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1.3 Estudos da Tradução: aspectos relevantes para o presente trabalho

1.3.3 Transtextualidade segundo Gérard Genette

Em nosso trabalho buscamos observar diferentes aspectos de nosso objeto de análise e, por este motivo, nos valemos da proposta de Nord, utilizando as diversas questões sugeridas pela pesquisadora para nortear nossa análise; julgamos também necessário, porém, observar mais cuidadosamente como o conto por nós analisado dialoga com as versões tradicionais de Perrault e dos Irmãos Grimm – para tanto, o ponto de vista de Gérard Genette parece-nos relevante.

Genette define transtextualidade ou transcendência textual como “tudo que o coloca em relação, manifesta ou secreta, com outros textos” (GENETTE, 2006, p. 7) e organiza essas relações textuais em cinco tipos: a primeira relação identificada pelo autor é a intertextualidade “[...] uma relação de co-presença entre dois ou vários textos [...]” (GENETTE, 2006, p. 8) ; essa co-presença se materializa em diferentes formas da mais explícita e literal em citações até a

menos explícita e menos literal por meio da alusão; o autor identifica uma segunda relação que se estabelece entre o texto literário propriamente e seu paratexto (título, subtítulos, intertítulos, prefácios, notas, ilustrações etc); é definida por Genette como metatextualidade a “relação, chamada mais corretamente de ‘comentário’, que une um texto a outro texto do qual ele fala, sem necessariamente citá-lo”. (GENETTE, 2006, p. 11). A metatextualidade, a nosso ver, refere-se aos textos críticos e resenhas de comentadores, por exemplo, que nos sugerem perspectivas diversas para leitura e interpretação de obras e autores e nos auxiliam a construir nosso próprio olhar crítico em relação ao texto e/ou autor estudado. A arquitextualidade é definida por Genette como “o conjunto das categorias gerais ou transcendentes – tipo de discurso, modos de enunciação, gêneros literários, etc. – do qual se destaca cada texto singular” (GENETTE, 2006, p. 7), ou seja, é possível encontrarmos textos cujas categorias sejam explicitadas em seus títulos ou incorporadas ao texto, como em Memórias póstumas de Brás

Cubas, cujo título dá pistas ao leitor do que esperar da leitura, neste caso com um estranhamento

adicional, pois embora o gênero memórias seja entendido como um registro de eventos marcantes na vida de um indivíduo, não se espera que este indivíduo faça seu relato além túmulo.

A última relação descrita é hipertextualidade: “toda relação que une um texto B (que chamarei de hipertexto) a um texto anterior A (que, naturalmente, chamarei hipotexto) do qual ele brota de uma forma que não é a do comentário.” (GENETTE, 2006, p. 12, grifos do autor). É crucial ter em mente que as diferentes relações descritas por Genette não se apresentam como categorias estanques; ao contrário, estão imbricadas contribuindo para uma tessitura textual (teremos a oportunidade de apontar algumas dessas relações em nossa análise). Das cinco relações identificadas pelo autor, a hipertextualidade se revela essencial por estar relacionada ao estudo de textos parodísticos.

A relação hipertextual, ou seja, de um hipertexto em relação a um hipotexto se dá por meio de transformação. Essa transformação pode ser “simples ou direta”, como aponta Genette (2006, p. 13), sugerindo como exemplo o transporte da ação da Odisseia para Dublin do século XX em Ulysses de James Joyce. Por outro lado, o autor sugere que a Eneida em relação à

Odisseia é exemplo de outra forma de transformação, por tratar-se de outra história contada em

estilo semelhante ao usado por Homero. Embora a Eneida possa ser considerada por muitos imitação da Odisseia, Genette afirma que a imitação é uma transformação complexa, pois exige “adquirir sobre ele [texto imitado] um domínio pelo menos parcial: o domínio daqueles traços que se escolheu imitar; sabe-se, por exemplo, que Virgílio deixa fora de seu gesto mimético tudo que, em Homero, é inseparável da língua grega” (2006, p. 13). O autor esclarece que a

transformação de um hipotexto pode se dar desde um erro ortográfico até a troca de palavras, gerando alteração de sentido. Já a imitação pressupõe a identificação de uma determinada característica e a expressão de outra opinião utilizando-se a mesma forma – um exemplo usado refere-se ao uso do gênero provérbio para expressar uma ideia diferente da usual; podemos considerar como exemplo o trabalho de inúmeros comediantes que destacam traços específicos da pessoa imitada, uma determinada expressão usada com frequência, um trejeito, a forma de falar ou andar, etc.

Na medida em que a parodia constitui uma transformação do texto parodiado, Genette busca as origens do termo em Aristóteles para esclarecer sua definição do termo. Partindo da etimologia, que define paródia como “cantar paralelo”, ou seja, o ato de cantar o mesmo texto em outro tom, pode-se transpor o conceito para a literatura de modo a considerar a reprodução de um texto fora de seu contexto – o que produzirá efeito diferenciado – como a forma mais elementar de paródia. Outras possibilidades têm como origem pequenas modificações no texto que geram alterações de sentido, ou modificações que incidem sobre o estilo do texto. Ao analisar o conceito aristotélico de paródia, Genette identifica como traço comum certa ridicularização da epopeia, que resulta de alguma forma de dissociação entre texto (o texto em si mesmo ou um estilo) e o conteúdo heroico; temos:

1. aplicação de um texto nobre (modificado ou não) a outro tema (geralmente vulgar) 2. transposição de um texto nobre para um estilo vulgar (quando há alteração de registro) 3. aplicação de um estilo nobre a um tema vulgar ou não-heroico.

Para Genette, uma paródia deve conter elementos suficientes do texto original – o hipotexto – que possibilitem seu reconhecimento, pois o contraste surpreendente entre o hipertexto e o hipotexto é o que possibilita a produção do efeito cômico no hipertexto. Entre as diversas modalidades de paródia, Genette distingue aquela elaborada a partir do uso das mesmas palavras do texto original em outro contexto, embora esta tenda a ser inviável quando o texto for demasiado extenso. As observações apresentadas por Genette são relevantes para a compreensão da proposta, apresentada pelo autor, de classificação das práticas hipertextuais, entre as quais se inclui a paródia. Segundo o autor, o termo paródia tem sido, muitas vezes, utilizado de forma equivocada; o equívoco constitui-se no uso de “paródia” para

designar ora a deformação lúdica, ora a transposição burlesca de um texto, ora a imitação satírica de um estilo. A principal razão desta confusão está evidentemente na convergência funcional dessas três fórmulas, que produzem em todos os casos um efeito cômico, geralmente às custas do texto ou do estilo ‘parodiado’ (GENETTE, 2006, p. 19)

Genette propõe, então, uma classificação taxinômica que leva em conta não só o aspecto funcional do texto, mas também o ponto de vista das relações estabelecidas entre o hipertexto e o hipotexto. Nesse âmbito, uma diferença fundamental é assinalada: tanto a paródia quanto o travestimento têm uma “transformação de texto” (GENETTE, 2006, p. 20) em seu cerne, enquanto o pastiche está relacionado à imitação. A partir da proposta taxinômica de Genette, que leva em conta tanto a função quanto a relação textual, entendemos paródia como um hipertexto que resulta de uma transformação lúdica de um hipotexto. A nova classificação proposta por Genette não pretende ser definitiva e, tampouco, o autor buscou estabelecer relações hipertextuais estanques; para nosso trabalho, a definição de paródia proposta pelo autor parece-nos adequada e suficiente.

Cabe, também, tecer algumas observações acerca do ponto de vista de Genette sobre tradução. O autor aponta como mais proveitoso discutir e identificar, de um lado, os textos que são mais passíveis de serem afetados pela tradução – entre os quais se incluem os textos literários – e os textos que tendem a ser menos afetados por ela, ou seja, todos os demais textos. Tal abordagem é, para Genette, mais proveitosa que a conhecida discussão sobre a (im)possibilidade de tradução (preconizada por concepções como a hipótese Sapir-Whorf, no contexto da linguística estrutural). É compreensível que os textos literários imponham, pelas possibilidades de leitura e interpretação que costumam suscitar, um desafio maior ao tradutor em comparação com textos não literários, supostamente objetivos; no entanto, uma vez que toda produção de discursos se insere numa situação de produção que envolve aspectos sociais, históricos, políticos, éticos etc. em maior ou menor grau, constata-se que todo ato tradutório implica algum tipo de interferência no texto fonte. Assim sendo, a tradução de um contrato, por exemplo, não está isenta de dificuldades, na medida em que a terminologia envolvida nesse tipo de documento está também inserida em uma condição particular de produção que não vai corresponder inteiramente às condições de produção do mesmo tipo de texto em outra cultura. Como aponta Genette, cabe ao tradutor ter consciência das limitações que o próprio ato tradutório impõe e buscar desempenhar a atividade da melhor maneira possível.