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Transposição do ser hacker para outros meios

CAPÍTULO 4 – As políticas hackers segundo os estudos de caso sobre a América Latina

4.3 Transposição do ser hacker para outros meios

Nesta categoria, as análises apontam para elementos do ser e fazer hacker que são transpostos por outros meios inicialmente não vinculados ao hackerismo – como arte, literatura, educação, saúde, meios urbanos. A transposição do ser e fazer hacker, no caso desse conjunto de publicações, nunca é completa, mas são escolhidas algumas características específicas que, para os autores, dão outros sentidos para esses meios. Dessa forma, a transposição funciona como um processo de apropriação, adaptação e aprendizado e engendra novas políticas. Novamente, um dos elementos em comum das análises realizadas foi a centralidade das tecnologias livres (softwares e hardwares).

De forma geral, foi possível distribuir as publicações em duas subcategorias utilizando os termos mencionados nas análises realizadas: comportamentos hackers e metodologias hackers.

Comportamentos hackers

Em comportamentos hackers estão contidos elementos como apropriação, experimentação e subversão e foram identificados principalmente em relação à música, arte e literatura. Esses elementos conversam diretamente com o preceito “you can create art and beauty on a computer” da ética hacker observada por Levy (1984, p. 31). É interessante que em todas as publicações desta subcategoria, os elementos do ser e fazer hacker são identificados como parte fundamental destas novas formas de música, arte e literatura que são politizadas. Nesse sentido, o processo criativo e os produtos se tornam formas de engajamento político. Outro elemento em comum é o contexto em resposta ao qual surgem essas novas formas de música, arte e literatura – o mesmo apontado pelas publicações em “resistência” e “gênero, desigualdade, violência e cuidado”: capitalismo neoliberal, globalização, controle e vigilância massivos e memórias de ditaduras violentas.

Dentre os casos estudados estão o chipmusic, netart, codework e a literatura cyberpunk, que proveem exemplos interessantes de outras formas de emergência das políticas hackers.

Em relação à música, Schäfer (2015) discute as características da chipmusic, produzida a partir dos chips sonoros de consoles e computadores pessoais antigos, principalmente das décadas de 1980 e 1990. Nos equipamentos são instalados trackers, softwares que permitem a criação de sons digitais. Pela dificuldade em trabalhar com hardware antigo e criar/adaptar softwares, superar limitações, apropriar os circuitos e

experimentar com os equipamentos para encontrar funções não previstas em manuais são partes essenciais da chipmusic, que trabalha com proximidade da ideia subversão da obsolescência. Como coloca Schäfer (2015, p. 93), “da mesma forma, os hackers e os músicos da chipmusic, quando modificam os equipamentos ou softwares para que executem funções que não foram predeterminadas em sua concepção, estão tentando adentrar a caixa-preta, jogar contra o aparelho”. Esses softwares, assim como as músicas criadas por meio da chipmusic são compartilhados livremente na Internet pelos programadores e artistas, como parte de seu ativismo contra a apropriação privada e comercial dos elementos culturais e técnicos relacionados a essa forma de arte.

Um dos primeiros exemplos do livro de Levy (1984) sobre hackers e sua capacidade de experimentar, aprender e transformar tecnologia envolve música. Um dos fundadores do Tech Model Railroad Club, Peter Samson, teria sido o primeiro a criar música a partir do TX-0 quando percebeu que o computador emitia uma série de sons de acordo com o posicionamento de caracteres binários no código escrito. Interessado em música, Samson começou a programar, variando os binários em posições específicas, conseguindo assim diferentes sons.

“So it was that a computer program was not only metaphorically a musical composition - it was literally a musical composition! It looked like - and was - the same kind of program which yielded complex arithmetical computations and statistical analyses. These digits that Samson had jammed into the computer were a universal language which could produce anything - a Bach fugue or an antiaircraft system.” (LEVY, 1984, p. 22)

Fernández (2011) e Ledesma (2015) fazem suas análises em relação a duas formas específicas de netart: arte hacker e poesia em código, respectivamente. Ambos os autores partem da perspectiva que os artistas latino-americanos usam código e programação como forma de posicionarem-se criticamente contra o capitalismo pós-industrial, o poder das grandes corporações e as formas de controle que vêm junto da intensificação da adoção das tecnologias da informação. Particularmente, ao trazer essas formas de arte para o contexto latino-americano, os artistas buscam reconfigurar a cartografia do ciberespaço, infectando o idioma oficial da Internet (FERNÁNDEZ, 2011), e democratizar a programação, encorajando usuários a se transformarem em artistas-programadores (LEDESMA, 2015).

Portanto, assim como em “resistências”, as tecnologias da informação que criam formas de opressão também abrem espaços para novas formas de subversão e, neste caso, os artistas se tornam hacktivistas.

“Si el artista muestra una cierta visión de la vida y la sociedad, el activista de arte hacker muestra las quiebras del sistema y demuestra como la dictadura de la máquina puede subvertirse o lo que es lo mismo, que la sociedad capitalista puede descontrolarse utilizando en beneficio próprio sus mismas herramientas de control. La pregunta que nos surge ahora es donde acaba el activismo y comienza el arte y vice-versa.” (FERNÁNDEZ, 2011, p. 91)

Para os artistas estudados por Fernández (2011) e Ledesma (2015), parte da experimentação e subversão vêm da criação coletiva da arte, de forma que a relação entre arte e espectador se transforma em uma relação entre desenvolvedor e usuário, que também se torna desenvolvedor no contexto das tecnologias livres, como no caso da arte hacker e da poesia em código.

As táticas e ferramentas utilizadas, porém, são diferentes. A arte hacker apresentada por Fernández (2011) utiliza de desfiguração e clonagem de sites em outras línguas, propagação de vírus, lentidão no acesso e programação de bugs no processo de criação e divulgação das artes. Já a poesia em código se configura como escrita experimental que combina linguagens computacionais e humanas para criar poesias que, muitas vezes, precisam ser rodadas como programas, causando desfigurações na interface do usuário, em navegadores e sites ou evidenciando os aspectos humanos dos códigos.

Por fim, quanto à literatura, foram identificados dois movimentos: o primeiro sobre a inter-relação entre forma e conteúdo da obra de Nalo Hopkinson, autora do cyberpunk cubano e o segundo sobre as influências das experiências hacktivistas zapatistas e seus desdobramentos no cyberpunk mexicano.

Quanto ao primeiro, Enteen (2007) demonstra que Hopkinson escreve sobre hackers e, ao mesmo tempo, hackea uma série de tradições linguísticas, estilos e gêneros literários – hacking, aqui, significando subversão:

“To create such a text, Hopkinson combines English with Trinidadian and Jamaican creole, ‘hacking’ a language that recalls the histories of the middle passage, slavery, and imperialism. Furthermore, her characters break and create code, ‘hacking’ in speech as well as through their conceptions of community, ‘hacking’ the genre of science fiction through the blending of cyberpunk and planetary romance, creating fiction reminiscent of the corpus of Bruce Sterling's ‘global tourism’ sf [science fiction] (Jameson, Archaeologies 384-85), but seen from the other side. Centered on a feminine Artificial Intelligence commanding the planet and its inhabitants, Midnight Robber challenges the conventions of cyberpunk, revealing its ideological underpinnings, and com accounts of the intersections of gender, technology, and corporate presence” (ENTEEN, 2007, pp. 263-264)

Quanto ao segundo, García (2012) analisa um tema comum das obras do cyberpunk mexicano: os paradigmas nacionais que colocaram o México como uma nação

moderna e o fato dos hackers aparecerem não como fonte cultural de inovação, mas como trabalhadores forçados a escolher entre a economia da informação ou crime organizado. García (2012) discute que os anos seguintes ao levante zapatista foram marcados pelas tentativas de grupos políticos mexicanos em corromper o espírito hacker das comunidades interessadas em desenvolvimento técnicos e políticos como forma de exercer cidadania através da privatização do conhecimento hacker e de sua absorção pelo sistema corporativo e político. A incorporação dos efeitos da absorção dos hackers pelo sistema corrupto mexicano, das reformas neoliberais e da globalização teriam dado o tom dos cenários do cyberpunk mexicano, cercados de crise econômica, desemprego, pobreza extrema e desesperança.

Metodologias hackers

Nesta subcategoria, os estudos analisam a implementação de formas de organização e trabalho hackers em outras áreas. Ainda que os autores tratem de aplicações e resultados diferentes, o elemento em comum são as redes de comunicação e colaboração pela Internet, entendidas como características dos hackers, como solução para problemas específicos dos seus objetos de estudo. Especificamente, Pretto (2010) encontra nas tecnologias digitais de informação e comunicação uma solução para a falta de oferta de professores através do uso de ferramentas de compartilhamento de arquivos em rede, que seriam um caminho para a democratização e socialização da produção acadêmica e dos processos formativos. As redes, de acordo com Pretto (2010), não serviriam apenas para compartilhamento de conteúdo, mas para a formação contínua dos professores através da ampliação da rede colaborativa entre diferentes níveis de ensino e instituições. Já para Guizardi et al. (2018) as redes de colaboração dos hackers tomam forma de hackatons. Nesse sentido, “a reunião de pessoas engajadas pelo desenvolvimento tecnológico, a duração limitada das atividades e o compartilhamento de objetivos em atividades intensivas” junto do caráter lúdico, criativo e colaborativo do trabalho hacker (GUIZARDI et al., 2018, p. 449) fariam dos hackatons uma forma eficiente de direcionar a inovação e melhoria de respostas a questões sociais, governamentais e corporativas. Sendo um fenômeno relativamente novo, Guizardi et al. (2018) advogam pela utilização dos hackatons por governos e corporações para a solução de problemas da área da saúde, identificando algumas das iniciativas já realizadas. Por fim, Chiesa & Cavedon (2015) discutem as redes de colaboração hackers a partir de uma característica específica: a descentralização ou, como colocam, a organização não-hierárquica. Para os autores, formas não hierárquicas de organização através do digital não só permitem

um processo de decisão com base no consenso, mas sua filosofia – a de defesa da Internet livre, aberta e fora do controle das grandes corporações – seria absorvida pelos grupos que as implementam.

4.4 Outras formas de fazer política pública, influenciar tomada de decisões ou se