunidade escolar, mas ele é previamente adaptado pelo professor, segundo sua capacidade e práticas pedagógicas, para aprendizagem do estudante em “[...] um espaço diferenciado de produção de saberes [...]” (CHEVALLARD, 2013; MARANDINO, 2004, p. 95).

Mas como é possível determinar o que deve ou não ser ensinado? A quem cabe formalizar a aprendizagem desse conhecimento? Para responder a essas questões é preciso ter claro qual é o conhecimento a ser ensinado e quais são as intencionalidades da aprendizagem de tais conhecimentos, dando ciência aos sujeitos aprendentes das situações que serão vivenciadas dentro do espaço educacional quando confrontadas com suas experiências cotidianas. Assim, quanto mais envolvidos e familiarizados estiverem com as situações de aprendizagens menores serão as deficiências da relação educativa.

A saber, a relação educativa reúne, em uma mesma situação, os sujeitos envolvidos com a intenção de ensinar algo a alguém que esteja interessado em aprender. Esses elementos reunidos são responsáveis pela adaptação do conhecimento, conforme contextos históricos e sociais. Essa manifestação contribui para que a TD seja impulsionada pela intenção de realização de um ensino, que parte do “[...] saber sábio para o saber a ensinar, que é a forma didática de trabalhar esse saber que se encontra nos programas de ensino, nos livros didáticos e nos materiais de apoio para o ensino [...]” (CHEVALLARD, 2013; OLIVEIRA, 2013, p. 110) e se torna um saber efetivamente ensinado.

O mote da TD é converter o saber sábio em uma associação de saberes pertinentes de serem ensinados de forma não fragmentada. Desse modo, a TD de um conhecimento passível de ser ensinado se legitima quando os sistemas de ensino se afastam das imposições da sociedade e se vinculam às reais necessidades do grupo a quem as etapas educativas se direcionam.

Para melhor compreensão da importância da TD para o processo de aprendizagem escolar é importante entender onde, por que e por quem o conhecimento é transformado com fins de ensino.

A escola é o ambiente fundamental de produção de saberes. Nela, os saberes são transformados em conhecimentos transmissíveis e assimiláveis, reestruturados a partir de sua vinculação ao cotidiano dos alunos. Já o professor é o gestor intermediário entre o saber sábio e aquele a ser efetivamente ensinado, refletindo sobre o conhecimento e definindo quais são os objetivos da aprendizagem em variadas situações escolares.

Chevallard (2013) ao falar em seus escritos sobre a Teoria da Transposição Didática ressalta a importância da presença ativa dos sujeitos sociais (professor e estudantes) para que a TD aconteça. O ensino de uma associação de conhecimentos somente será possível se sua adaptação para aprendizagem escolar estiver vinculada a elementos que permitam sua reconfiguração a fim de torná-lo ensinável. Entretanto, muitas vezes, o que se encontra nos ambientes escolares é um saber a ser ensinado desvinculado de sua origem, sem relação alguma com sua historicidade, passando a ser ensinado somente como forma de atingir os objetivos propostos nos currículos já estabelecidos.

As etapas procedimentais da TD destacam aspectos articulados entre si, que possibilitam a transformação do saber sábio em saber a ser ensinado. São eles: descontemporalização, naturalização, descontextualização/recontextualização e despersonalização.

A descontemporalização é a etapa da TD que apresenta o saber ensinado desvinculado de sua gênese. Ele é afastado de sua origem e de sua produção histórica. A naturalização significa a apropriação do saber ensinado pela instituição de ensino que coordenará os procedimentos metodológicos a serem empregados na TD do conhecimento.

A descontextualização do saber sábio se constitui na fase de determinação dos elementos variantes e invariantes, ou seja, aqueles que serão descontextualizados e recontextualizados (invariante) e aqueles que permanecerão descontextualizados (variante), pois ainda não possuem significado (sentido) para se tornarem um saber a ser ensinado. Por fim, a despersonalização - produção e representação do saber - é a escolha do saber a ser ensinado, que admite novas funções no processo de produção social do conhecimento, se complementando no processo de aprendizagem.

A transposição do saber sábio ao saber a ser ensinado se constitui cada vez mais de elementos do senso comum. Eles são integrados ao planejamento escolar priorizando o interesse dos alunos, mediante a utilização de estratégias de ensino que facilitam a identificação das relações cognitivas dos educandos com a produção de novos saberes no

campo educacional. Nessa perspectiva, vários autores vêm discutindo sobre a TD do conhecimento através de práticas de ensino diversificadas para a educação em Ciências (ROSA et al., 2015; BATISTA FILHO; GOMES; TERÁN, 2011).

A produção dos novos saberes emerge da compatibilização de um sistema didático11 presente no entorno da “noosfera”12 (CHEVALLARD, 2013). Ele se forma na interposição da relação professor-aluno, para o enfrentamento dos “[...] problemas resultantes do confronto com a sociedade [...]” (MARANDINO, 2004, p. 97).

A efetivação da transposição do conhecimento a novos saberes é realizada por professores preocupados com a adaptação dos conteúdos e da linguagem, presentes em materiais de apoio ao trabalho em sala de aula e às referências cotidianas dos educandos. Sem esse compromisso dificilmente a apropriação do saber aconteceria já que os obstáculos a serem enfrentados para compreensão das relações existentes entre os saberes destinados a aprendizagem se afastam do saber sábio e se aproximam do saber de senso comum.

Para elucidar essa afirmação os autores relatam que a ocorrência de aprendizagem só é possível se houver “[...] deformações do objeto do saber [...]”, de modo que venha a ter significância para o educando, caso contrário, eles podem vir a manifestar desinteresse pelo seu conhecimento. Essa indiferença se manifesta por existir um abismo “[...] entre os conteúdos abordados em sala de aula, a realidade dos estudantes e as origens do saber em questão, acarretando mudanças didáticas [...]” (ROSA et al., 2015, p. 24, 26; MARANDINO, 2004) para a transformação do saber sábio em saber ensinado no espaço escolar.

O professor, como gestor do saber a ser ensinado, é o responsável pela transposição do conhecimento presente nas unidades de ensino, mesmo apresentando dificuldades quanto à utilização de recursos didáticos inovadores para construção de uma ponte entre o conhecimento a ser ensinado e a realidade social do grupo de educandos. Tal fato é identificável quando os docentes apresentam dificuldades em sua práxis, por não saberem transpor o conhecimento a ser ensinado ou por não terem conhecimento suficiente para poder transformá-lo.

11 Sistema didático é a representação existente da interrelação entre o professor, o saber ensinado e o aluno. 12 “[...] a noosfera, teria a função essencial de interface entre a sociedade e as instâncias produtoras de saberes

[...] é, portanto, o local destinado a negociações nem sempre harmônicas entre o sistema de ensino e o entorno

social. [...] é onde ocorre a interação entre o sistema didático e o ambiente social, ocorrendo a transformação do

A transposição didática exige dos professores conhecimento do que vão ensinar. A organização do seu fazer pedagógico apresenta o caminho que será percorrido para atingir o objetivo principal da educação escolar que é um ensino de qualidade para aprendizagem do educando.

[...] os conteúdos de ensino são concebidos como entidades sui generis, próprios da classe escolar, independentes, numa certa medida, de toda realidade cultural exterior à escola, e desfrutando de uma organização, de uma economia interna e de uma eficácia que elas não parecem dever a nada além delas mesmas, quer dizer à sua própria história. (CHERVELL, 1990, p. 180).

Para Chervell (1990) o conhecimento construído no ambiente escolar é um saber próprio, produzido e transformado pelo professor a partir das necessidades dos alunos. É um saber constituído pelo diálogo com o conhecimento produzido no universo acadêmico, mas sem sobrepô-lo, haja vista não ser um mero processo de reprodução social. Nesse processo de TD estão expressas as relações intersubjetivas e contextuais pertencentes aos sujeitos que se vinculam ao âmbito educacional com variadas representações do conhecimento a ser apropriado.

É fato que tais representações são concorrentes e compartilhadas nas relações existentes entre os sujeitos pertencentes aos mesmos grupos sociais (professores e alunos) ou mesmo nas interações dos sistemas didáticos e o ambiente social com aproximação entre os saberes da academia e aquele que se constitui a partir do conhecimento de senso comum concebido pelos alunos.

Na prática, os objetos de interesse educacional são abordados através do conhecimento das representações dos sujeitos sociais. As significações para um conhecimento já existente são identificadas como práticas cotidianas de senso comum e caracterizadas pelas identidades pessoais, sociais e culturais do seu grupo de pertença. Conhecer um pouco sobre a forma de pensar e agir que o corpo docente de uma escola possui envolve conhecer identidades e a realidade de um grupo, visto que sua forma de pensar é relevante para a transposição didática do conhecimento.

A correspondência entre a transposição didática do conhecimento e a TRS se mostra no contexto em que ocorre a construção dos saberes. Nesse contexto, o professor procura aproximar o conhecimento constituído em um universo que vai além dos muros da escola e o universo de conhecimentos dos alunos. Logo, conhecer as RS desses professores, no que tange às suas práticas cotidianas, possibilita compreender como valores, crenças e comportamentos são comunicados nos contextos educacionais, influenciando a TD do

conhecimento advindo do universo do saber de referência para a construção do conhecimento escolar, ou seja, aquele que será concebido pelos alunos em sala de aula.

No sentido expresso no encontro entre a TTD e a TRS para a Educação em Ciências, tem-se a existência de um currículo que norteia os conteúdos a serem trabalhados no ambiente escolar. Tais conteúdos são adaptados pelos professores conforme as reais necessidades de aprendizagens que os educandos apresentam. Entretanto, a visão de mundo do professor implica em condutas e escolhas marcadas por fatores que interferem diretamente na prática docente e que se traduz na reelaboração da própria prática.

[...] prevalece, no domínio dos conteúdos de ensino, um consenso que, em geral, mesmo os historiadores do ensino partilham, e que não foi recolocado em questão [...]. Estima-se ordinariamente, de fato, que os conteúdos de ensino são impostos como tais à escola pela sociedade que a rodeia e pela cultura na qual ela se banha. Na opinião comum, a escola ensina as ciências, as quais fizeram suas comprovações em outro local. [...] A tarefa dos pedagogos, supõe-se, consiste em arranjar os métodos de modo que eles permitam que os alunos assimilem o mais rápido e o melhor possível a maior porção possível da ciência de referência. (CHERVELL, 1990, p. 180, 181).

A prática educativa não é um acontecimento isolado de seu contexto social, político ou cultural, é uma construção inserida no contexto escolar que, por sua vez, está intimamente ligada à formação social do aluno. Consequentemente, está vinculada às RS que fazem parte do cotidiano escolar e das percepções de senso comum sobre o objeto do conhecimento. Enfim, entender como ocorre uma transposição didática é também compreender como a representação do conhecimento se estrutura e como é percebida pela comunidade escolar.